A existência de uma Escola de Princesas mostra como o estereótipo de
feminilidade resiste e como investe-se na desigualdade de gênero.
Todo sonho de menina é tornar-se uma princesa. Foi partindo desse
pressuposto equivocado que a Escola de Princesas abriu suas portas em
Uberlândia (MG) com a finalidade de, mais do que ensinar meninas de 4 a
15 anos a portar vestidos extravagantes e tiaras brilhantes,
resguardar valores e princípios morais e sociais. Entre eles, boas
maneiras e postura corporal, etiqueta à mesa, a importância da aparência
pessoal, como se “guardar” para o príncipe e restaurar a moralidade do
casamento.
Para o espanto geral, a proposta pitoresca convenceu famílias e se
alastrou. Além da matriz, três outras unidades da Escola de Princesas
funcionam no Brasil hoje; duas outras em Minas Gerais, nas cidades de
Uberaba e Belo Horizonte, e a terceira em São Paulo, inaugurada por
Silvia Abravanel, filha de Silvio Santos.
Desde que caiu na mídia, a existência das escolas é alvo de uma
avalanche de críticas. “Como se já não bastasse todas as novelas,
revistas e filmes, ainda temos que nos deparar com a institucionalização
do que é o ideário de mulher em uma escola”, indigna-se a antropóloga
Michele Escoura.
Autora da tese de mestrado Girando entre Princesas: performances e contornos de gênero em uma etnografia com crianças, a pesquisadora acredita que a “cultura das princesas” dissemina um estereótipo de feminilidade,
reforçando desde a infância o que a menina precisa ser para ser feliz.
“É uma visão excludente de felicidade porque nem todas se encaixam nesse
padrão ou querem segui-lo. E quando o negam, sofrem repreensões
sociais. Basta olhar para os comentários que fazem das mulheres que não
são vaidosas ou que não querem casar”.
Em sua pesquisa, Michele analisou como as princesas da Disney
influenciavam a visão de feminilidade de meninos e meninas da pré-escola
e concluiu que, para as crianças, a mulher feliz, ideal, era aquela
casada, com dinheiro e dentro de determinado padrão de beleza – jovem,
branca, cabelos lisos e longos.
“Fiz parte da pesquisa em uma escola pública de periferia onde a
maioria das meninas era negra e, quando brincavam de salão, falavam
sempre em fazer chapinha e luzes. Isso é o mais nocivo, pois leva uma
série de meninas a rejeitar o próprio corpo, a desenvolver uma baixa autoestima”, diz.
Para Hélio Deliberador, professor do departamento de Psicologia
Social da PUC-SP, o fascínio que as princesas exercem sobre as crianças
explica-se também pelo ângulo da fantasia, da imaginação, de sonhar com
um mundo imaginário. “Essas histórias são recorrentes porque se renovam
sempre. A indústria do entretenimento se aproveita desses símbolos para
trazer sempre algo novo”.
No entanto, diz o psicólogo, uma instituição como a Escola de
Princesas acaba afirmando um padrão estético hegemônico e afastando as
meninas da realidade. “É uma visão que não corresponde mais à
multiplicidade dos papéis de mulheres e homens. Faz uma divisão do papel
feminino que perdeu o sentido e reforça um mundo fantasioso que não
existe”.
A preocupação em moldar as meninas dentro de uma feminilidade
adequada aos estereótipos de gênero, da subserviência, que visa o
cerceamento ao espaço privado e das atividades domésticas não é nenhuma
novidade, diz Amana Mattos, professora de Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e pesquisadora na área de Infância, Juventude e
Gênero. “Faz parte de nossa história educacional. Se você olhar,
historicamente, alguns cursos de formação, em outros momentos, já
tiveram quase que essa função, de dar uma profissão feminina, geralmente
ligada ao cuidado, para a moça ter uma atividade até casar”.
Para a pesquisadora, a existência de uma instituição como a Escola de
Princesas diz muito sobre o momento em que estamos vivendo, com o
retrocesso da garantia de uma série de direitos. “Saiu uma pesquisa
mostrando que o Brasil é um dos piores países do mundo para ser menina.
Nesse cenário, ver uma notícia dessa é preocupante. Gênero e
diversidades sexual estão sendo atacados nas escolas por conta da força
da bancada conservadora, as políticas públicas em torno disso estão
sendo desmontadas. O que essa escola está fazendo é investir na
desigualdade de gênero”.
Mas como fugir da fase das princesas
que, cedo ou tarde, acaba acometendo as meninas? Os especialistas
concordam que não é possível criar os filhos dentro de uma bolha, imunes
a esse tipo de influência, mas é possível buscar outras narrativas, desenhos, livros
que abarquem outros modelos de feminilidade e masculinidade. “É preciso
dialogar com o que está aí. Saber que dar uma boneca das princesas para
a criança não é também aceitar o pacote completo. Faz parte do processo
educativo refletir sobre essas questões com os filhos. E a escola é um
lugar importantíssimo para isso”.
Michele acrescenta: “em si, não há nada de mau em aprender a
organizar a casa e cozinhar, são noções práticas da vida cotidiana que
dão autonomia. O problema de novo é restringir isso como
responsabilidade só das meninas”.
Disponível em: http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/o-desservico-da-cultura-das-princesas/
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