Um grupo de 93 diplomatas e 25
oficiais e assistentes de chancelaria do Itamaraty divulgou, na
quarta-feira, uma carta pública criticando o "uso da força" para conter
manifestações e pedindo que líderes políticos "abram mão de tentações
autoritárias, conveniências e apegos pessoais ou partidários em prol do
restabelecimento do pacto democrático no país".
O texto foi
escrito coletivamente por diplomatas distribuídos por representações
brasileiras em diferentes partes do mundo - de Nova York a Moscou -, sem
a participação da cúpula do Ministério das Relações Exteriores,
chefiado desde março pelo senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), que participa
nesta semana de reuniões em Washington (EUA).
"Repudiamos o uso
da força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a
segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio
público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de
forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais",
diz o texto.
Na carta pública, intitulada "Diplomacia e Democracia", os
autores se dizem preocupados com o "acirramento da crise social,
política e institucional que assola o Brasil", pedem diálogo para a
"retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto
popular" e afirmam que conquistas importantes para a sociedade e a
relevância internacional do país "estão ameaçados".
"Diante do
agravamento da crise, consideramos fundamental que as forças políticas
do país, organizadas em partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve
considerar concepções dissonantes e refletir a diversidade de interesses
da população brasileira", diz o texto (leia a íntegra no fim desta
reportagem).
Segundo a BBC Brasil apurou em conversas com sete dos
diplomatas que assinam o texto, o estopim para a carta foi uma nota
oficial divulgada pelo Itamaraty na sexta-feira passada, em resposta a
críticas feitas por órgãos internacionais de direitos humanos sobre a
violência policial no país.
No texto, endereçado a representantes
das ONU e da OEA (Organização dos Estados Americanos), o Ministério das
Relações Exteriores surpreendeu ao adotar uma linguagem dura ao se
referir aos organismos internacionais.
"Tendencioso",
"desinformado", "má-fé", "cinismo" e "com fins políticos inconfessáveis"
foram alguns dos termos usados pelo Brasil como resposta às críticas
feitas pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUDH) e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em
entrevista concedida à BBC Brasil e em notas divulgadas à imprensa,
porta-vozes das duas entidades criticaram a violência policial em
protestos contra o governo, em Brasília, em operações urbanas na região
conhecida como cracolândia, em São Paulo, e em reintegrações de posse de
terrenos ocupados por sem-terra, como a que gerou 10 mortes no interior
do Pará.
Procurado pela reportagem para comentar a carta dos diplomatas, o Itamaraty não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Legitimidade e riscos
Os
diplomatas ouvidos pela BBC Brasil afirmam que a "postura defensiva e
agressiva" das notas emitidas pelo Itamaraty pode "fechar portas" e
prejudicar a imagem internacional do Brasil.
O país concorre neste
momento, por exemplo, a uma das três vagas abertas para o período de
2018 a 2021 na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA.
"Outros países podem deixar de votar na representante brasileira
se acharem que nosso compromisso com os direitos humanos está abalado",
avaliou uma diplomata.
"Ou nossa legitimidade pode ser colocada
em questão simplesmente pelo fato de termos atacado a CIDH. Aí a gente
perde credibilidade com outros países, que poderão nos enxergar na mesma
categoria de países que historicamente violam direitos humanos."
Todos
os entrevistados afirmam que o objetivo da carta não é um gesto de
insubordinação ou de confronto em relação ao ministério.
"Este
texto pode representar um primeiro passo para que possa haver espaço
para divergência e vozes dissonantes na diplomacia, porque isso é
saudável", argumentou um dos entrevistados.
"O lugar para o qual
sempre foi reservado o silêncio decidiu se colocar", disse outro,
citando a rígida hierarquia dentro da diplomacia.
A carta foi
assinada principalmente por diplomatas que acumulam entre 10 e 20 anos
de carreira no Itamaraty, com diferentes origens e inclinações
políticas.
Crise, violência, desenvolvimento e voto popular
Segundo
os entrevistados, diante da diversidade política entre os signatários e
de leis que regem a atividade diplomática, a carta "busca um tom
conciliador, não levanta bandeiras, nem faz críticas diretas a políticos
ou à política externa" do país.
Muitos dos signatários discordam,
por exemplo, da postura de aproximação adotada pelos governos de Lula e
Dilma Rousseff em relação à Venezuela - corroborando uma das principais
posições da atual gestão do Itamaraty.
