Número de pessoas interessadas no neonazismo cresce mais que a população brasileira, afirma antropóloga.
Por Lu Sudré
"Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro
para as crianças brancas". As 14 palavras de David Lane, influente líder
do neonazismo, ecoaram no mundo todo após serem ditas por supremacistas
brancos em Charlottesville, cidade do Estado norte-americano de
Virgínia, no dia 12 de agosto. As tochas de fogo que marcaram a história
da Ku Klux Klan estavam nas ruas como há muito tempo não se via. Tais
palavras podem estar mais próximas do que se imagina.
Segundo a antropóloga Adriana Dias, pesquisadora da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que mapeia a atuação dos
principais grupos neonazistas do País na internet desde 2002, existem
mais de quatro mil sites neonazistas em domínio brasileiro.
"Aqui no Brasil temos o que eles chamam de 'células' ou
'braços' de grupos neonazistas americanos, mas também de grupos do Leste
Europeu, da Ucrânia e da Rússia. Eles são heterogêneos, alguns são mais
violentos e ciberativistas, enquanto outros não", afirma Dias em
entrevista à Caros Amigos. "Os sites neonazistas tem
uma característica muito específica, que é a profundidade. Quanto mais
se caminha dentro dos sites, cheios de hiperlinks e diretórios, mais
violentos eles ficam".
Os grupos neonazistas Combate 88, White Power São Paulo,
White Power Sul, War (White Arian Resistance), Front 88, Kombat Rac,
Impacto Hooligan e Azov, lideram a lista dos mais extremistas e atuam
principalmente na região sul e sudeste do País, com crescimento recente
na região centro-oeste. Além da negação do Holocausto, o ódio aos
nordestinos e a homofobia estão entre as principais bandeiras destes
grupos.
"Existem pessoas que já foram levadas para treinamentos no Leste
Europeu, na Ucrânia e na Rússia. Estes são grupos bastante ideológicos.
Alguns fazem a iniciação com violência, ou seja, agridem um nordestino,
um gay, um judeu ou um negro pra entrar no grupo. Por vezes, a iniciação
é sair em bando pra matar. A violência é absurda, o racismo é
visceral", destaca a pesquisadora.
Indignada com a apologia criminosa das informações que encontrava nos
sites em meados dos anos 2000, Dias fez uma denúncia junto ao
Ministério Público e, por conta de ações judiciais movidas por ela e
outros militantes, três sites brasileiros foram retirados do ar desde
2004: White Power SP, Loja ZyklonB e Valhalla88.
Onde eles estão?
Os grupos neonazistas se articulam em fóruns de debates online e na rede social VK,
de origem russa, equivalente ao Facebook. Graças ao seu conhecimento
como programadora, Adriana conseguiu vasculhar fóruns de
compartilhamento de conteúdo por palavras chaves e constatou que
aproximadamente 250 mil pessoas baixaram materiais neonazistas no
Brasil.
Para que um Internet Protocol (IP) entre na estatística da
pesquisadora, é necessário que tenha feito o download de no mínimo 1GB
de documentos. Com base no monitoramento dos últimos anos, o número de
pessoas que fazem esses downloads cresce 8% ao ano, porcentagem maior
do que o crescimento da população brasileira que, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), é de 0,8%.
"De 10 a 20% dessas pessoas participam efetivamente de células ou de
bandas de grupos anticomunistas, que também têm neonazistas", explica
Adriana que já foi a campo e encontrou neonazistas em Santa Catarina,
sul do País. "É um movimento muito diverso e heterogêneo. Você tem desde
empresários que financiam o movimento até um garoto simples de escola
pública que vai ser influenciado para que ele entenda que é especial
porque é branco e portador da raça ariana."
A falta de uma lei na legislação brasileira que tipifique o crime de
ódio é um dos entraves para enquadrar os neonazistas para além da
internet, cujas ações seguem sem identificação e notificadas apenas como
homicídio.
De acordo com a antropóloga, há ainda diferenciações estratégicas
entre os grupos neonazistas brasileiros para angariar novos adeptos. Os
discursos têm alvos e focos específicos. "Há grupos de classe média e
classe alta. Há um discurso que fala: 'o negro ou o imigrante está
ocupando seu lugar na universidade, no emprego' Do outro lado, há um
outro discurso mais intelectualizado, voltado para questão ideológica,
'teórica da raça', que retoma a suástica", enfatiza Dias.
Em nota enviada à Caros Amigos, a Delegacia de
Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância da Polícia Civil
(Decradi) afirma que investiga os crimes de intolerância por meio de
mapeamento dos grupos e cadastros de seus integrantes, além de
operações, pesquisas de registros policiais e monitoramento das redes
sociais. "Recentemente, foi apurada a atuação de grupos neonazistas na
divulgação, por cartazes ou postagens em redes sociais, com teores
preconceituosos e de divulgação do nazismo, principalmente por
motivações religiosas", diz o texto.
“Unite the Right"
Com o lema "Unir a direita", o ato em Charlottesville foi motivado
pela retirada de estátuas em homenagem a militares confederados, que,
durante a Guerra Civil estadunidense (1861-1865) representaram os
estados do sul do país - chamados Estados Confederados - na busca pela
independência para impedir a abolição da escravidão.
Dois séculos depois, grupos de neo-confederados ao lado de
neonazistas, de representantes da Ku Klux Klan (KKK), de grupos
anticomunistas, identitários e outros grupos de extrema-direita como o
Alt-Right (Direita Alternativa), gritaram palavras de ordem como "Vocês
não vão nos substituir", em referência aos imigrantes; "Vidas Brancas
Importam", em contraposição ao movimento negro Black Lives Matter, e
"Morte aos Antifas", abreviação de "antifascistas".
