"O caminho é as pessoas irem às ruas. O Estado só vai mudar de baixo para cima. Não vai ser em um estalo de dedos que o Estado vai ser o que a gente quer.”
Filho de Vladimir Herzog, Ivo acredita que assassinato da vereadora Marielle Franco pode mobilizar mudança no País.
Vladimir Herzog: jornalista torturado e morto em 25 de outubro de 1975 no DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar.
Marielle Franco: vereadora do PSol assassinada em 14 de março de 2018 com 4 tiros na cabeça após denunciar ações de violência da Polícia Militar no Rio de Janeiro.
Mais de 40 anos depois do primeiro crime, o filho de Vlado, Ivo Herzog, vê no assassinato da socióloga uma esperança de mobilizar mudanças no País.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, o diretor-executivo do instituto
que leva o nome do pai lembrou do culto ecumênico na Catedral da Sé, no
centro de São Paulo, 6 dias após a morte do jornalista e comparou o ato
com as manifestações em homenagem à Marielle nesta quinta-feira (15).
A morte do meu pai simbolizou uma coisa muito importante, o início da derrocada da ditadura e o começo de uma redemocratização. Só há esperança que a morte da Marielle agora, pelo menos, una as pessoas para dar uma virada nesse cenário de abandono do poder público. Tem que se questionar o status quo que existe aí. Eu não tenho as respostas. Eu estou absolutamente chocado com a realidade.
Na avaliação de Ivo, o momento é para os brasileiros irem às ruas
mostrarem sua indignação e lutar por melhores nas condições de vida. "O
Estado só vai mudar de baixo para cima. Isso tem que ser uma exigência,
tem que ser as pessoas na rua, berrando a plenos pulmões 'chega, basta,
não aceito, não quero'. Tem que ter as Marias e Clarices, tem que ter
todos nós na rua", afirmou em referência à música O Bêbado e a
Equilibrista, um dos ícones da resistência à opressão no regime militar.
Milhares de pessoas se reuniram nesta quinta-feira (15) na
Cinelândia, centro do Rio, para protestar contra o assassinato de
Marielle. Ao menos 19 capitais brasileira também foram às ruas e atos de
apoio à vereadora e indignação com o crime foram registrados também em
Nova York (Estados Unidos) e Montevidéu (Uruguai).
Vigília no Rio de Janeiro pelo assassinato da vereadora Marielle Franco
começou na Câmara dos Vereadores com milhares de brasileiros em protesto
ao crime.
Relatora da Comissão da Câmara de Vereadores do Rio criada para acompanhar a atuação das tropas na intervenção federal na área de segurança
do Rio, Marielle denunciou nos últimos dias ações truculentas da
Polícia Militar em operações na Favela de Acari, na Zona Norte do Rio. A
socióloga nascida na Favela da Maré construiu ao longo da vida uma
trajetória de luta por direitos humanos e contra a violência policial. Ela foi assassinada no próprio carro, assim como o motorista, Anderson Pedro Gomes.
Para o filho de Vlado, são 2 casos de violência e omissão do Estado.
"Eram duas pessoas que o que buscavam era paz, justiça e democracia e
são barbaramente assassinadas. Meu pai por agentes do Estado. O
[assassinato] dela ainda se investiga, mas tem forte indício de
envolvimento da polícia. A gente vê mais uma repetição dessa violência
sem dimensão", afirmou.
Com duras críticas à atuação das forças de segurança, Ivo afirma que o
Brasil é um "país abandonado nas responsabilidades do Estado" em que a
polícia é um "exército fardado" que age para preservar os interesses do
Estado e contra a população.
Existe uma polícia, um exército fardado, uma polícia militar que é esse exército de ocupação onde a missão e a maneira que trabalha é para proteger os interesses do Estado e não a sociedade. A sociedade está deixada à mercê.
Configura os principais pontos da entrevista.
Violações de Direitos Humanos
Eu estou muito indignado, quase que revoltado [com o assassinato de
Marielle]. Faço um paralelo com o caso do meu pai porque eram duas
pessoas que o que buscavam era paz, justiça e democracia e são
barbaramente assassinadas. Meu pai por agentes do Estado. O
[assassinato] dela ainda se investiga, mas tem forte indício de
envolvimento da polícia. A gente vê mais uma repetição dessa violência
sem dimensão. Mais de 40 anos passados, e para onde a gente está
caminhando?
E a gente vai ter uma eleição agora que dentro da sua plataforma tem a
defesa da violência, de uma polícia violenta, de fortalecimento dessa
guerra onde o cidadão é inimigo do Estado e o Estado se arma para trazer
impunidade para si.
Culto em 1975 após a morte de Vladimir Herzog simbolizou início do fim
da ditadura. Filho do jornalista compara caso com mobilização pela morte
da vereadora Marielle Franco.
