A educação sexual das crianças é uma perspectiva entre outras de nossas disposições diante da cultura, mas em certas circunstâncias políticas ela assume um valor estratégico autonomizando-se de seu contexto real.
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
Estou no aeroporto de Khajuraho, noroeste
da índia, esperando o voo para a cidade sagrada de Varanasi, antiga
Benares. Acabo de sair do complexo de 22 templos construído por volta do
ano 1.000 d.c. em homenagem a Brahma, Visnhu e Shiva, a trindade hindu
da conservação, destruição e criação. Declarado patrimônio histórico
mundial pela Unesco, Khajuraho é um centro turístico regional que atrai
muitas famílias, interessadas na formação religiosa de seus filhos.
Estilos budista, islâmico e hindu frequentemente convivem na composição
de símbolos e estratégias arquitetônicas. O ritual de visitação é
relativamente simples: retirar os sapatos, pousar a mão sobre a pedra
frontal, subir as escadas, entrar no templo com as mãos em posição de
“namastê” e andar no sentido horário, dentro e fora do templo. Meditação
opcional, assim como palavras do guardião.
A família feliz e culta pode então apreciar as 84 figuras do kama sutra,
incluindo as clássicas 69 e 71, as básicas ou as mais complexas e
ginásticas, envolvendo ajuda e suporte de duas ou mais pessoas, sexo
entre homens ou entre mulheres, masturbação, zoofilia, felação e
sodomia, bem como a interveniência de deuses, ensinamentos e técnicas
para manter ou prolongar a ereção. Tudo isso não passa de 10% do
conjunto de esculturas disponíveis e não se encontra em uma ala
separada, mas “entre outras coisas”, junto com representações ligadas a
guerra, à condução política dos rajás e marajás, os tipos e profissões
humanas, bem como as inúmeras regências artísticas e as 33 classes de
deuses hinduístas.
Enquanto as famílias indianas levam seus
filhos para Khajuraho, há pelo menos mil anos, nós no Brasil do
retrocesso inventamos de discutir “ideologia de gênero” e “pedofilia de
museu”. A mesma Índia que pode servir de modelo para a educação sexual
das crianças poderia ser descrita como um paradigma de iniquidade entre
gêneros. Basta lembrar da terrível opressão que o sistema hindu de
castas impõe sobre as mulheres, a criminalização, até recentemente, da
sodomia e da homossexualidade, sem falar na endêmica cultura do estupro.
Infelizmente relações de gênero
equitativas podem conviver com experiências empobrecidas ou inibidas
diante do prazer. Relações injustas e opressivas entre gêneros podem
também perpetuar relações, grupos ou comunidades “tóxicas” do ponto de
vista da economia do prazer. Via de regra a equação entre sexo e poder,
ainda que variando muito em sua composição, quase sempre atua como uma
espécie de sismógrafo de avanços e retrocessos políticos. Não é
coincidência que, historicamente, regimes ditatórias tenham promovido a
perseguição a minorias de gênero e a práticas sexuais interpretadas como
“divergentes”. Foi assim que, desde o início do governo Temer, o tema
da corrupção institucional passou a se deslocar para o tema da caçada
moral da corrupção sexual. Confirma-se assim o que Freud chamou da dupla
moral presente no fulcro de nossa relação com a sexualidade. Julgamos
aqueles a quem consideramos pertencer a nosso grupo, família ou classe
de modo diferente da forma através da qual julgamos os outros a quem não
atribuímos esse pertencimento. Mas além disso criamos justificativas
morais para essa diferença de racionalidade em nosso julgamento
atribuindo ao outro costumes sexuais intoleráveis, excessos
pornográficos e ameaças a “nossas” crianças e mulheres. Por exemplo: 15%
da população, potencialmente eleitora de Jair Bolsonaro em nome da
“moral e dos bons costumes”, se mostra curiosamente indiferente ao fato
do mesmo candidato ter declarado, em pleno Congresso Nacional, para uma
deputada: “só não te estupro porque você não merece”.
É possível que isso ajude a entender
porque a mesma regra anticorrupção foi empregada de forma tão diferente,
por exemplo, quando se tratou de afastar Dilma mas de manter Temer, ou
ainda quando se trata de julgar Lula ou de Aécio. Recentemente, Leonardo
Sakamoto chamou nossa atenção para a ridícula diferença entre a
repercussão do caso da nudez do MAM (2 milhões de compartilhamentos) e a
relativa indiferença ao fato de que um estuprador condenado esteja
prestes a assumir uma cadeira de deputado federal (60 mil
compartilhamentos). A lei pode ser a mesma, mas sua aplicação é
seletivamente diferencial. O fato é óbvio, conhecido e cristalino na
cultura brasileira, mas quero chamar a atenção para a conexão entre ele e
nossa moralidade sexual.
