Projeto de Ecologia para o Congresso Mundial da IV Internacional
Introdução
A dominação que exerce a humanidade sobre o sistema Terra aumenta, de
forma cada vez mais rápida, desde os anos 1950. No começo do século
XXI, esta imposição nefasta do homem sobre a natureza alcança níveis
extremamente alarmantes e continua crescendo em quase todos os âmbitos.
Existe um risco real e não depreciável de que esta pressão quantitativa
crescente (perceptível em todas as regiões do planeta) desemboque em uma
transformação qualitativa, que poderia ser brusca (daqui a alguns
decênios) e em grande parte irreversível. O Sistema Terra entraria,
então, em um novo regime de equilíbrio dinâmico, caracterizado tanto por
condições geofísicas e geoquímicas muito diferentes das atuais, assim
como por uma forte diminuição da riqueza biológica. Além das
consequências sobre os outros seres vivos, a transição em direção a uma
nova era geológica colocaria em perigo, de um modo geral, centenas de
milhões de seres humanos dentre os habitantes mais pobres do planeta, em
especial: mulheres, crianças e pessoas idosas. No máximo, um desastre
ecológico de proporções globais poderia ocasionar o colapso de nossa
própria espécie.
O risco aumenta dia a dia, mas ainda estamos no tempo de neutralizar
ou, pelo menos, limitar e conter a catástrofe. Efetivamente: não é a
existência humana, em geral, a causa determinante desta ameaça, e sim o
modo de produção e reprodução social desta existência, que também
implica um modo de distribuição e consumo, além de determinados valores
culturais. Este sistema, em vigor desde quase dois séculos – o
capitalismo – é insustentável, porque a concorrência para obter lucro,
que é a sua força motriz, implica numa tendência cega ao crescimento
ilimitado da produção (ao produtivismo), incompatível com os fluxos e
ciclos limitados da matéria, bem como com a energia no sistema Terra. Ao
longo do século XX, os chamados países do “socialismo real” foram
incapazes de oferecer uma alternativa à destruição produtivista do meio
ambiente. No início do século XXI, a humanidade encontra-se diante de
uma obrigação sem precedentes: controlar seu desenvolvimento em todos os
âmbitos, a fim de torná-lo compatível com o equilíbrio ecológico e os
limites do meio ambiente, no seio do qual, esta produção é desenvolvida.
Nenhum projeto político pode se situar à margem desta conclusão dos
estudos científicos sobre a “mudança global”. Ao contrário, todo projeto
político deve ser julgado, em primeiro lugar, por sua compreensão deste
risco, pelas respostas que oferece para a solução deste problema, mas
estas respostas precisam estar em concordância com as exigências
fundamentais da dignidade humana. Sendo que, estes projetos políticos
precisam articular, no seu programa, a reflexão ecológica com outras
questões, como: as sociais e as econômicas.
- Aceleração da destruição do meio ambiente humano e suas consequências
1.1. Quase todos os indicadores dão o alerta
1.1.1. A dominação antrópica (relativa ao ser
humano) sobre a natureza deve ser entendida de forma global, levando em
conta o conjunto das facetas da degradação ambiental, suas interações
mútuas, bem como suas interações com o desenvolvimento humano. Os
trabalhos do International Geosphere-Biosphere Programme
(IGBP) [Programa Internacional da Geosfera-Biosfera] identificam nove
determinantes que precisam de uma atenção especial por parte da
humanidade, se ela quiser garantir sua existência em boas condições: a
mudança climática, a destruição da camada de ozônio, o atentado à
integridade da biosfera (perda da biodiversidade), a introdução de novas
entidades (moléculas químicas, nanomateriais e materiais radioativos), a
acidificação dos oceanos, o consumo da água doce e o impacto sobre o
ciclo hidrológico, as mudanças no uso dos solos, a alteração dos ciclos
biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo e, por último, a carga
atmosférica em aerossóis.
