Alyne Pimentel, 28 anos, mulher negra, estava grávida de 27 semanas
quando procurou uma clínica em Belford Roxo (RJ) após sentir fortes
dores abdominais e ter vômitos. No atendimento, o médico prescreveu
remédios para náuseas, contra infecção vaginal, vitamina B12 e a
encaminhou de volta para casa. Dois dias depois, Alyne voltou a se
sentir mal. Na nova consulta, foi constatado que o bebê que carregava na
barriga estava morto. Ela passou por um parto induzido e, 14 horas
depois, por uma cirurgia para a retirada dos restos da placenta. Alyne
teve hemorragia, vomitou sangue e sua pressão arterial caiu. Depois de
oito horas de espera por uma ambulância, foi transferida para um
hospital em Nova Iguaçu, outra cidade. Por falta de leito, aguardou mais
várias horas no corredor da emergência. Cinco dias depois de procurar
ajuda pela primeira vez, faleceu em 16 de novembro de 2002. A causa da
morte: hemorragia digestiva resultante do parto do feto morto. Ela era
casada e tinha uma filha de 5 anos.
Luís Eduardo Gomes no Sul 21
Na
última ecografia que deveria realizar antes do parto, Marina Carneiro,
27 anos, mulher branca, viu o técnico alertar para algo que não estava
bem. Indicou que seria necessário checar com seu obstetra. O médico
afirmou que ela estava com edema e pressão arterial elevada, mas não
pediu exames. Marina continuou passando mal. Acompanhada da mãe e do
marido, procurou o hospital mais próximo do local onde moravam, em Porto
Alegre. Um parto foi realizado às pressas, às 0h30. O médico informou
que ela tivera pré-eclâmpsia — doença que atinge gestantes
caracterizada, entre outros fatores, pelo aumento da pressão arterial — e
que deveria ficar em observação. Só retornou sete horas depois, após
Marina passar a madrugada recebendo bolsas de sangue e ser ressuscitada
com ajuda de aparelhos. Era tarde demais. Nascida em 7 de março de 2005,
a filha não chegou a conhecer a mãe.
Alyne e Marina são dois
casos emblemáticos de um mesmo problema: a mortalidade materna, que
atinge 60 mulheres a cada 100 mil bebês nascidos vivos (dados do
Ministério da Saúde), o que representa uma morte de mais mil gestantes
por ano – em 2013, complicações durante ou após o parto vitimaram 1.567
brasileiras. O número vem caindo no Brasil nas últimas décadas. De 143
óbitos/100 mil nascidos vivos, em 1990, para 60 óbitos em 2015, queda de
58%, mas ainda abaixo da meta estipulada pela ONU, de 35 mortes por 100
mil.
A mortalidade materna foi o tema da fala da enfermeira
Alaerte Leandro Martins, integrante das Rede Feminista do Paraná/Rede de
Mulheres Negra do Paraná, no seminário “A Integralidade dos Direitos
Humanos Diálogos sobre e os Direitos Sexuais e Reprodutivos”, realizado
pela Escola de Enfermagem da UFRGS na última quinta-feira (8).
Alaerte
destaca que as quatro principais causas de morte de gestantes no Brasil
são hipertensão, hemorragias, infecções pós-parto e abortos. Segundo
dados de 2012, do Ministério da Saúde, 66% dos casos de mortalidade
materna ocorreram por causas obstétricas diretas — aborto (4,4%),
hemorragia (12,1%), hipertensão (20,6%), infecção puerperal (7%) e outra
causas diretas (21,9%) –, 30,9% por causas obstétricas indiretas e 3,2%
por causas não especificadas
Um dos focos da palestra e do
trabalho de Alaerte é a questão da mortalidade da gestante negra: Apesar
de representarem cerca de 52% da população feminina brasileira, as
mulheres negras eram 62,8% das gestantes mortas durante ou por
complicações da gravidez, segundo dados do último Relatório
Socioeconômico da Mulher, divulgado pelo governo federal em 2015 (com
dados de 2014).
A enfermeira aposentada explica que a população
negra é geneticamente mais propensa a contrair doenças como hipertensão,
diabetes, anemia e a doença falciforme, mas isto só explicaria em parte
o maior percentual de mulheres negras mortas na gestação. A outra
resposta: o racismo institucionalizado, que se manifesta através da
diferença de tratamento, mesmo no Sistema Único de Saúde (SUS).
“Isso não é achômetro.
Um dos primeiros artigos publicados sobre o tema, da professora Maria
do Carmo Leal, da Fiocruz, foi uma pesquisa simples que fizeram no Rio
de Janeiro para ver como estava a atenção ao parto. Só que nessa
pesquisa fizeram o recorte racial e aí, para você ter uma ideia, a
analgesia do parto era feito menos nas mulheres negras. Então, mesmo num
hospital público, com condições iguais para brancas, pretas, para
todas, por que as negras receberam menos analgesia que as outras? Isso é
atribuído ao racismo, com toda a certeza”, diz Alaerte.
Afora a
questão racial, Alaerte destaca que há dois principais grupos de risco:
adolescentes e mulheres mais velhas. “Basicamente, no caso das
adolescentes é a falta de informação, a falta de ter tido um
planejamento. O polo inverso com as mulheres mais velhas. Elas foram
para o mercado de trabalho, foram estudar, então estão prorrogando cada
vez mais a gravidez e nisso também se constitui um risco, porque o
organismo já não é mais o mesmo”, diz.
