Por: Raial Orotu Puri
Este mês começou para mim com uma cena um
tanto quanto pitoresca, que gostaria de utilizar de base reflexiva para
este texto. Bem, outro dia, uma conhecida me interpelou para perguntar
se eu tinha alguma roupa, enfeite de cabeça para emprestar ao filho
dela, que iria realizar uma apresentação na escola. Perguntou-me em
especial se eu não teria um cocar tipo o que ela vira na cabeça de um
dos txai Huni Kuin que ela vira em minha companhia no dia anterior. Ela
explicou-me que havia procurado em lojas de fantasia, mas lá só tinha
para crianças pequenas, e, portanto, não caberiam no filho, já que é um
adolescente.
A pergunta provocou em mim a ‘Chloe face’, que deve
ter antecipado à minha interlocutora a certeza de que minha resposta
seria negativa, como de fato foi. Penso agora que talvez devesse ter
travado uma conversa mais demorada com ela, explicitando algumas razões
pelas quais um empréstimo dessa natureza seria para mim impossível, e,
quem sabe, fornecendo a ela algumas alternativas talvez mais apropriadas
para auxiliar o filho dela em sua apresentação escolar.
Aconteceu
que, tão logo eu disse o ‘não’, ela virou as coisas e foi tratar da sua
vida, provavelmente frustrada com a minha falta de simpatia para aquela
demanda que, aos olhos dela, deveria ser algo muito pertinente e
simples. Pois bem, este texto é uma resposta mais detalhada e longa para
a minha impossibilidade de fazer o referido empréstimo.
Não é a
primeira vez que alguém me pergunta isso, e, mesmo assim, eu confesso
que nunca deixo de observar esse tipo de questão com um misto de espanto
e dúvida.
Fico surpresa sim, não consigo deixar de ficar! Me parece extremamente curioso como os raion
(não-índio) não conseguem entender como certas solicitações que eles
nos fazem podem ser problemáticos, do mesmo modo que nunca deixo de
duvidar de que pedidos dessa natureza possam ser formulados a sério.
Por
outro lado, eu entendo a motivação das pessoas que me perguntam tais
coisas, dentro da lógica de que, sendo eu indígena, trabalhando em uma
organização indígena, e tendo tantos amigos indígenas, é muito natural
que eu tenha roupas e adereços indígenas.
Pois é, pensando por aí
faz sentido. E sim. A verdade é que positivamente possuo peças
indígenas, algumas do meu povo, outras tantas de outros povos. E algumas
dessas peças não poderiam ser utilizadas por um garoto? Talvez. Mas
acho que a pergunta correta não é se elas poderiam ser usadas, mas se
elas DEVERIAM ser usadas.
Ah, sim, acho que já deixei implícito,
mas vamos ressaltar: a mulher que me interpelou com o pedido é branca
(não-indígena) assim como também o é o filho em questão. O que tem isso
de errado? Bom, nada. A princípio, nada. “Não tenho nada contra brancos,
até tenho amigos que são…” (Sim, eu estou sendo sarcástica, e isso é
óbvio, mas por via das dúvidas é sempre bom enfatizar, né?)
Ok,
voltado a falar sério, porque aqui o assunto é um “papo reto”, como
costuma dizer o Karo Munduruku, o que eu gostaria de assinalar nesse
texto é que este diálogo ocorrido entre esta minha conhecida não
indígena e eu poderia ser apenas uma conversa simples entre duas
pessoas, uma delas interessada em prover uma necessidade imediata de um
filho, com outra pessoa que, sendo quem é, poderia ter as condições de
provê-la. Só que quando uma dessas partes em diálogo é indígena, as
coisas podem não ser assim tão simples por um motivo bem
simples: eu não tenho ‘fantasia de índio’.
simples: eu não tenho ‘fantasia de índio’.
Para
ser mais precisa, eu devo dizer que fantasia de índio não existe.
