terça-feira, 20 de março de 2018

MARTÍR SILVA. EXECUÇÃO DE MARIELLE FORTALECE A LUTA

Martír Silva é mulher, negra e defensora do feminismo e dos direitos humanos. Sentiu a morte de Marielle, mas a referencia presente, assim como as lutas que trava.

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Mulher, negra, intelectual, líder. Características que, pasmem, podem ser afrontosas. Ameaçam, ao mesmo passo que fortalecem a busca por igualdade. Francisca Martír da Silva tem todas elas. Advogada, professora universitária, mestre em Políticas Públicas e assessora jurídica do Conselho Regional de Serviço Social e do deputado Guilherme Sampaio (PT). A mulher que se descobriu feminista antes mesmo de entender o recorte da própria negritude — e de tudo que isso significava — afirma que a democracia é o caminho para qualquer conquista. Mas que a garantia estatal de direitos não garante eficácia e, principalmente, não contempla o comportamento. A cultura sobre ser mulher precisa mudar. Para Martír, a morte da vereadora Marielle Franco (Psol), com quatro tiros, não deverá calar as vozes que contrapõem o que já está posto. Na verdade, aqueles que defendem os direitos humanos já são mesmo alvo desde sempre. Martír se referiu durante toda a entrevista como se Marielle ainda estivesse viva. Porque, suponho, seja assim que se sinta. (Sara Oliveira) 


O POVO - O movimento feminista no Brasil realmente avançou?  


Martír Silva: Avançou na condição de se tornar um sujeito político, nas reivindicações, na defesa dos direitos. E um outro elemento de avanço é a visibilidade que se dá hoje ao recorte de raça para as mulheres. Durante muito tempo, o feminismo foi um movimento político de defesa, mas viam as mulheres como um monólito, como um bloco uniforme. É preciso distinguir as mulheres a partir da raça, da região onde moram, da geração, da orientação sexual. Esses recortes aprofundam sobre a vida as mulheres e suas lutas específicas. 
 

OP - O que é preciso para que esse feminismo mais distinto também avance? 


Martír Silva: Políticas públicas, precisamos de ação governamental dentro de um estado democrático. E precisamos também promover revoluções cotidianas nos comportamentos e na cultura, da forma de resistência das pessoas e da sociedade. A medida que se proíbe a discussão de gênero, a verificação dessas diferenças, a proposição de medidas que eliminem essas diferenças, acaba-se impedindo o avanço. A ideia de que a ideologia de gênero é nociva para a sociedade, disseminada pelos conservadores, é muito ruim para a perspectiva do movimento feminista.  


OP - Machismo e racismo estão sempre juntos?

  
Martír Silva: Estão imbricados, são codependentes. E são necessários para sustentar um certo padrão de sociedade que nós temos. Patriarcado e racismo são as duas principais pilastras da sociedade clássica e capitalista. Então, eles caminham juntos, se reforçam.
OP - Vivemos uma tendência de embranquecimento, de a mulher negra não se reconhecer negra de verdade? 
Martír Silva: Existem as denominações parda, morena, moreninha, mulata. Elas escamoteiam a condição racial mesmo. Mas, nos últimos tempos, em especial as meninas negras têm se empoderado nesse autorreconhecimento. Na escolha do cabelo cacheado, nas roupas mais identificadas com a raça negra, temos a marcha das mulheres negras... 


Movimento racial Quando começou, na década de 1980, a se assumir negra, Martír ouviu de um amigo que a autoreferência era para ganhar eleições do Centro Acadêmico


OP - Como foi esse autorreconhecimento para você ? 


Martír Silva: Me tornei mulher antes de me tornar negra. A pauta feminina chegou mais cedo para mim, a militância começou aos 20 anos com o envolvimento em grupos feministas. O recorte da negritude veio ao longo do tempo, com a aproximação de questionamentos e da politização dessa pauta. Claro que eu sabia que a minha pele era escura, mas se tinha uma ideia de que toda família tinha uma pessoa com a pele escura. Meu pai tem a pele escura, minha mãe, pele clara. Tenho irmãos de todas as cores. E como isso era uma questão que escamoteava socialmente, a percepção dos preconceitos e da discriminação também não era forte como hoje. Eu referencio nas minhas companheiras negras que há uma certa exaltação nessa autoidentificação. Quando você se descobre alguma coisa é como se tivesse descoberto uma coisa fundamental sua que é muito positiva. Uma coisa muito bem resolvida. 