1.1.2. Para cada um dos parâmetros, as pesquisadoras
e os pesquisadores estabeleceram um limiar de risco. O primeiro estudo,
publicado em 2009, estimou que estes limiares superaram-se em três
âmbitos: a mudança climática (provavelmente se o nível de risco pela
concentração atmosférica de gás de efeito estufa tiver aumentado), a
violação da integridade da biosfera (a atual onda de extinção das
espécies – a sexta na história da Terra – é mais rápida e maior que a
precedente, acontecida há sessenta e cinco milhões de anos, que
correspondeu ao desaparecimento dos dinossauros), e a alteração do ciclo
do nitrogênio (a atividade humana transforma mais nitrogênio
atmosférico em nitratos e outros componentes reativos que asfixiam a
vida aquática e degradam os solos do que todos os processos naturais
tomados em seu conjunto). A atualização deste estudo, que foi publicado
em 2015, acrescenta um quarto limiar, que seria: o do uso do solo
(desmatamento, extensão de terras cultivadas, secagem de zonas úmidas,
destruição dos habitats). Os limiares de risco para as “novas entidades”
e os aerossóis atmosféricos não foram objetos de nenhuma estimativa.
No que se refere ao boletim de saúde global, o estado da camada de
ozônio estratosférico é o único âmbito em que há uma melhora (as
emissões dos gases destruidores da camada de ozônio têm diminuído em 80%
desde que entrou em vigor o Protocolo de Montreal de 1989). Este único
ponto positivo mostra que é possível agir, (pois o mesmo representa um
vetor para a luta), mas não modifica o quadro geral: a situação do meio
ambiente, no seu conjunto, é catastrófica.
1.2. Mudança Climática: centralidade e enorme risco
1.2.1. O aumento da temperatura média da superfície
terrestre, como fruto da acumulação de gases do efeito estufa na
atmosfera constitui, mais que provavelmente, o parâmetro principal da
destruição em curso. Além disto, este parâmetro está conectado a vários
outros, como: a acidificação dos oceanos, a perda da biodiversidade, as
mudanças no uso dos solos e, principalmente, a carga atmosférica de
aerossóis. Assim, a mudança climática ocupa objetivamente uma posição
central. A temperatura média mundial aumentou 1,1ºC desde a era
pré-industrial (o aquecimento é três vezes superior no Ártico e na
península Antártica), a um ritmo 0,17ºC/por década entre 1970 e 2015
(170 vezes mais elevada do que as variações médias do Holoceno). Na
ausência de medidas radicais, o aquecimento médio global poderia
alcançar 6ºC ao longo do século XXI (cerca de duas vezes mais que o
crescimento da temperatura desde a última glaciação, ocorrida há 20.000
anos). Entre 1970 e 2015, a concentração atmosférica em CO2 aumentou em
75 ppmv (partes por milhão em volume): no ritmo de 16,6 ppmv por década,
que seria 550 vezes superior àquela que se deu entre a metade do
Holoceno e a revolução industrial, bem como 100 vezes mais elevada que
as estimativas para o crescimento natural de CO2, no primeiro momento,
após a última glaciação. Em 2017, a concentração atmosférica de CO2
alcançou 410 ppmv. Uma cifra sem precedentes, pelo menos, nos últimos
três milhões de anos.