Aliás, e antes de qualquer coisa, índio, a menos que você esteja falando
daquele metal representativo localizado no 5º período e 13º grupo da
tabela periódica, também não existe! Tá bom? Então tá bom.
Roupas e
adornos indígenas são roupas e adornos indígenas. As que eu tenho, ou
são peças ligadas à tradição ancestral do meu povo, ou são de outros
povos, adquiridas ou presenteadas a mim. Todas elas falam de identidade,
de pertença, de cultura e de tradição. Isso porque as peças indígenas
são feitas assim. Para além das matérias primas com as quais são
compostas, elas são feitas também de língua, cosmologia, ancestralidade,
ciência e conhecimentos ancestrais.
Por
outro lado, aquilo que a minha conhecida encontrou na loja, e que não
servia no tamanho do filho dela são um engodo, uma distorção, e
considero bastante ofensiva a sua existência e sua associação com a
riqueza cultural de povos inteiros. Além de serem feias em si mesmo,
elas colocam a cultura indígena no mesmo patamar das perucas prateadas e
dos óculos engraçadinhos que se usa nas festas de carnaval.
Ah,
sim… o Carnaval. Aquela época do ano em que indígenas, negros, mulheres
trans são obrigados ao dissabor de ver suas identidades transformadas em
alegorias constrangedoras! Aquela ditosa época do ano em que quando
alguém aponta o quão errado é a alegorização da identidade alheia, se é
taxado de reclamão-mimizento-que-vê-racismo-em-tudo. Aquela ímpar data
festiva em que os raion que se acham donos de tudo exercem esse
pretenso direito troçando daquilo que eles mesmos tão diligentemente
têm se esmerado em destruir em cinco séculos de genocídio.
E aí, já não bastasse o Carnaval, ainda rola o ‘me empresta uma fantasia sua para a apresentação na escola’? Puxa vida!
Não
quero dizer com isso que eu não poderia emprestar minhas roupas a
alguém que as pedisse, dependendo da circunstância e da pessoa. No
entanto, a circunstância em questão, ligado ao pedido que me foi feito,
não é um exemplo em que o empréstimo se faria possível.
Acontece
que cada uma das peças Puri que eu possuo foram feitas por mim ou por
parentas minhas com um propósito e um uso específico, e por isso elas
estão carregadas de mehtl’on (força) e tutak (espírito) Puri.
É
possível sentir essas potências quando se as toca, mas, não tenho
dúvidas de que para senti-las, se faz necessário ser também portador
desse dessa mesma conexão que faz dessas coisas bem mais do que enfeites
e penduricalhos estilosos.
É o mesmo com se visitar um dos
lugares sagrados para o meu povo: a pedra sonora de Rezende, por
exemplo, pode ser apenas uma pedra maneira para tirar uma foto, ou pode o
local aonde ainda reverbera o grito de um povo massacrado. Para mim
sempre será a segunda alternativa.
Do mesmo modo, eu reconheço o tutak
nas peças de outros povos que adquiri, e nas que me foram presenteadas.
São peças que me permito usar, e nas quais também reconheço os signos
de identidade e pertença dos povos dos quais provém.
Uso-os com a
consciência do seu significado, daquilo que representam para aquelas que
as fizeram. Tenho orgulho dessas peças, e dos motivos pelas quais me
foram dadas. Sei, no entanto, que elas não me transformam em outra coisa
que eu não sou, e não pretendo parecer ser.
Vai daí também o
motivo pelo qual eu nunca compraria um cocar de outro povo e, se o
recebesse de presente, eu não creio que seja capaz de vê-lo como um
adereço que eu pudesse usar, menos ainda, fazer um empréstimo a um raion.
Cocar,
minha gente, é uma coisa muito séria! Séria demais para ser alegórico
ou fantasioso, e, no meu entender, absolutamente vetado para ser usado
por um não-indígena. Cocar tem peso. E esse não é um peso que possa ser
suportado por uma cabeça de branco.