OP - O que significou lutar pelo feminismo quando você tinha 19 anos e hoje? Quais as diferenças? 


Martír Silva: Nos anos 1980, eu tive a oportunidade de participar de debates para construção da própria Constituição. As lutas feministas ganhavam espaço político, a luta contra a violência, a criação de equipamentos públicos e de instrumentos de participação. Estávamos partindo do nada, quando a mulher começava a surgir como sujeito político, quando houve a mudança do poder parental. Mas não avançamos na cultura de relações de gênero, que são seculares e vêm sendo questionadas o tempo todo. Uma diferença que eu encaro como negativa nos tempos atuais é o florescimento de posicionamentos machistas descarados, que nos chamam de feminazi, que tratam de forma abjeta qualquer referência às mulheres, sobretudo as feministas. A uma profusão de letras de músicas... A história tem essa dinâmica. Nós temos escolas de princesa em pleno século XXI. 


Feminismo "Avançamos muito, mas não do ponto de vista das relações de gênero, que vêm sendo questionadas ao longo do tempo (...) Temos escola de princesa em pleno séc XXI" 


OP - Você afirma que é preciso democracia para que o feminismo consiga avançar. Como a morte da Marielle ameaça essa democracia? 


Martír Silva: A morte dela foi uma representação real, porque a vida dela foi eliminada, e simbólica, do enfrentamento de forças que querem interromper a democracia no Brasil. Foi um recado de que a eliminação de pessoas defensoras dos direitos humanos é possível. Foi um recado de muita coragem de quem o fez. Porque está assumindo riscos, primeiro o da opinião pública, porque houve uma mobilização muito forte Brasil afora. O que demonstra uma força de resistência das pessoas, da sociedade. E de reconhecimento pela condição de mulher, de negra, de defensora dos direitos humanos, moradora da favela, que Marielle encarna. Será que se ela fosse homem, branco, de classe média, moradora da zona sul, defendendo as mesmas posições, seria morta? É uma pergunta que não quer calar. O ambiente antidemocrático é favorável à força, à opressão, às condutas ilegais. O assassinato da Marielle só pode ter acontecido num momento de fragilidade da democracia. Ela conseguiu estudar, se tornou intelectual, galgou liderança na sua comunidade, foi eleita. Conseguiu referenciar um pensamento político que contraria todos os papeis que são dados para a juventude da periferia.


OP - Conseguir conquistar tudo isso afrontou a quem? 


Martír Silva: Os conservadores, os neonazistas, os neofascistas. Porque não podemos negar que hoje no Brasil existem braços politicamente organizados desses segmentos. Não é à toa que a morte dela foi comemorada nas redes sociais. Repito que a democracia fragilizada permite isso, que espaços públicos de pensamento sejam ocupados por pensamentos ultraconservadores.  


OP - O que aconteceu à ela amedronta os ativistas por direitos humanos? 


Martír Silva: Os defensores de direitos humanos já sentem a fragilidade da segurança há muito tempo. O que diferencia a morte da Marielle é que, além de ativista, era ela uma parlamentar. A gravidade é o recado que se passa: não temos limites sobre quem vamos exterminar. Por outro lado, as grandes mobilizações no Brasil inteiro representam que há uma determinação de que há resistência. Até porque é necessário. Sem essa defesa, como vai ficar a população da periferia? A mercê do absurdo de autoridades e da inacessibilidade de políticas públicas e direitos sociais. Houve uma catarse, mas não para o medo, para o recuo. Ela cria indignação e isso faz acumular força.


Disponível em:  https://www.opovo.com.br/jornal/dom/2018/03/martir-silva-execucao-de-marielle-fortalece-a-luta.html?m=0

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