1.2.2. O fenômeno acontece numa rapidez sem
precedentes. Sendo que, as emissões de dióxido de carbono, de gás
metano, de óxido nitroso, e de diversos gases industriais (com alto
poder radioativo, que são potenciais “aquecedores”) emitidos devido à
atividade humana, constituem 95% deste problema. As emissões antrópicas
mais importantes são as emissões de dióxido de carbono proveniente da
queima dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás natural) e, em
menor medida, do desmatamento. A concentração atmosférica atual em
dióxido de carbono supera significativamente o limiar de risco, que
estaria estabelecido em torno de 350 ppmv. Em todo caso, estamos
chegando perto de uma situação limite em que, a mudança climática
começaria a ganhar uma forma não linear, como consequência das
“retroações positivas” [O conceito de “retroação”, que foi introduzido
através dos trabalhos do matemático estadunidense (considerado o
fundador da cibernética) Norbert Wiener (1894-1964), rompe com o
princípio de causalidade linear, admitindo a ideia de círculo causal. O
círculo de retroação de Wiener (chamado de feedback) permite, sob a sua
forma negativa, estabilizar um sistema e, por outro lado, sob a sua
forma positiva, este círculo funciona como um mecanismo amplificador]. É
quase certo, por exemplo, que a diminuição da camada de gelo do Mar
Ártico constitui um fenômeno irreversível; pois bem, esse retrocesso
ocasiona a redução da superfície de irradiação solar refletida pela
Terra (albedo); quer dizer, a aceleração do aquecimento. A emissão de
gás metano, como fruto do descongelamento de permafrost [tipo
determinado de solo formado por gelo, rocha, sedimentos, que armazena
uma grande quantidade de carbono] constitui outra retroação positiva
muito inquietante, porque o poder radioativo desse gás é trinta vezes
maior em comparação com o CO2. Até este momento, os bosques e os oceanos
continuam absorvendo anualmente em torno da metade de CO2 emitido,
tendo a função de “sumidouros de carbono”. O enfraquecimento desta
capacidade de absorção (provocará, por exemplo, a transformação da
Amazônia em savana) constituiria um ponto de inflexão enorme. Por outro
lado, não é menos grave a capacidade de absorção de CO2 pelos oceanos:
pois a dissolução de gás carbônico provoca a acidificação dos oceanos,
que ameaça a vida marinha no seu conjunto.
1.2.3. Não há dúvida de que estamos diante de um
perigo eminente, devido às mudanças, de grande importância, não lineares
e irreversíveis, que implicam, entre outras coisas: o aumento em vários
metros do nível dos oceanos (6 a 13 metros, segundo estudos
paleoclimáticos), a intensificação dos fenômenos meteorológicos extremos
e uma redução da produtividade agrícola. Esta situação precisa ser
mudada de forma urgente, já que, segundo os cientistas, em quinze anos
no máximo, a humanidade esgotará os “créditos de carbono” [O mercado de
créditos de carbono surgiu na primeira década deste século. A partir de
2005, com a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, foi criado o
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), que tem como meta a redução
certificada das emissões], que lhe oferece 66% de possibilidade de não
superar 1,5ºC de aquecimento em relação à era pré-industrial. No
entanto, não é seguro que um aquecimento dessa dimensão (1,5ºC) não
ocasione, em si mesmo, graves consequências.
1.3. … Mas não o único
Segundo numerosos indicadores, a biosfera sofreu importantes mudanças
nefastas, em particular, nos últimos decênios. Por exemplo: entre 1970 e
2012, a população de animais selvagens vertebrados diminuiu 55%, fruto
da pressão combinada da sobre-exploração (que inclui a sobrepesca), da
destruição do meio ambiente devido a sua degradação e à contaminação, da
mudança climática, do surgimento de espécies invasoras e de
enfermidades. Os oceanos não estão somente mais quentes (temperaturas
que se aproximam de um grau Celsius acima dos níveis pré-industriais), e
sim muito mais ácidos, com sua porcentagem de oxigênio tendo diminuído
cerca de 2,1% em apenas 50 anos. A acidificação dos oceanos está entre 3
a 7 vezes mais elevada e setenta vezes mais rápida em comparação com o
período final da última glaciação. Segundo as simulações de mudança
global, que contemplam pouca ou nenhuma medida de atenuação deste
problema, os oceanos frios ficarão subsaturados em aragonita (uma das
formas do carbonato de cálcio) antes do fim do século, o que
impossibilitará a sobrevivência de numerosas formas de vida, causando um
impacto a todos os níveis trópicos marinhos. A perda de oxigênio está
diretamente relacionada com a mudança climática, porque o aquecimento da
superfície oceânica aumenta a estratificação das massas de água, que
inibe o movimento vertical e a mistura, reduzindo desse modo o fluxo de
oxigênio em direção ao fundo do oceano, com a probabilidade de alcançar
uma proporção de 1:1 a partir do ano de 2050, em um cenário de “business
as usual” [segue tudo como sempre].