"O problema é que, com
tanta agressividade, o Brasil ironicamente se comporta justamente como a
Venezuela, que tanto critica", avaliou dos autores da carta.
O
texto pede "diálogo construtivo e responsável" como caminho para "a
retomada de um novo ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto
popular e em consonância com os ideais de justiça socioambiental e de
respeito aos direitos humanos".
Os entrevistados afirmam que
querem chamar atenção para o acirramento da crise política e para os
riscos de uma eventual escalada de violência no país.
"Chegamos a
um ponto de preocupação tal com a crise, o estado da democracia e das
instituições brasileiras, que até diplomatas, que estamos
tradicionalmente em uma carreira muito discreta, decidimos nos
manifestar", assinala um dos diplomatas.
"Como diplomatas,
acompanhamos sempre a situação política de outros países e sabemos como é
fácil uma crise escalar para a instabilidade e mesmo para uma situação
de conflito", acrescenta.
Para outro entrevistado, o mote da carta é defender o legado do próprio Itamaraty.
"Não
dá para perder de vista a importância que a diplomacia brasileira teve
na construção, ao longo de décadas, do arcabouço internacional de
proteção e promoção dos direitos humanos. Não estamos rompendo com nada,
estamos reagindo à destruição do nosso capital diplomático", afirmou.
Represálias
O
número de signatários, que chegou a 180 no início da semana, caiu por
medo de represálias dentro do ministério, segundo os entrevistados.
"Há
três níveis: gente claramente insatisfeita com a nota (do Itamaraty
criticando ONU e o OEA) e disposta a se expor, tantos outros claramente
insatisfeitos, que cogitaram assinar, mas acharam mais prudente não se
expor, e outros também insatisfeitos com a nota, mas não com o todo",
explicou um deles.
A reportagem também conversou com um
conselheiro de uma embaixada que recuou em assinar o texto, apesar de
concordar com seu conteúdo.
"Muitos dos que concordam com o
conteúdo temem ser removidos de seus postos, ou exoneração de chefias",
disse, ressaltando que o direito a liberdade de opinião é protegido pela
Constituição.
"(Também temem) o fato de expor suas próprias
chefias, pois o Itamaraty é muito hierarquizado e baseado em relações de
confiança", afirma o diplomata.
Leia a seguir o texto completo divulgado pelos diplomatas:
Nós,
servidoras e servidores do Ministério das Relações Exteriores,
decidimos nos manifestar publicamente em razão do acirramento da crise
social, política e institucional que assola o Brasil. Preocupados com
seus impactos sobre o futuro do país e reconhecendo a política como o
meio adequado para o tratamento das grandes questões nacionais, fazemos
um chamado pela reafirmação dos princípios democráticos e republicanos.
2.
Ciosos de nossas responsabilidades e obrigações como integrantes de
carreiras de Estado e como cidadãs e cidadãos, não podemos ignorar os
prejuízos que a persistência da instabilidade política traz aos
interesses nacionais de longo prazo. Nesse contexto, defendemos a
retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira,
fundamentais para a superação do impasse.
3. Desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988, a consolidação do estado
democrático de direito permitiu significativas conquistas, com reflexos
inequívocos na inserção internacional do Brasil. Atualmente, contudo,
esses avanços estão ameaçados. Diante do agravamento da crise,
consideramos fundamental que as forças políticas do país, organizadas em
partidos ou não, exercitem o diálogo, que deve considerar concepções
dissonantes e refletir a diversidade de interesses da população
brasileira.
4. Para que esse diálogo possa florescer, todos
os setores da sociedade devem ter assegurado seu direito à expressão.
Nesse sentido, rejeitamos qualquer restrição ao livre exercício do
direito de manifestação pacífica e democrática. Repudiamos o uso da
força para reprimir ou inibir manifestações. Cabe ao Estado garantir a
segurança dos manifestantes, assim como a integridade do patrimônio
público, levando em consideração a proporcionalidade no emprego de
forças policiais e o respeito aos direitos e garantias constitucionais.
5.
Conclamamos a sociedade brasileira, em especial suas lideranças, a
renovar o compromisso com o diálogo construtivo e responsável, apelando a
todos para que abram mão de tentações autoritárias, conveniências e
apegos pessoais ou partidários em prol do restabelecimento do pacto
democrático no país. Somente assim será possível a retomada de um novo
ciclo de desenvolvimento, legitimado pelo voto popular e em consonância
com os ideais de justiça socioambiental e de respeito aos direitos
humanos.
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40110901
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