Estaríamos diante de um caso de moral
dupla quando elogiamos os passeios familiares por Khajuraho e criticamos
a cultura do estupro na Índia? A educação sexual das crianças é uma
perspectiva entre outras de nossas disposições diante da cultura, mas em
certas circunstâncias políticas ela assume um valor estratégico
autonomizando-se de seu contexto real. “Proteger nossas crianças e
mulheres” é o grito mais simples para criar perigo e disseminar o medo
como afeto político. Desta forma, a generalização de um princípio é
usada para inverter o sentido do caso particular: em nome da proteção e
segurança sancionamos a opressão sexual e de gênero. Chegamos assim a
uma nova aplicação cínica da moral dupla: cale a boca sobre Khajuraho,
silencie a exposição “Queermuseu” e censure a nudez museológica – afinal
falar de sexualidade é perigoso, desvia nossas crianças da moral sexual
civilizada que queremos para elas. Ora, esta moral sexual ignorante é
justamente a que tolera o estupro e a violência de gênero. Direita e
esquerda chegam assim a um abraço kundalínico em torno da mesma
enunciação repressiva. O esquerdomacho e a dominatrix feminista juntos
finalmente.
Não é uma coincidência que todas as
ditaduras, tanto as ditas de direita e quanto as ditas de esquerda,
tenham perseguido minorias – particularmente de gênero – e determinadas
práticas sexuais – particularmente não monogâmicas e não heterossexuais –
em nome da preservação da ordem e da perseguição a opositores. A “coisa
sexual” parece o semblante ideal para capturar fantasias e deslocar
disposições individuais ao recalcamento rumo a um laço social orientado
pela enunciação repressiva. Isso inclui aqueles que querem reduzir a
educação sexual ao governo da família assim como aqueles que querem
impor um governo sexual a partir da generalização de suas próprias
regras domésticas. A cultura não é apenas um sistema de identificações
massivas feito de exemplos e paradigmas cuja única regra é a reprodução
de modelos. Sua experiência não é feita apenas de apologias e repúdios,
como se nossa tarefa diante da cultura fosse apenas aceitar ou recusar
“pacotes” prontos.
Assim como as catedrais medievais do
ocidente, os templos de Khajuraho têm uma função didática, ensinando,
entre outras coisas, as técnicas de prazer. O termo decisivo aqui é “entre outras coisas” e não “técnicas de prazer”. Se levamos uma criança a um de nossos templos sagrados, como por exemplo o MASP de São Paulo, ela poderá ver, “entre outras coisas”,
corpos em êxtase masoquista, formas humanoides sendo preparadas para o
banquete escaldante do inferno, olhares licenciosos, seios fartos
amamentando bebês, além de nus de várias formas e tipos. É essa
aglutinação indeterminada entre o sexual e o não sexual que define um
semblante como um certo regime de “naturalidade”, sem que exista, ao
mesmo tempo, nada de natural no sentido biológico do termo. Levar
crianças aos museus faz parte de sua educação sexual. Integrar a
conversa sexual com a conversa cultural é parte de sua formação
política. Nos esquecemos disso, e depois, quando o mundo político se
reproduz em dicotomias pobres, baseadas na oposição entre ideais
opressivos e obscenidades silenciosas, ficamos no deserto a perguntar
como isso tudo foi acontecer?
***
A Boitempo acaba de disponibilizar mais um curso completo em seu canal no YouTube! Em “A psicanálise do Brasil entre muros”, o psicanalista Christian Dunker conduz uma leitura comentada de seu aclamado livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros.
Ao todo, são sete aulas de cerca de 15 minutos cada dedicadas a
atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura dessa densa e explosiva
obra que levou o Prêmio Jabuti na categoria de psicologia e psicanálise.
A série pode servir tanto de complemento quando introdução à leitura
desta contribuição desafiadora para pensar criticamente o Brasil hoje.
Christian Dunker
Psicanalista brasileiro, ligado à tradição lacaniana. Formado pela USP,
onde obteve seus títulos de graduação, mestrado e doutorado, Dunker
possui também pós-doutorado pela Manchester Metropolitan University.
Atualmente é professor Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP,
no Departamento de Psicologia Clínica. Coordena, em conjunto com
Vladimir Safatle e Nelson da Silva Jr. o Laboratório de Estudos em
teoria social, filosofia e psicanálise. É autor, entre outros, de Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, vencedor do prêmio Jabuti. É colunista mensal do Blog da Boitempo.
Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/15/a-educacao-sexual-das-criancas-a-moral-dupla/
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