Falta de pré-natal e de atendimento adequado
Para
além da causa mortis, Alaerte destaca que há dois problemas principais
que levam à mortalidade materna, e que ambos poderiam ser totalmente
evitados. O primeiro deles é a falta de um pré-natal adequado. Ela
destaca que, em muitos pré-natais, médicos acabam não pedindo todos os
exames necessários e que poderiam ajudar a detectar complicações a tempo
de serem tratadas. “Infelizmente, ainda temos muito pré-natais em que o
pré-natalista sequer toca no abdome da mulher, não vê a pressão
arterial, não pesa, não pede exames. Então, por doenças como a doença
hipertensiva específica da gravidez, que é uma doença muito simples de
ser acompanhada, de ser tratada, as mulheres ainda acabam indo a óbito”,
diz. Este é o caso de Marina, que poderia ter sido detectado com algum
exame além do ultrassom.
O outro grande problema é a falta de
atendimento adequado na hora do parto, o que leva a situações como a
hemorragia. Este é o caso de Alyne, que fez o Brasil a ser condenado, em
2011, pelo Comitê para Eliminação da Discriminação contra Mulheres
(Cedaw, na sigla em inglês) da ONU por violar direitos das mulheres. O
governo brasileiro foi obrigado a indenizar a família da vítima e a
garantir às mulheres o direito a cuidados obstetrícios de emergência,
qualificar os profissionais da saúde e punir violações aos direitos
reprodutivos.
Outro questão da falta de atendimento adequado é a
chamada violência obstétrica, que se manifesta quando a mulher é
submetida a procedimentos inadequados, como a cesáreas desnecessárias.
Ainda há os casos de morte em decorrência de abortos — um tema
importante, mas muito subnotificado por ser feito na clandestinidade –,
influenciados por uma sociedade ainda muito conservadora, que trata o
tema como questão religiosa e não de saúde pública, condenando as
mulheres a não receber atendimento adequado durante e após a realização
de procedimentos precários.
Na esteira do caso de Alyne, foi
lançado pelo governo federal, também em 2011, o programa Rede Cegonha,
que busca justamente garantir assistência integral na rede básica de
saúde do início da gestação até o segundo ano de vida do bebê. “A Rede
Cegonha trouxe basicamente garantia da referência para a atenção ao
parto, além da melhoria do pré-natal, maior realização de exames no
pré-natal”, diz Alaerte.
Segundo dados do SUS, de 2012, 62,4% das
gestantes do Brasil realizavam o pré-natal de forma adequada, com sete
ou mais consultas, enquanto 27,3% realizavam de quatro a seis consultas,
7,3% de uma a três, e 3% nenhuma consulta. Os dados apontam para uma
desigualdade racial de acesso ao pré-natal recomendado, com apenas 56,4%
e 54,8% das gestantes pretas e pardas, respectivamente, tendo acesso a
sete ou mais consultas — índice que chegava a 75% entre as mulheres
brancas e era ainda pior entre as mulheres indígenas, apenas 24,3%.
Para
Alaerte, apesar de o Ministério da Saúde ter investido valores
consideráveis na qualificação das profissionais, ainda é necessário
melhorar muito a rede de atenção básica, especialmente as equipes de
saúde da família, que, na teoria, são responsáveis por fazer o
acompanhamento das mulheres, desde criança, passando todas as
informações sobre direitos sexuais e reprodutivos para que possam se
planejar e ter a gravidez acompanhada. “É isso que a gente ainda não
tem. Temos na teoria, na prática, infelizmente, são poucas as
experiências que a gente tem no Brasil todo”, diz.
"Nenhuma mulher deve morrer de algo que pode ser prevenido no sécudo XXI"
https://www.youtube.com/watch?v=gbV8i5KXm0I
A enfermeira
considera que um dificultador é a limitação do número de médicos na
rede, insuficiente para prestar acompanhamento adequado a todas as
gestantes. Ela avalia que esse acompanhamento — especialmente questões
como a medição da pressão, pesagem e pedido de exames — poderia ser
dividido com equipes de enfermagem, mas que há um lobby da classe médica
— cristalizado na discussão a respeito do Ato Médico
— para maior concentração de responsabilidades em suas mãos. “A
gravidez não é doença. O pré-natal, então, é um acompanhamento. Pesar,
medir a pressão a arterial, solicitar os exames básicos de rotina, isso
pode perfeitamente ser feito por um enfermeiro”, defende.
Segundo
ela, somente com essas três ações, muito simples, seria possível
prevenir, por exemplo, a hipertensão específica da gravidez, a doença
que mais mata gestantes. “A gente não quer que nenhuma mulher morra, nem
a Marina, nem a Alyne. Uma com o pré-natal completíssimo pelo SUS, mas
na hora do parto ficou peregrinando e morreu, e a outra com um pré-natal
absurdo, só com ultrassom, e acabou morrendo do mesmo jeito. Ou seja, a
gente quer que todas as mulheres tenham minimamente um protocolo de
atendimento feito, que não seja o que o médico resolva fazer, que a
mulher seja bem orientada quando decide engravidar, que não seja com 10,
11, 12 anos, como infelizmente a gente tem casos, e que elas sejam
acompanhadas durante o pré-natal todo e durante o parto, tudo isso”,
finaliza Alaerte.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/mortalidade-materna-no-brasil-tem-raizes-no-racismo-na-falta-de-pre-natal-e-de-parto-adequado/
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