Debate da segurança pública e acesso às armas
O Brasil não tem segurança pública. Você tem uma Polícia Militar
treinada para eliminar o inimigo. É uma polícia que existe só para
proteger o Estado. A questão da segurança pública não tem acontecido só
no Rio de Janeiro... aqui em São Paulo a gente teve nesta quarta-feira a
polícia indo para cima de professores que protestavam sobre um tema que
lhes dizia respeito e saíram machucados. Foram atacados com bomba de
efeito moral.
Existe uma polícia, um exército fardado, uma polícia militar que é esse exército de ocupação onde a missão e a maneira que trabalha é para proteger os interesses do Estado e não a sociedade. A sociedade está deixada à mercê.
Quem tem dinheiro contrata a sua segurança, vive atrás de muros, em
condomínios fechados e quem não tem esse poder econômico está vivendo
uma roleta russa onde a qualquer momento a bala pode disparar contra a
cabeça dessa pessoa.
São milhares de jovens de periferia, mulheres, negros, que são
assassinados todos os anos e muitos pela polícia, pelo Estado. Eu estou
absolutamente consternado, não sei para onde a gente vai. As
perspectivas eleitorais desse ano não prometem trazer grandes respostas a
essas questões.
A morte do meu pai simbolizou uma coisa muito importante, o início da
derrocada da ditadura e o começo de uma redemocratização. Só há
esperança que a morte da Marielle agora, pelo menos, una as pessoas para
dar uma virada nesse cenário de abandono do poder público. Tem que se
questionar o status quo que existe aí. Eu não tenho as respostas. Eu
estou absolutamente chocado com a realidade.
Ivo Herzog critica ausência do Estado e afirma que policia militar é "exército fardado" a serviço dos interesses do Estado.
Segurança pública e redução de desigualdades
A segurança pública pode ser um tema do eixo, mas não é só isso. E o
abandono da educação? Da saúde? Da moradia? Do ir e vir, as vias
destruídas... e o abandono do saneamento básico? É um país abandonado
nas responsabilidades do Estado onde a gente tem visto que, a cada dia
que passa, a gente está andando para trás e não para frente. Estamos
numa situação mais precária do que estávamos.
Acho que é uma questão de falar: o governo está aí não para governar
para si e sim para servir o público. Isso não existe. Isso deixou de
existir. O público é inimigo do Estado e o Estado combate usando
instrumentos para que afaste os cidadãos desse diálogo.
O Estado primeiro se preocupa em como se preservar, em criar um arcabouço legal que lhe garanta impunidade, privilégios, viver numa dimensão e nós estamos aqui, com o que sobra disso daí, com o que sobra da capacidade do Estado de fazer alguma coisa por nós.
O Rio de Janeiro está no estado de falência completa por um processo
interno do Estado, que se corrompeu, que não se preocupou, que só montou
um arcabouço de privilégios até destruir e cair a cortina e deixar a
população de lado do jeito que está. Só que não é só o Rio de Janeiro. O
Rio de Janeiro é a grande vitrine. Mas tem vários outros lugares que
não são a cidade maravilhosa e estão também nesse abandono, com as suas
necessidades básicas de direito do cidadão esquecidas.
Em paralelo, tem um processo muito forte de desconstrução de valores
de direitos humanos. Há 2 dias um dos grandes jornais de São Paulo
publicou um artigo enorme de uma organização falando dos "manos dos
direitos humanos", desqualificando os valores de direitos humanos. É
toda uma cultura de violência e de desqualificação das pessoas que
pensam no coletivo porque elas estão questionando esse Estado que serve
para servir a si mesmo e não aos cidadãos. Espero que o acontecimento
desta quarta-feira fortaleça essa reflexão e comece a impor uma agenda
para a gente reverter isso.
Aos gritos de "Marielle, presente!", milhares foram às ruas na Avenida
Paulista após o assassinato da vereadora do PSOL no Rio de Janeiro.
Reação do governo Temer ao assassinato de Marielle
Não existe 'mais uma morte'. Nenhuma morte é 'mais uma morte'.
Nenhuma morte pode ser colocada nesse status de banalidade. Não é porque
eu não durmo com essa pessoa todas as noites, não sento para comer com
ela todos os dias, que ela deixa de ser importante no mundo. Cada morte é
uma morte inaceitável. O Estado tem que trazer essa responsabilidade
para si e repensar tudo.
A questão da intervenção, eu não gosto de entrar no mérito se ela
deveria ou não acontecer porque a minha opinião nesse aspecto é
irrelevante. A minha questão é quais as medidas efetivas que o Estado
está fazendo para resolver a violência? Porque na hora que essa
intervenção sair, se volta o estado de violência que existia antes
porque não existe nenhuma política pública para dar resposta.
O que está se criando é um ambiente de Copa do Mundo e de Olimpíada,
onde parece que está tudo bem. Você vê o Exército na rua, mas é uma
bobagem isso. É uma grande farsa, aquartelando as pessoas em guetos e
tirando elas da vitrina da cidade maravilhosa para se criar uma falsa
sensação de que está se resolvendo as coisas. É você jogar o cobertor em
cima de um incêndio, mas o Brasil está pegando fogo. Quando tirar o
cobertor, incêndio volta com a mesma força ou mais feroz ainda.