1.4. Mais do que sobrestimar, subestimam-se as ameaças
1.4.1. A incerteza das projeções científicas acaba
não apontando a realidade da ameaça nem sua iminência. Ao contrário, em
numerosos casos, os riscos são subestimados, ao invés de serem
sobrestimados. Por exemplo: sabe-se que a afluência do fósforo na água
pode provocar a morte dos oceanos por anoxia, e que este fenômeno está
sendo produzido atualmente na Terra. Isto leva-nos a acreditar que o
limiar do perigo continua sendo indeterminado. Imprecisões deste tipo
não permitem duvidar da realidade desta ameaça nem de sua possível
imanência. Pelo contrário, em numerosos casos, teme-se que as mesmas se
traduzam mais em uma subestimação do que uma sobrestimação do perigo.
Como exemplo, as consequências negativas das 100.000 moléculas que são
produzidas pela indústria química (inexistentes na natureza, e que um
determinado número delas não podem ser ou são muito difíceis de serem
decompostas), começam a ser, cada vez mais, conhecidas (muitas delas,
sobretudo, são cancerígenas ou causam perturbações endócrinas, que
afetam a capacidade reprodutiva), mas os efeitos do coquetel dessas
substâncias são menos conhecidos, enquanto o impacto dos nanomateriais é
muito menos conhecido ainda. É mais que provável que um conhecimento
maior destes materiais, reduzirá o limiar de risco relativo a esse
parâmetro que, consequentemente, também poderia ser solucionado.
1.4.2. Na realidade, cada avanço no conhecimento
conduz a conclusão de que os limiares da periculosidade devem situar-se
mais baixos do que nas estimativas precedentes. Os dois graus de
aquecimento, por exemplo, já não são considerados como um limite seguro.
A subestimação dos riscos está bem estabelecida no âmbito climático: a
ciência está cada vez mais eficaz, mas a realidade dos efeitos que são
observados, ao mesmo tempo em que confirmam as hipóteses teóricas, são
muitas vezes consideravelmente mais graves que as projeções dos modelos
matemáticos. Esta subestimação dos riscos é produto, sobretudo, do
caráter, por definição, conservador das sínteses de investigação, como
nos informes do Intergovernmental Panel on Climate Change
(IPCC, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), e da
dificuldade de compreender as dinâmicas não lineares. No entanto, os
fenômenos subjetivos não podem ser depreciados, tais como: a autocensura
das investigadoras e dos investigadores, que às vezes custam a aceitar
suas próprias conclusões extremas. Ao mesmo tempo, suas concepções
ideológicas podem distorcer suas conclusões no sentido de uma
subestimação das possíveis soluções. Isso quer dizer que, parece que
estas soluções podem vir somente através dos avanços tecnológicos
revolucionários, e não da capacidade da humanidade para autorregular seu
desenvolvimento e sua relação com o meio ambiente. O GT3 do GIEC
constitui um exemplo típico deste viés ideológico: “Os modelos
climáticos assumem o comportamento de mercados competitivos em pleno
funcionamento” (IPCC, AR%, WG3). A política científica, assim como os
mecanismos de financiamento dos projetos de pesquisa facilita este viés
ideológico que conduz a conclusões questionáveis. Como consequência
disso, não são levadas em conta propostas eficazes e relativamente
evidentes para evitar a catástrofe, ou ao menos limitá-la, devido ao
fato de colocarem em questão o modo social de produção e o tipo de
relação da humanidade com a natureza que se deriva do mesmo, o que faz
com que estas propostas sejam classificadas como “utópicas”.
