Como uma criança negra pode adquirir uma cidadania completa vendo o
negro ser exibido cotidianamente – salvo raras exceções – como escravo,
assalariado subalterno ou bandido?
Um jornalista da Rede Globo
diz com todas as letras que a buzina de um carro nas proximidades do
local onde realizava uma entrevista “era coisa de preto”. Outro,
colocado pelo governo golpista no cargo de presidente da Empresa Brasil
de Comunicação, divulga em pleno horário de trabalho mensagens racistas através da internet.
Parecem fatos isolados, originários de
comportamentos individuais doentios. Mas não são. Refletem o racismo
arraigado em amplos setores da sociedade que volta e meia vem à tona
fazendo-nos lembrar que mais de 300 anos de escravidão não se apagam tão
facilmente.
O Brasil depois da abolição não viveu a
segregação institucionalizada dos Estados Unidos ou o apartheid da
África do Sul, onde a discriminação racial era explicita. Aqui os negros
ao conquistarem sua libertação tornaram-se cidadãos formalmente iguais a
todos os outros. Apenas formalmente. Na vida real deixaram os grilhões
que os prendiam aos senhores para serem jogados na vala comum da
miséria, quando não da indigência.
Refletindo sobre esses acontecimentos, o abolicionista Joaquim Nabuco deixa tudo isso claro. Escreve no livro Minha Formação
que o movimento contra a escravidão no Brasil “era um partido composto
de elementos heterogêneos capazes de destruir um estado social levantado
sobre o privilégio e a injustiça, mas não de projetar sobre outras
bases o futuro edifício”.
E mais. Dizia que a realização da obra
abolicionista “parava assim naturalmente na supressão do cativeiro; seu
triunfo podia ser seguido, e o foi, de acidentes políticos, até de
revoluções, mas não de medidas sociais complementares em benefício dos
libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da
consciência pública, da expansão dos nobres instintos sopitados”. Para
Nabuco, “a corrente abolicionista parou no mesmo dia da abolição e no
dia seguinte refluía”.
Refluxo com consequências que chegam aos
nossos dias através das estatísticas recorrentes mostrando as
discrepâncias de renda entre a população branca e negra ou da
constituição da população carcerária brasileira formada em sua absoluta
maioria por negros e pardos.
São dados reais e palpáveis aos quais se
associam outros, de caráter simbólico, como o da ausência ou da
sub-representação do negro na televisão, especialmente na publicidade e
em telenovelas. Fato que levou uma dinamarquesa a dizer que há mais
negros na TV do seu país do que na televisão brasileira.
Como formar uma identidade negra se os
espelhos refletem imagens que não correspondem a ela. Em outras
palavras, como uma criança negra pode adquirir uma cidadania completa
vendo o negro ser exibido cotidianamente – salvo raras exceções – como
escravo, assalariado subalterno ou mesmo bandido?
Do mesmo modo formam-se identidades brancas
fundadas na ideia da superioridade racial. Constituem-se mentalidades
que diante do cerco simbólico racista naturalizam a relação desigual
revelada em situações as mais variadas que vão de comentários e
pretensas piadas à escolha, pela cor, das pessoas abordadas nas ruas por
agentes policiais.
No telejornalismo a situação é a mesma.
Apresentadores negros contam-se nos dedos e atrás das câmeras a situação
não muda. No jornalismo em geral as redações são formadas praticamente
apenas por brancos. São eles que falam sobre os negros, sobre suas
alegrias e angústias. A vivência negra, dessa forma, aparece na mídia
atravessada por intérpretes brancos que por maior boa vontade e retidão
de caráter que possuam nunca conseguirão transmitir o que os negros
sentem na pele.
O pior é que além de praticamente não
existirem nas redações, os negros nem sempre são tratados por brancos
capazes de entender o drama do racismo. Ao contrário, o difundem sem a
menor autocrítica como demonstram os exemplos recentes citados acima.
As duas agressões mencionadas possuem como
ponto comum o fato de terem sido cometidas por profissionais da
comunicação, ambos colocados em posições públicas onde atos e palavras
causam larga repercussão. E por consequência implicam em maior
responsabilidade, algo ao que tudo indica desprezado por seus autores.
O antídoto a esse estado de coisas é a
denúncia ampla e rápida dessas violações da dignidade humana, envolvendo
todos aqueles que lutam contra o racismo no país. Nesses casos
recentes, foi essa reação que determinou o imediato afastamento do
apresentador de TV das telas e a investigação pela Comissão Ética
Pública do governo federal do comportamento adotado pelo gestor da
Empresa Brasil de Comunicação. Não deixa de ser um alento.
Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/135/das-senzalas-aos-estudios-contemporaneos-racismo-naturalizado
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