Dias explica que existem mais de 11 grupos nos Estados Unidos que
passaram pelo que ela chama de "processo de nazificação". O mesmo ocorre
com os neonazistas do Brasil. "Começa-se com um grupo antigay, por
exemplo, ou anti-imigrante. Esse grupo se nazifica quando passa pela
experiência da negação do Holocausto até chegar no grupo
neonazi-hitlerista. É um processo contínuo", frisa a antropóloga. De
todos esse grupos, apenas a KKK não tem células brasileiras.
Para a pesquisadora, o ato em Charlottesville é muito representativo
pois juntou de Ku Klux Klan até movimentos neo-confederados. "Todos se
juntaram para falar do orgulho branco, da supremacia branca. Para dizer
que judeus, negros e gays não vão tomar esse lugar que eles imaginam ser
deles. Eles acham que esse lugar está ameaçado por este 'outro',
argumento que eles constróem com falácias para alimentar o ódio."
As 14 palavras de David Lane, citadas no início da matéria e
definidas por Adriana Dias como o slogan mais dito pelos neonazistas,
também compõem o símbolo 14/88. O número 8 corresponde ao ”H”, oitava
letra do alfabeto. Dessa forma, 88 significa HH, "Heil Hitler". Este número também é usado como referência ao ensaio 88 preceitos, escrito por David Lane, e ao trecho de 88 palavras do livro Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler.
O casamento interracial e a adoção de crianças negras por casais
brancos estão entre os pontos que o líder neonazista elenca como
responsáveis por um suposto extermínio do povo branco em curso no mundo.
"Eles usam a história da vítima para forjar a própria história. Falam
de uma 'diáspora branca' e impulsionam uma narrativa de ódio",
complementa Adriana Dias.
Lideranças da extrema-direita
Após o ato de supremacistas brancos nos EUA, um homem de 20 anos
jogou o carro que dirigia contra um grupo que protestava contra os
grupos racistas, matando uma mulher e deixando pelo menos 19 feridos. A
ausência de um posicionamento imediato de Donald Trump contra os
neonazistas fez com que o republicano se tornasse alvo de críticas
internacionais. Apenas dois dias depois da manifestação, Trump
classificou os grupos como "repugnantes".
Na visão de Adriana Dias, a ascensão de figuras como Donald Trump e
Jair Bolsonaro impulsionam o crescimento do neonazismo. "O fato do Trump
não ter se pronunciado de imediato contra os neonazistas foi um dos
piores acontecimentos do século 21. Eles comemoraram muito nos fóruns e
nos grupos online. Mesmo quando ele se manifestou depois, alguns se
sentiram traídos, outros disseram que os judeus o obrigaram a fazer
isso. A não-manifestação de imediato deu muita força pro movimento",
analisa.
"O Bolsonaro é um tremendo neonazista. Há inclusive uma base do
movimento neonazi que faz campanha e propaganda para o Bolsonaro",
revela a pesquisadora. No início de 2016, grupos neonazistas e
neofascistas participaram de um ato no vão do Museu de Arte de São Paulo
(Masp), na Avenida Paulista, em São Paulo, para prestar apoio a
Bolsonaro e defendê-lo das críticas que recebe frequentemente de setores
dos direitos humanos. "Eles gostam de se colocar a serviço do ódio.
Para eles é o sentimento mais importante que o ser humano pode ter, mas o
que eles consideram ser humano é o homem branco, hétero e sem
deficiência (física)", resume Dias.
A estudiosa opina que a atual conjuntura política brasileira de
intolerância e polarização tende a piorar em 2018 com o crescimento de
grupos neonazistas. "Se tiver um estopim que reúna as extremas direitas
brasileiras, podemos ter Charlottesville aqui. Os neoconservadores
brasileiros não tiveram a menor vergonha de se unir ao pior da extrema
direita para o impeachment da Dilma. Também acho os neonazistas não
terão nenhuma vergonha de irem para as ruas caso algo simbólico
aconteça. Infelizmente estamos em um momento terrível", lamenta. "Esse
crescimento da extrema direita cria uma narrativa social na qual a
direita vai beber. O ódio vai ser algo ainda mais enlouquecedor."
"Músicas para brancos"
"Já chega de tolerar essa raça nojenta/ Esse povo parasita que
ninguém aguenta /A hora é essa e não dá mais pra esperar/ Sinagogas vão
explodir e kipás irão pro ar".
Esses são alguns do versos da banda neonazista Stuka, que
ao lado de outras bandas de rock, como a Banda Locomotiva, Bandeira de
Combate e Brigada NS, entre outras, propagandeiam o neonazismo no País.
Reunidas no blog Música para Brancos, as bandas cantam letras de teor
anticomunista, regadas de antissemitismo e racismo. A música São Paulo Pátria,
por exemplo, da Banda Locomotiva, chama os nordestinos de "peso morto" e
pregam o separatismo. A Brigada NS destila o mais puro ódio contra
pessoas de etnia africana em versos como "Ainda és primitivo, é só um animal" e outros ainda piores.
Após anos pesquisando o neonazismo, Adriana acredita que a saída para
impedir o crescimento desses grupos é a criação imediata de uma
legislação que tipifique o crime de ódio e um longo e profundo processo
educativo. "O que me questiono é: Há interesse em parar? O atual governo
e a direita brasileira querem fazer esse trabalho?", questiona a
antropóloga.
Disponível em: https://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano/10727-quem-sao-os-neonazistas-brasileiros
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