1.5. Um importante amplificador da crise social
1.5.1. A destruição do meio ambiente humano
constitui, desde então, um importante amplificador da crise social.
Afeta tanto ou mais os sistemas de saúde, na medida em que estes se veem
minados pelas políticas de austeridade. A contaminação atmosférica
produz a cada ano cerca de três milhões de mortes prematuras no mundo.
As partículas finas, produto, sobretudo, da queima dos combustíveis
fósseis, são responsáveis por 6% das mortes por câncer de pulmão. Um
exemplo: a contaminação do ar é o principal risco sanitário ao meio
ambiente na União Europeia (formada por 28 Estados-Membros), e seu custo
para os sistemas de saúde estima-se entre 330 e 940 bilhões de euros
anuais. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cifra de mortes
por envenenamento químico se situa em cinco milhões de pessoas.
1.5.2. A mudança climática, que se encontra, do
mesmo modo, no núcleo da destruição do meio ambiente, está no centro dos
impactos sociais do mesmo. Numerosos exemplos, inclusive nos países
chamados “desenvolvidos”, mostram que as desigualdades sociais
encontram-se exacerbadas: de classe, de gênero e de raça. Além das
vítimas diretas, os fenômenos meteorológicos extremos (inundações,
secas, ondas de calor, ciclones, etc…) desestabilizam as condições de
existência dos povos indígenas, contribuem para arruinar os pequenos
camponeses e as pequenas camponesas, aceleram a concentração da
propriedade da terra e favorecem a apropriação privada dos espaços, bem
como dos recursos, degradando as condições de vida das camadas mais
pobres da sociedade. O crescimento dos riscos climáticos degrada
determinados territórios (e as vidas de seus habitantes), assim como
favorece a especulação sobre outros.
1.5.3. O aquecimento, o crescimento do nível dos
oceanos, a salinização dos solos, a desertificação, o derretimento do
permaforst, etc…, hão se convertido nos novos determinantes da migração
de populações; em especial, do êxodo rural que engorda as metrópoles,
rodeadas de favelas. Por sua parte, esta situação tem gerado novos
problemas sociais e ecológicos. As retroações sociais são geralmente
negativas, em especial para as mulheres, confrontadas a crescentes
dificuldades para assegurar sua subsistência e a de seus filhos e
filhas, e encontrando-se sem autonomia relativa, para garantir seu papel
importante, na maioria das vezes, no que se refere à produção de
alimentos. Geralmente, as causas das migrações que possuem uma relação
com o meio ambiente se combinam com causas humanas, como: o desemprego
crônico, o racismo, a repressão das liberdades democráticas, as guerras,
etc… Segundo as estimativas, mais de cento e sessenta milhões de
pessoas refugiadas são, ao menos em parte, refugiadas e refugiados
devido aos problemas ambientais. E entre elas, vinte e cinco milhões
seriam refugiadas devido ao problema da mudança climática. A maioria
destas pessoas desloca-se no interior de seu próprio país. No caso
extremo de determinados Estados insulares do Pacífico: povos inteiros se
veem ameaçados de desenraizamento, porque seu país pode desaparecer, ou
seja, ser literalmente apagado do mapa.
1.5.4. O controle de determinados recursos ameaça
tornar-se uma nova fonte de conflitos; sobretudo, a guerra da água em
regiões áridas ou desérticas. Nas próximas décadas, entre 150 e 200
milhões de seres humanos poderão ver-se obrigados a abandonar suas
casas, em consequência do crescimento do nível dos oceanos em 80 cm.
Globalmente, no marco do modo de produção atual, não há adaptação
possível ao aquecimento de 3º a 4ºC com a população de nove bilhões de
indivíduos, de acordo com a previsão para o final do século. Desprovidos
de qualquer status, as refugiadas e os refugiados ecológicos são
aqueles que correm o maior risco de serem considerados como “excedentes”
com relação à “capacidade de carga” do planeta. Pintada de verde e
combinada com o racismo, bem como com o nacionalismo e também com o
imperialismo: a lógica anti-pobres de Malthus ao “naturalizar” a relação
humanidade-natureza, corre o risco de converter-se na cama ideológica
de uma barbárie planetária sem precedente, cujas premissas se expandem
diante de nós.
