Martír Silva é mulher, negra e defensora do feminismo e dos direitos humanos. Sentiu a morte de Marielle, mas a referencia presente, assim como as lutas que trava.
Mulher, negra, intelectual, líder. Características que, pasmem, podem ser afrontosas. Ameaçam, ao mesmo passo que fortalecem a busca por igualdade. Francisca Martír da Silva tem todas elas. Advogada, professora universitária, mestre em Políticas Públicas e assessora jurídica do Conselho Regional de Serviço Social e do deputado Guilherme Sampaio (PT). A mulher que se descobriu feminista antes mesmo de entender o recorte da própria negritude — e de tudo que isso significava — afirma que a democracia é o caminho para qualquer conquista. Mas que a garantia estatal de direitos não garante eficácia e, principalmente, não contempla o comportamento. A cultura sobre ser mulher precisa mudar. Para Martír, a morte da vereadora Marielle Franco (Psol), com quatro tiros, não deverá calar as vozes que contrapõem o que já está posto. Na verdade, aqueles que defendem os direitos humanos já são mesmo alvo desde sempre. Martír se referiu durante toda a entrevista como se Marielle ainda estivesse viva. Porque, suponho, seja assim que se sinta. (Sara Oliveira)
O POVO - O movimento feminista no Brasil realmente avançou?
Martír Silva: Avançou
na condição de se tornar um sujeito político, nas reivindicações, na
defesa dos direitos. E um outro elemento de avanço é a visibilidade que
se dá hoje ao recorte de raça para as mulheres. Durante muito tempo, o
feminismo foi um movimento político de defesa, mas viam as mulheres
como um monólito, como um bloco uniforme. É preciso distinguir as
mulheres a partir da raça, da região onde moram, da geração, da
orientação sexual. Esses recortes aprofundam sobre a vida as mulheres e
suas lutas específicas.
OP - O que é preciso para que esse feminismo mais distinto também avance?
Martír Silva: Políticas
públicas, precisamos de ação governamental dentro de um estado
democrático. E precisamos também promover revoluções cotidianas nos
comportamentos e na cultura, da forma de resistência das pessoas e da
sociedade. A medida que se proíbe a discussão de gênero, a verificação
dessas diferenças, a proposição de medidas que eliminem essas
diferenças, acaba-se impedindo o avanço. A ideia de que a ideologia de
gênero é nociva para a sociedade, disseminada pelos conservadores, é
muito ruim para a perspectiva do movimento feminista.
OP - Machismo e racismo estão sempre juntos?
Martír Silva: Estão
imbricados, são codependentes. E são necessários para sustentar um
certo padrão de sociedade que nós temos. Patriarcado e racismo são as
duas principais pilastras da sociedade clássica e capitalista. Então,
eles caminham juntos, se reforçam.
OP - Vivemos uma tendência de embranquecimento, de a mulher negra não se reconhecer negra de verdade?
Martír Silva: Existem
as denominações parda, morena, moreninha, mulata. Elas escamoteiam a
condição racial mesmo. Mas, nos últimos tempos, em especial as meninas
negras têm se empoderado nesse autorreconhecimento. Na escolha do
cabelo cacheado, nas roupas mais identificadas com a raça negra, temos a
marcha das mulheres negras...
Movimento racial
Quando começou, na década de 1980, a se assumir negra, Martír ouviu de
um amigo que a autoreferência era para ganhar eleições do Centro
Acadêmico
OP - Como foi esse autorreconhecimento para você ?
Martír Silva: Me
tornei mulher antes de me tornar negra. A pauta feminina chegou mais
cedo para mim, a militância começou aos 20 anos com o envolvimento em
grupos feministas. O recorte da negritude veio ao longo do tempo, com a
aproximação de questionamentos e da politização dessa pauta. Claro que
eu sabia que a minha pele era escura, mas se tinha uma ideia de que
toda família tinha uma pessoa com a pele escura. Meu pai tem a pele
escura, minha mãe, pele clara. Tenho irmãos de todas as cores. E como
isso era uma questão que escamoteava socialmente, a percepção dos
preconceitos e da discriminação também não era forte como hoje. Eu
referencio nas minhas companheiras negras que há uma certa exaltação
nessa autoidentificação. Quando você se descobre alguma coisa é como se
tivesse descoberto uma coisa fundamental sua que é muito positiva. Uma
coisa muito bem resolvida.