(Eu quero aqui abrir um
parêntesis explicativo: sempre que eu faço comentários desse tipo,
costumo receber críticas advindas de alguns raion que acham que
eu sou radical demais em vetar o acesso de certas coisas aos
não-indígenas. E sim. É radical mesmo. E tem de ser. Desculpem se isso
fere vossas suscetibilidades, acostumadas que são a acharem que podem
tudo. Não, não podem. Por favor, não insistam. A direção agradece!)
Ademais, eu creio que preciso problematizar o empréstimo que me foi solicitado ainda no âmbito do detalhe geográfico e contextual dele ter sido feito neste estado em que atualmente vivo, o Acre.
Ademais, eu creio que preciso problematizar o empréstimo que me foi solicitado ainda no âmbito do detalhe geográfico e contextual dele ter sido feito neste estado em que atualmente vivo, o Acre.
Como não
escapa a ninguém, aqui existe uma população indígena considerável, e
basta dar uma volta pelo centro da cidade de Rio Branco para topar com
um parente circulando por aqui, seja pertencente a um dos 15 povos que
aqui habitam, sejam os ‘estrangeiros’ como eu. Estamos por aqui,
vivendo, trabalhando, consumindo, comprando, vendendo, exercendo o
direito de ir e vir.
Alguns
desses parentes, aliás, amealham sua renda a partir da comercialização
de arte e artesanato, que poderia muito bem prover a tal necessidade da
minha conhecida, caso ela quisesse adquirir para si ou para o filho uma
dessas peças.
Acontece, no entanto, que a peça comprada também não
seria capaz de sanar um outro âmbito que considero problemático no
pedido em questão: não posso deixar de me perguntar qual seria a
dificuldade de me solicitar o contato (e eu tenho tantos que, conforme
já brincou a minha irmã, meu Facebook deveria ser chamado de Funaibook )
de algum dos cerca de 20 mil indígenas nesse estado para que ele fosse à
escola fazer a referida apresentação? Sim, eu sei que isso pode parecer
preciosismo, exagero, chatice, implicância minha…
Parece, e talvez seja, porque se tem uma coisa na qual eu sou implicante é com lugar de fala.
Lugar
de fala é uma coisa muito séria para mim. E é por isso também que não
dou conta de encarar com tranquilidade a impressionante falta de
compreensão de professores, escolas, escolares e pais de aluno que acham
que está tudo bem ignorá-lo.
Não, não está tudo bem, e não tem
como estar tudo bem, e não vai ficar tudo bem até que coisas desse tipo
passem a figurar em um passado distante do qual as pessoas sintam certa
vergonha.
Como já apontei em uma conversa passada, e a despeito de
todos os malabarismos que se tem feito para suprimir a legislação
vigente, ainda estamos vivendo sob a égide da lei que tornou obrigatório
o ensino da cultura indígena e afro-brasileira nas escolas.
Esta
obrigação legal impôs às instituições de ensino algo que era óbvio: o
reconhecimento de que o Brasil é um país multiétnico e plural, e toda
essa diversidade deve ser tratada de forma respeitosa e inclusiva.
E
sim, eu acredito piamente que o respeito nasce do conhecimento, razão
pela qual não tenho dúvidas do quão importante é que as escolas se
preocupem em introduzir tais conteúdos em sala de aula.
Mas como ensinar respeito com fantasias? Não dá! Não tem como. Não cola. Fica feio.
Raial Orotu Puri (Andréia Baia Prestes Puri) é
graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no
Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica
da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC)
As imagens utilizadas nest post foram selecionadas por nosso parceiro Jairo Lima https://www.cronicasindigenists.blogspot.com.br e são da autoria da pintora paranaense Cristiane Campos. Para conhecer mais sobre seu trabalho indicamos seu site: https://www.cristianecampos.com.br/
Disponível em: https://www.xapuri.info/sagrado-indigena/identidade-indigena-nao-fantasia/
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