- Crise ecológica, crise do capitalismo
2.1. Os pontos de não retorno foram excedidos. Começou uma nova era geológica
2.1.1. A aceleração da mudança global se expressa no
perfil das curvas que mostram a evolução dos diferentes parâmetros da
crise ecológica em função do tempo: todas mostram um ponto de inflexão
claríssima, no início dos anos cinquenta do século passado. A ligação
com a onda longa de expansão econômica do pós-guerra é evidente. Desde a
década de 1970, também houve uma clara ligação entre o aumento contínuo
das concentrações atmosféricas de CO2, dos aerossóis e da globalização
“just in time” (justo a tempo) da produção e dos intercâmbios (com a
transformação da China, que é muito dependente do carvão, na “oficina do
mundo”), e a explosão dos transportes. Também existe claramente uma
ligação entre a chamada “revolução verde” e elementos, como: a
aceleração planetária do envenenamento químico, a pressão sobre as
reservas de água doce, a diminuição da biodiversidade e as
transformações no uso do solo.
2.1.2. A aceleração destes fenômenos destrutivos é
tão grande que, neste momento, estamos diante de um ponto de não retorno
na evolução do Sistema Terra. Milhares de espécies têm desaparecido
para sempre devido à atividade humana; no século XX, o nível dos oceanos
aumentou em 20 cm; será inevitável um crescimento consecutivo, no
mínimo de várias dezenas de centímetros, até o final do século, devido
somente à energia acumulada no Sistema Terra (sem levar em conta as
futuras emissões), que poderá superar em três metros o ponto de
equilíbrio (em mil ou mais anos); numerosos componentes químicos
sintéticos permanecerão ativos durante dezenas de milhares de anos
devido à ausência de agentes naturais capazes de decompô-los; os
materiais radioativos continuarão contaminando o meio ambiente durante
milênios, inclusive centenas de milhares de anos.
2.1.3. Trata-se de impactos irreversíveis na escala
geológica do tempo, cujo rastro ficará inscrito tanto na física, como na
química do planeta. A partir disto, é necessário tirar a conclusão de
que a Terra entrou em uma nova era geológica, que sucede a do Holoceno.
Então, também podemos justificar a ideia de que esta era começou após a
Segunda Guerra Mundial, porque a Geologia, em função de suas premissas,
não leva mais em conta os fatos geológicos que não se inscrevem na
crosta terrestre. Por um lado, é certo o fato de que é discutível
definir esta era como “Antropoceno”, porque esta denominação pode
atribuir uma maior responsabilidade pela mudança climática aos seres
humanos, e não ao modo de produção de sua existência, porém: (1) as
consequências geológicas do capitalismo não desaparecem com o
ecossocialismo; (2) a datação proposta descarta esta interpretação
anti-histórica e essencialista; (3) trata-se de extrair a lição da longa
história das destruições ambientais pré-capitalistas, assim como da
recente experiência das graves destruições ambientais cometidas no
século XX pela União Soviética e outras sociedades que conheceram a
transição pós-capitalista. Isso quer dizer que, a abolição do
capitalismo não é mais do que uma condição necessária, porém em nenhum
caso suficiente, para a resiliência do Sistema Terra.
