Tenho
visto muita gente inteligente pedir o fim das investigações da Lava
Jato, o fim das delações premiadas, o fim da prisão de empresários e
políticos envolvidos em corrupção para que o país volte à
''estabilidade'' e encontre um ambiente ''favorável ao crescimento''.
Discordo. Faço
coro com aqueles que pensam que o fio do novelo deve ir até o fim, doa a
quem doer, atingindo lideranças políticas e econômicas, de todos os
partidos envolvidos e não apenas em um ou outro. E venho dizendo isto
neste espaço muito antes da Lava Jato existir. Uma presidente foi
defenestrada. Que se defenestre outro baseado se forem apresentadas o
mesmo tipo de ''provas'' apresentadas contra sua antecessora. Se a
delação de um peixe grande, como Eduardo Cunha, representar o fim do
mundo, que venha o meteoro.
Porque só assim o país terá uma chance
de encontrar um ambiente favorável ao crescimento, não apenas de sua
economia, mas também de sua democracia. Em que todos realmente serão
iguais perante à lei, independentemente de sua política ser mais ou
menos afinada com o mercado.
Momentos como este, mais do que uma
catarse coletiva ou um show de pirotecnia, devem servir para darmos
saltos como sociedade. Além de consolidar a proibição de doações de
campanha por parte de empresas, seria fundamental avançarmos com a
responsabilização criminal de pessoas jurídicas e não apenas de seus
representantes. Num mundo em que o mercado insiste em garantir às
empresas mais direitos que as pessoas, nada mais justo que elas possam
ser criminalmente responsabilizadas como gente. Chega de princípios
voluntários de direitos humanos empresariais! Que venham regras
obrigando a empresas a serem responsáveis em termos de direitos
fundamentais.
Temos que ir até o fim das investigações não apenas
por conta dos crimes relacionados à corrupção, mas por todos os outros
conectados a ele.
A suruba institucionalizada no poder público (do
PT ao PSDB, passando sempre pelo eterno PMDB e congêneres) tem
comprometido a qualidade de vida de milhões de brasileiros. Por exemplo,
na construção civil, a vida em comunidades tradicionais em grandes
obras de engenharia (rodovias, ferrovias, hidrelétricas e demais
rolo-compressores feitos sem o devido planejamento e consulta pública), a
dignidade de trabalhadores envolvidos na construção de casas,
apartamentos e centros empresariais (trabalho escravo já foi encontrado
no ''Minha Casa, Minha Vida'', do governo federal, e em obras da CDHU,
do governo paulista), isso sem falar no fato de que a construção civil é
um dos principais vetores do desmatamento da Amazônia (você acha que a
madeira da floresta vira, preferencialmente, mesa de jantar na sala de
europeu e não entra na construção do seu prédio? Sabe de nada,
inocente).
Indignar-se com corrupção é fundamental, mas fácil.
Quero ver é aproveitarmos esse momento para aplicarmos mecanismos a fim
de combater a cesta de tragédias causadas pela liberdade dada
dinheiro no Brasil. Que, executando uma visão messiânica de progresso
elaborada pelo Estado em conjunto com o mercado, maltrata quem vive à
margem dos direitos em nome do ''bem estar'' do restante da sociedade.
Desde
sua fundação, o Brasil serve aos interesses de uma elite dominante, que
sempre considerou o Estado uma continuidade de suas posses. Foi assim
nas capitanias hereditárias, na época da Casa Grande das fazendas de
cana-de-açúcar e café e para os coronéis do sertão e, hoje, aos da
política e da comunicação.
Com a redemocratização na década de 80,
aumentou o número de casos de corrupção que chegam ao conhecimento
popular, seja por intermédio da mídia ou por instituições como o
Ministério Público e o próprio poder Legislativo. Não porque,
necessariamente, a coisa piorou, mas porque o acesso à informação
melhorou. Essa grande quantidade de casos divulgados e a sensação (real)
de que boa parte deles permanece impune foi levando a sociedade a
perder a confiança no Estado e na política. Essa descrença somada aos
exemplos históricos faz com que a população passe a acreditar,
erroneamente, que a corrupção já está forjada em nossa nação e que não
há nada a ser feito.
Mas quando a população perceber que governo e
Justiça funcionam e que as instituições falham menos do que o
aceitável, vai ser mais raro usar a parte ruim do chamado “jeitinho
brasileiro” para conseguir ter uma reivindicação atendida de forma mais
célere no dia a dia. Por exemplo, a implantação do Código de Defesa do
Consumidor – um dos mais avançados do mundo – substituiu a necessidade
de se ter uma boa relação com o comerciante para trocar um produto
defeituoso por um suporte legal. O brasileiro percebeu que esse
instrumento funcionava e passou a se utilizar das vias corretas para a
solução dos seus problemas. A ação rápida de Procons e do Instituto de
Defesa do Consumidor (Idec) também ajudaram nessa conscientização do
consumidor.
Respeitamos as leis porque elas vêm acompanhadas de
ameaças de sanções a quem transgredi-las. Para entender melhor, basta
lembrar o que acontece no cotidiano. A população da cidade de São Paulo
passou a utilizar o cinto de segurança não pelo fato de considerá-lo um
item de segurança importante, mas pelo medo da multa. E se o retrocesso
não baixar a partir de Primeiro de Janeiro, haverá tempo para
entendermos que podemos ir mais devagar nas marginais que, mesmo assim,
chegaremos em casa e, ainda por cima, salvaremos vidas.
Ao mesmo
tempo, o papel fiscalizador da imprensa precisa ser aprimorado. É
praticamente impossível que certos veículos de comunicação tragam à tona
denúncias de corrupção uma vez que eles estão nas mãos das mesmas
famílias que há décadas ditam os rumos da política. Isso acontece tanto
no Nordeste (os Magalhães, na Bahia, os Sarney, no Maranhão, os Collor,
em Alagoas) quanto no Sudeste. Isso se repete em certos veículos de
alcance nacional também, é claro.
Por fim, a palavra nepotismo vem
do latim ''nepote'', que significa neto ou sobrinho e ela começou a ser
utilizada para designar os privilégios que os papas concediam a seus
familiares. A prática de irmãos, primos, cunhados garantindo cargos
públicos é rejeitada pela sociedade, mas é uma das expressões mais
conhecidas da relação que a elite brasileira estabeleceu com o Estado.
Muitos parlamentares e governantes consideram normal colocar parentes em cargos que requerem confiança e dependem de nomeação.
A
solução para o problema passa em reduzir o número de cargos de
confiança, garantindo que o acesso a mais e mais funções se dê por
concurso público, por mérito, e não indicação. Cria-se, dessa forma, um
corpo burocrático permanente de qualidade, independente do poder de
plantão. O atual governo federal prometeu que reduziria cargos de
confiança, mas não cumpriu.
Só por curiosidade: em 2000, um
deputado federal defendeu ''limitar'' o abuso, criando uma ''cota'' para
o número de familiares que poderiam ser contratados como cargos de
confiança no serviço público.''Poder contratar para as funções um ou
dois parentes não é escandaloso'', afirmou.
Ele não é mais deputado.
Hoje é presidente da República.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas
para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/21/a-lava-jato-deve-ir-ate-o-fim-mesmo-que-leve-ao-fim-do-mundo/
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