Que governo é esse que busca esse caminho teatral, mas que não
promove um questionamento de uma série de coisas no status quo que a
gente possa falar que está realmente criando um processo em que as
coisas vão melhorar? O que está se mexendo no sistema prisional, no
sistema jurídico? O que está se propondo em segurança pública?
A gente vê atos de total desrespeito, total violência da polícia e a gente se cala.
Eu vi há 3 dias na minha frente um carro da polícia parando um
entregador de comida, os policiais todos com arma empunhada, mirando
para o indivíduo que estava ali fazendo o trabalho dele. Como se fosse
um Exército combatendo um outro Exército, sendo que era um rapaz de seus
20 e poucos anos, numa moto, com uma mochila com uma pizza dentro. Que
país é esse que a polícia precisa agir com tamanha brutalidade? Qual a
proteção que ela está trazendo para a sociedade? Está criando um
ambiente de medo, de terror.
Intervenção federal de militares na segurança do Rio de Janeiro é medida
paliativa, diz Ivo Herzog, filho do jornalista Vladimir Herzog, vítima
da ditadura militar.
Mudança pelas eleições
Houve pequenos avanços quando o Legislativo começou a discutir a
reforma eleitoral, mas lá na frente criaram de novo um arcabouço legal
para se perpetuar no poder. Para a gente pensar numa mudança, você tem
que pensar numa renovação daquelas pessoas. As pessoas que estão nos
representando há 20, 30, 40 anos, desde a redemocratização, estão
fazendo muita coisa errada.
A gente vê os debates nas câmaras legislativas de [políticos] se
protegerem, de discutir foro privilegiado. Para que comece a haver
mudanças, tinha que ter um processo de renovação profundo. Acho que vai
haver uma certa renovação. Existem alguns movimentos sociais que acho
que vão trazer novas lideranças, mas a gente está muito distante ainda.
Existe um processo corporativista gigantesco acontecendo.
Enquanto as pessoas estão chorando no Rio de Janeiro a morte da Marielle, em outros lugares no Brasil você tem gente do Judiciário que está protestando, fechando as ruas, para manter o auxílio-moradia. É um descompasso, é uma sociedade absolutamente umbilical.
Enquanto não acontecer uma grande tragédia que faça a gente ter um
olhar pelo coletivo, o futuro para os nossos filhos é muito pessimista.
Eu tenho um filho de 20 anos e me preocupo muito com o futuro dele, de
uma maneira que eu nunca me preocupei a minha vida toda, em mais de 50
anos.
Nunca tive uma sensação como essa que o amanhã está indo numa direção
oposta ao que eu acredito, de uma sociedade mais egoísta, contra os
valores da justiça, da paz. Está difícil... alguma coisa vai acontecer
sempre, né. Não quero ser um cara que diz que está tudo ruim, mas está
tudo muito ruim. Tem coisa muito absurda. Uma pessoa ser executada com
tiros em pleno centro da cidade.
E isso que aconteceu com a Marielle, infelizmente acontece
diariamente nas periferias. Como a gente tem uma sociedade que ficou
passiva diante disso tudo? Que é 'mais uma morte'? Não existe 'mais uma
morte'. Enquanto o Estado pensar que é 'mais uma morte', somos uma nação
sem Estado. Somos uma nação órfã, que não tem quem nos represente com
legitimidade, com preocupação.
Brasileiros de pelo menos 19 capitais brasileiras foram às ruas em
protesto ao assassinato da vereadora Marielle Franco. Relatora da
comissão que acompanhava a intervenção federal no Rio, ela denunciou
violações feitas pela Polícia Militar.
Mobilização para mudança
Eu estou vendo milhares de pessoas nas ruas consternadas com o que
aconteceu com a Marielle. O caminho é esse. É as pessoas irem às ruas. O
Estado só vai mudar de baixo para cima. Não vai haver um estalo de
dedos e amanhã a gente vai ter o Estado que a gente quer.
Isso tem que ser uma exigência, tem que ser as pessoas na rua, berrando a plenos pulmões "chega, basta, não aceito, não quero". Tem que ter as Marias e Clarices, tem que ter todos nós na rua. Tem que acabar essa indiferença. A gente tem que colocar para fora nossa indignação. Aí talvez as coisas melhorem.
No caso do meu pai, no ato ecumênico na Catedral da Sé, foram dezenas
de milhares de pessoas e ali se começou a derrubar a ditadura. É mais
ou menos isso, dentro do contexto de hoje, 40 anos depois. É alguma
coisa assim que tem que acontecer.
Os próximos dias são vitais para se pensar em algum tipo de mudança.
Não dá para as pessoas pensarem que isso que aconteceu é o fim do mundo e
a partir de amanhã começar a discutir futebol nas esquinas. O tema é o
nosso direito à vida. O respeito à vida. As pessoas têm que ir para a
rua clamarem por seu direito à vida, e respeito e dignidade.
Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2018/03/16/morte-de-marielle-pode-mudar-o-pais-assim-como-a-do-meu-pai-diz-ivo-herzog_a_23387707/
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