O consenso obtido pela mídia bloqueia o imaginário social e os pobres delegam as decisões para os “sábios”.
A nova pesquisa do IBGE revela o que todos sabem e alguns simulam ignorar. O Brasil disputa o pódio da desigualdade
com o Lesoto e a Zâmbia. As manchetes da quinta-feira proclamam: o
rendimento médio mensal do 1% mais rico é 36 vezes maior do que os
recebimentos dos 50% mais pobres.
A pesquisa recém-divulgada tem maior abrangência e acuidade
no cálculo dos rendimentos, o que não permite comparações com as
informações capturadas em pesquisas anteriores. Mas o Índice de Gini já
colocava o Brasil entre os campeões da desigualdade, a despeito dos
esforços do governo Lula de minorar as dores e sofrimentos da pobreza
absoluta e elevar o padrão de vida da classe trabalhadora. Especialistas
argumentam que os mais ricos resistiram melhor à depressão de 2015 e
2016 do que os mais pobres.
Fiquei surpreso, não com o fenômeno, mas com a constatação. A
experiência histórica e universal registra a maior resiliência das
classes proprietárias e dos assalariados de escol no episódio de
encolhimento do nível de atividade. Esta é a marca registrada das
sociedades em que o poder econômico e político está distribuído desigualmente.
Os “pecados” de concepção e de administração das políticas
econômicas regressivas, como a brasileira, não são daqueles que podem
ser cometidos solitariamente por economistas, ministros da Fazenda ou
presidentes da República. Acidentes de tal monta causados por erros
individuais ou por pequenos grupos dirigentes podem acontecer na
história dos povos, mas estou convencido de que eles são menos
frequentes do que imagina o senso comum.
A desigualdade secular brasileira está na raiz da
reemergência dos antigos ideais do liberalismo econômico, apresentados
como o “último grito” da moda econômica. Nas confrontações que hoje
assolam e já assolaram a política brasileira,
nada mais velho do que o novo. A proliferação de caras novas destina-se
a esconder o rosto do velho e persistente poder da casa-grande
esculpido em pétrea solidez.
Nos empenhos da troca de máscaras, os disfarces de maior
sucesso no momento foram confeccionados por mãos hábeis. Os artesãos do
conservadorismo sabem esculpir com novos cinzéis as formas petrificadas
do velho arranjo oligárquico. São escultores altamente qualificados nos
ofícios do continuísmo com continuidade que encaixam, com ajustes mas
sem atritos, as máscaras do novo nos rostos encarquilhados dos velhos
senhores de sempre.
O consenso dominante dos dominantes trata de explicar que,
se os cânones de sua dominação não forem respeitados, a vida dos
dominados vai piorar ainda mais. Patrocinada pelo monopólio da mídia,
a formação desse consenso é um método eficaz de bloquear o imaginário
social, uma ação destinada a comprovar que a história humana não deve
ser entregue às decisões insensatas da democracia dos “pobres e
ignorantes”, mas mantida permanentemente sob o controle dos “sábios”.
Em seu rastro de contundências, o golpe de 2016 sacrificou a
República e espalhou os despojos às costas de 13 milhões de
desempregados. O apetite voraz de muitos brasileiros ricos e bonitos por
preconceitos de todos os matizes chegou ao ponto do regurgitamento.
Na onda recente de mastigação de impropérios racistas,
homofóbicos e regionalistas, tal voracidade encontrou auxílio nos
maxilares que proclamam as virtudes da “meritocracia”. Meritocracia no
Brasil é palavra de ordem para justificar a rapina praticada pelos
bonitinhos da finança inútil e predatória. Rapina da riqueza produzida
pelo esforço coletivo dos empresários, os que sobraram e ainda insistem
em produzir “coisas” e ideias inovadoras, juntamente com seus
trabalhadores.
A diferenciação de renda e riqueza engendrada pelo poder do
capital estéril veio acompanhada pela rejeição do “outro”. A rejeição é
mais profunda porque atingiu, de forma devastadora, os sentimentos de
pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos
subjetivos de diferenciação e desidentificação em relação aos “outros”,
ou seja, à massa de pobres e miseráveis que “infesta” o País. E essa
desidentificação vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo agressivo e antirrepublicano. Uma espécie de caricatura do americanismo.
É ocioso dizer que tais expectativas e anseios não são um
desvio psicológico, mas enterram suas raízes nas profundezas da
desigualdade que há séculos assola o País. Produtos da desigualdade
secular e daquela acrescentada no período do desenvolvimentismo, as
classes cosmopolitas têm sido, ao mesmo tempo, decisivas para a
reprodução do apartheid social e impiedosas na crítica do
desenvolvimento nacional, a partir de um primeiro-mundismo abstrato e
não raro, vulgar.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/revista/981/peregrinacoes-da-desigualdade
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