O filme ‘Redemoinho’, de José Luiz Villamarim, é uma aula sensível das identidades de gênero hegemônicas, marcadas pelas assimetrias, hierarquias e violência.
Berenice Bento e Paulo Victor Leite Lopes
Ao terminar de assistir ao filme Redemoinho, nossa amiga
parecia sem ar. Estou sentindo dores no estômago, nos disse. Olhamo-nos e
fizemos um comentário econômico: “que filme violento”. E ela completou:
“que merda é a masculinidade”. Não tínhamos muita energia para
conversas. Tudo no filme era árido. Casinhas espremidas, emolduradas
pelos trilhos do trem e envelhecidas. Progresso e miséria. O suposto
silêncio da cidadezinha contrasta com os sons da modernidade, do avanço
tecnológico. Uma fábrica de tecido com seus barulhos ritmados e os
caminhos de ferro com hora marcada.
Redemoinho, dirigido por José Luiz Villamarim, conta no
elenco com Irandhir Santos, Júlio Andrade, Dira Paes e com a
interpretação genial de Cássia Kis, como mãe do personagem de Júlio
Andrade. Nenhuma frase, silêncio ou gesto é desnecessário na obra
inspirada no livro O mundo inimigo – Inferno provisório, Vol. II,
de Luiz Ruffato. A fotografia de Walter Carvalho conduz os sentimentos
do público através dos cuidadosos enquadramentos orquestrados, das
frestas de portas às distorções da imagem.
Júlio Andrade e Irandhir Santos em 'Redemoinho'
(Divulgação)
Há dois núcleos centrais no filme: o feminino e o masculino. O
feminino é composto por três mães e por duas outras mulheres: a esposa e
irmã. A esposa cuida da casa e se cuida para o marido. A irmã cuida da
mãe e trabalha na fábrica. Em comum: a espera. Todas elas aguardam pelos
homens do filme. As três mães apostam no retorno dos seus filhos, vidas
marcadas pela (des)esperança de quem só tem a expectativa como espaço
para experimentar seus afetos. A irmã, cuidadora de uma das mães, anseia
para que, ao menos na véspera do Natal, seu irmão visite a mãe no
hospital. A esposa, por fim, espera, cuidando da casa, o retorno do seu
marido pós-expediente. Mais que apenas o “cenário” de uma espera, o
tempo é aqui signo da disponibilidade. Os homens controlam e fazem o seu
tempo; as mulheres, conduzidas pelo tempo deles, ocupam-se até que eles
cheguem.
E os homens? Desde que os dois amigos de infância se encontram, os
diálogos nos levam para o mundo empobrecido da competição. Um tem carro;
o outro, bicicleta. Um casou com uma puta; o outro, tem mulher
respeitada e filhos. Um deixou a pequena Cataguases e foi para São
Paulo; o outro ficou e viu a indústria de tecidos se modernizar,
crescer! Riqueza e pobreza. Sucesso e fracasso. Um tem o pau pequeno; o
outro é o querido das putas. Os espaços sociais em que eles circulam ao
longo do filme são constitutivos das masculinidades, dos vínculos
mantidos entre eles e destes com aquele espaço: trabalho, bordel, campo
de futebol, bares. E, mesmo em casa, o amigo visitante, o dono do carrão
que veio de São Paulo, lida com a mãe como se ela fosse uma garçonete:
mais uma cerveja! Prepare um tira-gosto! A esposa, que espera por seu
marido em casa, não é informada do seu atraso, dos novos planos, ou
mesmo terá a sua ligação atendida. A conversa entre os amigos de
infância é intercalada por profundos goles de cerveja, suspiros marcados
e silêncios ensurdecedores. Poucas vezes vimos texto sobre
masculinidades hegemônicas com a secura narrativa de Redemoinho.
Os redemoinhos são fenômenos da natureza notados quando a velocidade
do vento levanta a poeira do local, o que, como consequência, os tornam
facilmente identificáveis a olho nu. Seu intenso movimento espiral ainda
tem a capacidade de arrastar o que está por ali, no solo, nas
cercanias. Com velocidade mais moderada que a de um tornado, não são
capazes de causar grandes transtornos, mas pequenos desajustes. O filme
não se chama assim à toa.
O encontro entre os amigos na infância é como um redemoinho que
levanta poeira, capaz de mobilizar eventos do passado, mas que também
arrasta uma série de elementos do presente para a espiral que forma. Em
questão, cenas, percursos, artefatos que produzem a competição, que
conduzem as masculinidades, que as tornam sujeitos pelos conflitos e
pelas acomodações que forjam. Também como um redemoinho, tais elementos
não são capazes de grandes transtornos, mas apenas dramatizam
desajustes. Ela, a masculinidade hegemônica, será reestabilizada no
retorno de ambos às suas casas, às mulheres que os esperam, ao seu papel
sem tensionamentos.
Há, contudo, um terceiro homem. O louco da cidade, filho da mãe que
perdeu o filho, seu irmão. Aquele que perdeu o juízo e nunca mais
encontrou. Jogado pelas ruas, vive na companhia de seus fantasmas. É
ele que irá materializar outro elemento estruturante dessas
masculinidades. Ele estupra a esposa, aquela que fica em casa esperando o
marido perfumada. Calculou, sem loucura, o momento exato do estupro. É
na hora em que o trem passa, quando o barulho seco das roldanas nos
trilhos e dos apitos irá diluir os gritos desesperados da esposa na
noite. A sua lucidez, a sua racionalidade, é reafirmada na violência
cometida, é performada na disponibilização do corpo da mulher – no caso,
não qualquer mulher, uma ex-puta.
Não há queixa. Não há Boletim de Ocorrências. Ela silencia. Quem iria
acreditar que uma ex-puta foi estuprada? Quem irá acreditar que a
mulher não é/está disponível? Redemoinho é uma aula sensível das identidades de gênero hegemônicas, marcadas pelas assimetrias, hierarquias e violência.
Berenice Bento é professora doutora da UFRN e Paulo Victor Leite Lopes é doutor em Antropologia Social na UFRJ
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quando-a-masculinidade-e-redemoinho/
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