Gilmar Mendes, em crítica à Justiça do Trabalho, afirmou que haveria
uma espécie de hiperproteção do trabalhador no Brasil. Que teria passado
a ser tratado ''quase como um sujeito dependente de tutela''.
Quando
alguém fala em tutela, eu me lembro de um caso ocorrido em Brasília.
Centenas de trabalhadores e patrões lotaram, há alguns anos, a Câmara
dos Deputados para acompanhar os acalorados debates sobre o projeto que
prevê a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, com
aumento do valor da hora extra e sem redução salarial.
Na época,
em entrevista a uma rádio, o deputado federal Nelson Marquezelli
(PTB-SP), defendeu que os deputados devem manter a jornada do jeito em
que está para evitar que os empregados aproveitem as horas a mais de
lazer para encher a cara.
“Se você reduzir a carga horária, o que
vai fazer o trabalhador? Eles [os defensores da mudança na lei] dizem:
vai para casa para ter lazer. Eu digo: vai para o boteco, beber álcool,
vai para o jogo. Não vai para casa. Então, você veja bem, aí é que tá o
mal: ele gastar o tempo onde ele quiser, se nós podemos deixá-lo
produzindo para a sociedade brasileira.”
Essa declaração não é
desconectada da realidade e se repete com triste frequência não apenas
em nossa elite política, econômica e burocrática, mas também entre parte
do povão que, comprando esse discurso vazio e preconceituoso, torna-se
cão de guarda do capital alheio.
A última redução de jornada
ocorreu na Constituição de 1988 (aquela que deve ser picotada pelo
Congresso Nacional), quando caiu de 48 para 44 horas semanais. O Dieese
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)
calculou que uma jornada de 40 horas com manutenção de salário
aumentaria os custos de produção em apenas 1,99%. O aumento na qualidade
de vida do trabalhador, por outro lado, seria muito maior: mais tempo
com a família, mais tempo para o lazer e o descanso, mais tempo para
formação pessoal.
Gostaria de saber de Gilmar Mendes ao que ele se
refere quando fala em tutela: a ação dos que acham que o Estado
transforma o trabalhador em vagabundo com suas leis trabalhistas ou a
dos que tentam fazer com que a lei trabalhista seja usada para proteger a
dignidade das pessoas.
Creio, contudo, que nenhum do dois é tutela. O primeiro é arrogância e, o segundo, solidariedade.
Fico
pensando se o Brasil quer ter empresários inovadores e capazes de se
inserir no mundo com tecnologia e produtividade, respeitando os direitos
fundamentais de seus empregados. Ou deseja manter a velha cumplicidade
com o Estado e partes do Judiciário para, violando a lei, superexplorar o
trabalhador e, através da redução de custos pelo chicote e de uma
operação anacrônica, praticar concorrência desleal e dumping social.
Cumplicidade
reforçada pelo apoio garantido por uma estrutura que fornece incentivos
fiscais sem contrapartidas sociais, não combate à sonegação de forma
satisfatória e apresenta um sistema tributário injusto, que arranca mais
do trabalhador do que dos donos e executivos de corporações.
Se o
Poder Judiciário não é capaz de cumprir princípios norteadores do
Estado de Direito, como a dignidade, a qualidade de vida e a liberdade
de ir e vir, então para que Poder Judiciário? Para que Supremo Tribunal
Federal?
Em tempo: Quem é mais super protegido: um trabalhador que
reponde ao patrão num país com 10% de desemprego ou um ministro que
recebe acima de R$ 30 mil, não responde a ninguém, tem estabilidade,
dois meses de férias, carro, motorista e auxílio moradia? E que se for
pego vendendo sentença, a máxima punição será a aposentadoria antecipada
com garantia dos proventos.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas
para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/22/caro-gilmar-mendes-o-brasil-nao-tutela-trabalhador-tutela-empresario/
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