“É preciso evidenciar que a criminalização incide sobre um grupo bem específico de mulheres, a quem os mais diversos direitos são negados, provocando discriminação.”
Por Huffpost
Pelo menos 42 mulheres que fizeram aborto no estado do Rio de Janeiro
entre 2005 e 2017 foram processadas e respondem a processo criminal
pela prática, segundo levantamento da Defensoria Pública do estado
divulgado em meio à campanha dos 16 Dias de Ativismo Contra a Violência
de Gênero, que vai até amanhã (10).
De
acordo com o Código Penal, o aborto é crime no Brasil, com pena de um a
três anos, salvo em situações em que há risco de vida para a mulher ou
para o feto e em casos de estupro.
O
estudo definiu o perfil das mulheres que respondem à ação por terem
recorrido ao aborto para interromper uma gravidez indesejada: a maioria é
negra ou parda, têm entre 22 e 25 anos, já são mães, vivem na capital
ou na Baixada Fluminense e não têm antecedentes criminais.
“É
preciso evidenciar que a criminalização incide sobre um grupo bem
específico de mulheres, a quem os mais diversos direitos são negados,
provocando discriminação”, disse a coordenadora de Defesa dos Direitos
da Mulher da defensoria, Arlanza Rebello.
Além
do processo na Justiça, essas mulheres, em geral, tiveram que enfrentar
agressões físicas e psicológicas por causa do aborto, inclusive no
serviço de saúde, segundo a Defensoria Pública.
De acordo com a
coordenadora da pesquisa, Carolina Haber, os processos mostram que a
maioria recorreu ao aborto por desespero. “Muitas delas já têm filhos.
Então, [fazem] porque não têm a menor condição de cuidar [de outro
filho], porque estão em um relacionamento que está acabando e o pai
também não tem condições, ou ainda porque a situação financeira é
precária”.
Em todo o Brasil, segundo o Instituto Anis de Bioética, cerca de 500 mil mulheres fazem o aborto clandestino por ano.
Abordagem policial
Entre
os casos analisados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro para a
pesquisa, boa parte é de mulheres que abortaram sozinhas, no banheiro de
casa, com o uso de chás e medicamentos. Essas condições acabam levando a
complicações que as obrigam a procurar os serviços de saúde. “A mulher
que toma o remédio, ela não teve dinheiro para pagar uma clínica, ela
demora para tomar uma decisão, tem dificuldade de comprar o remédio. Aí
ela já está em estado avançado de gravidez e acaba indo para o hospital
no momento que teve uma complicação. Lá, ainda é hostilizada”, destacou
Carolina Haber.
Um dos processos trata de um caso ocorrido em 2008
no Hospital Municipal Souza Aguiar, no centro do Rio, em que um
policial militar se passou por assistente social para obter uma
confissão de uma mulher que fez aborto e depois deu voz de prisão a ela.
Procurada, a Polícia Militar não comentou o caso.
Em outro
episódio, no Hospital Municipal Miguel Couto, em 2010, uma mulher também
recebeu voz de prisão de um PM que atuava na unidade após atendimento
médico por aborto. E situação semelhante ocorreu no Hospital das
Clínicas de Jacarepaguá, unidade privada, em 2011. Atualmente sob nova
direção, o hospital respondeu que dados clínicos são preservados pelo
sigilo médico.
O sigilo entre profissionais de saúde e pacientes é
uma recomendação dos órgãos de classe e da Secretaria Municipal de
Saúde. Em nota, a pasta disse que orienta as unidades a atender “em
situação de abortamento indiscriminadamente”, independentemente de o
aborto ter sido espontâneo ou provocado e a informar a paciente sobre
planejamento familiar.
Clínicas clandestinas
Entre as 42
mulheres que respondem a processo, algumas delas fizeram o aborto em
clínicas clandestinas. Nesses locais, em geral, as mulheres têm
condições menos críticas de atendimento e assistência dos que as que
optam por procedimentos caseiros para interromper a gravidez.
De
acordo com o levantamento, as mulheres que procuram as clínicas abortam
com menos de 12 semanas de gravidez, o que, segundo a Defensoria
Pública, indica que aquelas em condições de pagar pelo procedimento
tomam a decisão com mais rapidez, submetendo-se a menos riscos que as
mulheres mais pobres, que costumam abortar em casa.
Famílias criminalizadas
Além
das mulheres que fazem aborto, muitas vezes o processo judicial recai
sobre parentes e pessoas próximas. Um dos casos citados pela Defensoria
Pública no levantamento envolve a mãe de uma adolescente que comprou
remédio para que a garota pudesse abortar. A pena para essa mãe neste
caso pode ser a mesma para a aplicada a exploradores que obrigaram
gestantes a tomar abortivos, a introduzir objetos no corpo ou que
agrediram a mulher com socos, chutes e pontapés para forçar a expulsão
do feto do corpo e interromper a gestação.
Em outro caso citado no
estudo, um homem não aceitou a gravidez de sua parceira e a sufocou até
que ela abrisse a boca para ingerir comprimidos de Citotec, um abortivo
conhecido, contra sua vontade. “Esse é o nível da violência física e
psicológica da mulher que aborta”, destaca Carolina Haber, coordenadora
da pesquisa.
Medo do processo
Por não terem antecedentes
criminais, as rés processadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
conseguem responder as acusações em liberdade. Mais da metade delas não
tem advogados particulares e são assistidas pela própria Defensoria
Pública.
O número de processos deste tipo preocupa profissionais
especializados em saúde da mulher. A médica sanitarista e ex-presidenta
do Comitê de Mortalidade Materna do Estado do Rio de Janeiro Tizuko
Shiraiwa diz que o dado é um alerta e destaca que o aborto clandestino é
uma das cinco principais causas de morte materna.
Um dado que
preocupa os especialistas é o fato de, em alguns casos, a investigação
contra as mulheres que fizeram aborto ter partido da rede de saúde ou de
familiares que pediram ajuda para socorrer a mulher em casa. “Quando
vemos que a mulher procura o hospital e do hospital ela pode sair presa,
ela pode não buscar socorro, ou não buscar a tempo, aumento o risco
dela morrer”, destacou Tizuko Shiraiwa. Segundo ela, as denúncias dentro
da rede criam uma situação de medo e maior risco para mulher.
Alternativas
Para
impedir a condenação das mulheres que respondem a processo no Rio por
aborto, a Defensoria Pública tem proposto acordos para suspender as
ações, mediante o cumprimento de condições como a notificação de mudança
de endereço e impossibilidade de a ré mudar de estado.
No Rio de
Janeiro, os abortos autorizados pela lei – em casos de risco de vida
para a mulher ou para o feto ou por estupro – são realizados em todas as
maternidades da Secretaria de Saúde, de acordo com o órgão. A unidade
de referência no estado para esses casos é o Instituto Municipal da
Mulher Fernando Magalhães, em São Cristóvão, na zona norte da capital
fluminense.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/maioria-das-mulheres-processadas-por-aborto-no-rj-e-negra-pobre-e-ja-tem-filho/
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