2.2 A crise sistêmica do capitalismo ameaça a humanidade e seu meio ambiente com enormes devastações
2.2.1. Não é a natureza que está em crise, e sim a
relação da humanidade com seu meio ambiente, determinada por suas
relações sociais. O crescimento exponencial dos recursos extraídos e dos
resíduos produzidos que marca o início do Antropoceno, deriva da
própria natureza do capitalismo. O objetivo exclusivo deste modo de
produção é a produção da mais-valia através da exploração do trabalho
não pago, imposta historicamente mediante a violência, graças à
apropriação privada dos recursos; uma desapropriação que o sistema
produz e estende sem cessar, porque sua existência depende disso. A
concorrência no mercado obriga os capitalistas a desenvolverem
permanentemente a produtividade do trabalho, substituindo trabalhadoras e
trabalhadores por máquinas, para reduzir seus custos. Desse modo, podem
reduzir os preços e aumentar a sua quota de mercado e,
consequentemente, o seu lucro. Assim, contribuem para reduzir a
quantidade média de trabalho humano necessário; quer dizer, o valor das
mercadorias, daí a baixa tendencial da taxa de lucro. Os efeitos desta
podem ser compensados somente através de quatro formas:
- aumentando a taxa de exploração da força de trabalho
- aumentando a quantidade de mercadorias produzidas (portanto, também a massa de recursos produzidos)
- saqueando ainda mais os recursos naturais gratuitos (daí a tendência do capital ao extrativismo), e
- reduzindo os gastos de reprodução da força de trabalho (carregando-os sobre o trabalho gratuito no âmbito doméstico – desempenhado sobretudo por mulheres – e reduzindo o valor dos bens de consumo).
2.2.2. Este desenvolvimento do capitalismo
encontra-se, atualmente, diante de um duplo limite: social e físico. Por
um lado, a compensação da redução da taxa de lucro mediante o aumento
da taxa de exploração e da redução do custo de reprodução da força de
trabalho, provoca resistências e outras dificuldades sociais. Por outro
lado, sua compensação mediante o crescimento da massa de mercadorias
produzidas, esgota determinados recursos e agrava, em geral, a
destruição do meio ambiente, até o ponto de por em risco a estabilidade,
inclusive a sobrevivência, do capitalismo. O fato de que a concorrência
obriga o capital a aumentar a eficiência na utilização dos recursos, a
reciclar os resíduos e, inclusive, a favorecer uma “economia circular”,
não soluciona o problema. Na realidade, o incremento da eficiência e da
reciclagem está orientado para aumentar a quantidade de mercadorias, a
fim de compensar a redução da taxa de lucro, não a reduzir a sangria
sobre o meio ambiente. Além disto, este crescimento constitui uma função
decrescente de investimentos que contribuem também para diminuir a taxa
média de lucro, o que acaba, por um lado, estimulando o aumento da taxa
de exploração e da massa de mercadorias e, por outro lado, diminuindo o
custo de reprodução da força de trabalho… A chamada “desmaterialização”
tampouco fornece uma solução estrutural: as tecnologias da informação,
pelo contrário, possuem um consumo de energia considerável. Em geral,
todos estes desenvolvimentos têm, por fundamento, uma acumulação global
de capital fixo financiado mediante o crédito, tão enorme, concentrado e
centralizado, que a relação entre as necessidades e a produção está
profundamente invertida. Assim, a própria dinâmica do capital o conduz
sempre a “produzir para produzir”, o que implica também em “consumir por
consumir”, cada vez mais e de forma mais rápida. As contradições que se
derivam disso não podem ser resolvidas de outra forma a não ser através
de uma gigantesca “destruição criativa” do capital.
2.2.3. Na história, as antigas sociedades se
baseavam diretamente na produtividade natural. Nessas sociedades,
atravessar os limites ecológicos era uma questão temporária, que se
pagava à vista. Mas a “peso” da Terra sobre os seres humanos é um dado
histórico e social, e não um dado biológico. Era possível postergar os
limites desenvolvendo a população, os conhecimentos e as técnicas, mas
no marco de um “metabolismo” com a natureza. No entanto, o capitalismo
rompeu este metabolismo. Graças às fontes de energia fóssil, à ciência e
à tecnologia, ele pôde se desenvolver “a margem do solo”: a destruição
dos bosques europeus inverteu-se graças à substituição da madeira pelo
carvão, o empobrecimento dos solos devida à ruptura do ciclo de
nutrientes foi freado graças à invenção dos adubos sintéticos
(fertilizantes), o esgotamento dos recursos naturais foi evitado graças
aos produtos petroquímicos, e a acidificação da chuva foi reduzida
enormemente através da regulação dos escoamentos de enxofre e nitrato.