OP - O que significou lutar pelo feminismo quando você tinha 19 anos e hoje? Quais as diferenças?
Martír Silva: Nos
anos 1980, eu tive a oportunidade de participar de debates para
construção da própria Constituição. As lutas feministas ganhavam espaço
político, a luta contra a violência, a criação de equipamentos
públicos e de instrumentos de participação. Estávamos partindo do nada,
quando a mulher começava a surgir como sujeito político, quando houve a
mudança do poder parental. Mas não avançamos na cultura de relações de
gênero, que são seculares e vêm sendo questionadas o tempo todo. Uma
diferença que eu encaro como negativa nos tempos atuais é o
florescimento de posicionamentos machistas descarados, que nos chamam
de feminazi, que tratam de forma abjeta qualquer referência às
mulheres, sobretudo as feministas. A uma profusão de letras de
músicas... A história tem essa dinâmica. Nós temos escolas de princesa
em pleno século XXI.
Feminismo
"Avançamos muito, mas não do ponto de vista das relações de gênero, que
vêm sendo questionadas ao longo do tempo (...) Temos escola de princesa
em pleno séc XXI"
OP - Você afirma que é preciso democracia para que o feminismo consiga avançar. Como a morte da Marielle ameaça essa democracia?
Martír Silva: A
morte dela foi uma representação real, porque a vida dela foi
eliminada, e simbólica, do enfrentamento de forças que querem
interromper a democracia no Brasil. Foi um recado de que a eliminação de
pessoas defensoras dos direitos humanos é possível. Foi um recado de
muita coragem de quem o fez. Porque está assumindo riscos, primeiro o da
opinião pública, porque houve uma mobilização muito forte Brasil
afora. O que demonstra uma força de resistência das pessoas, da
sociedade. E de reconhecimento pela condição de mulher, de negra, de
defensora dos direitos humanos, moradora da favela, que Marielle
encarna. Será que se ela fosse homem, branco, de classe média, moradora
da zona sul, defendendo as mesmas posições, seria morta? É uma
pergunta que não quer calar. O ambiente antidemocrático é favorável à
força, à opressão, às condutas ilegais. O assassinato da Marielle só
pode ter acontecido num momento de fragilidade da democracia. Ela
conseguiu estudar, se tornou intelectual, galgou liderança na sua
comunidade, foi eleita. Conseguiu referenciar um pensamento político
que contraria todos os papeis que são dados para a juventude da
periferia.
OP - Conseguir conquistar tudo isso afrontou a quem?
Martír Silva: Os
conservadores, os neonazistas, os neofascistas. Porque não podemos
negar que hoje no Brasil existem braços politicamente organizados
desses segmentos. Não é à toa que a morte dela foi comemorada nas redes
sociais. Repito que a democracia fragilizada permite isso, que espaços
públicos de pensamento sejam ocupados por pensamentos
ultraconservadores.
OP - O que aconteceu à ela amedronta os ativistas por direitos humanos?
Martír Silva: Os
defensores de direitos humanos já sentem a fragilidade da segurança há
muito tempo. O que diferencia a morte da Marielle é que, além de
ativista, era ela uma parlamentar. A gravidade é o recado que se passa:
não temos limites sobre quem vamos exterminar. Por outro lado, as
grandes mobilizações no Brasil inteiro representam que há uma
determinação de que há resistência. Até porque é necessário. Sem essa
defesa, como vai ficar a população da periferia? A mercê do absurdo de
autoridades e da inacessibilidade de políticas públicas e direitos
sociais. Houve uma catarse, mas não para o medo, para o recuo. Ela cria
indignação e isso faz acumular força.
Disponível em: https://www.opovo.com.br/jornal/dom/2018/03/martir-silva-execucao-de-marielle-fortalece-a-luta.html?m=0
Nenhum comentário:
Postar um comentário