Estas respostas pareciam ter um efeito ecológico imediatamente positivo,
mas remetiam de volta ao futuro o problema fundamental dos limites do
desenvolvimento, tornando-o mais complexo e dando origem a novas ameaças
ao meio ambiente. Não se prestou atenção às advertências lançadas pelos
cientistas, em particular desde meio século, e os problemas dos limites
do desenvolvimento ressurgiram sob a forma de uma crise, que não é
local ou parcial, e sim mundial, geral e sistêmica. O capital está,
desde há muito tempo, aprisionado, pelos efeitos propostos, devido ao
antagonismo básico entre a sua necessidade de crescimento e os recursos
limitados. Esta crise põe em descoberto a força destrutiva que lhe é
inata desde a sua origem, e que não para de aumentar na medida em que se
desenvolve e se libera periodicamente. Sendo que, ela é tão profunda,
que a “destruição criativa”, da mesma forma que nos finais dos anos
1930, provavelmente incluirá de novo uma destruição bárbara da força de
trabalho “excedente”, seja por causa de guerras ou através de outros
meios.
2.3. A hipocrisia do “capitalismo verde”
2.3.1. A crise mina a legitimidade e ameaça a
estabilidade do sistema, inclusive sua sobrevivência. A maioria dos
responsáveis capitalistas está consciente disso. Mas, concretamente, são
conscientes da necessidade de atuar para limitar o problema da mudança
climática. O antecedente das ações empreendidas, com êxito, para salvar a
camada de ozônio atmosférico mostra que isso não é impossível.
Entretanto hoje em dia, para por fim às emissões de gás de efeito
estufa, não se podem adotar as medidas reguladoras necessárias e
eficazes que proíbam a produção e a utilização de gases destruidores da
camada de ozônio sem por em questão o capitalismo. Isso é devido à
urgência do problema da mudança climática e ao lugar central que ocupam
os combustíveis fósseis na economia como fonte de energia, matéria-prima
e básica em setores-chave, como: o automóvel, a aviação, etc… Por isso,
a política climática segue sendo neoliberal, ecologicamente
insuficiente e, ao mesmo tempo, socialmente injusta.
2.3.2. O exemplo da Alemanha, o país imperialista
mais avançado na transição energética, é esclarecedor. Este país
programa sua saída da energia nuclear, mas sacrifica um crescente número
de superfícies devido à exploração de lignito [ou linhito], com os
custos da transição rumo às energias renováveis sendo distribuídos, de
forma proporcional, para os consumidores e as consumidoras (isso quer
dizer, através daquilo que os alemães chamam de Umlage) [em
português: rateio, ato ou efeito de ratear]. Sendo que, várias empresas
estão cheias de lignito, em nome da concorrência. As “emissões
cinzentas” contidas nos produtos importados não se contabilizam e os
governos freiam a redução das normas de emissão no setor da indústria
automobilística. O desenvolvimento das cooperativas eólicas certifica a
possibilidade de um sistema energético renovável descentralizado,
socializado e sob o controle democrático da sociedade. No entanto, as
relações sociais capitalistas desenvolvem uma dinâmica muito diferente:
em uma primeira fase, as cooperativas “cidadãs” atraem, sobretudo, todas
as economias das camadas médias superiores, que fazem mais que
compensar desse modo o sobrecusto da eletricidade imposta aos lares; em
uma segunda fase, estas cooperativas entram em um processo de
concentração e centralização do capital. E no final, a transição é
destrutiva, inferior às possibilidades e às necessidades, com as pessoas
desfavorecidas pagando por isto.
2.3.3. O acordo concluído, em Paris, durante a COP21
ilustra, de forma mais geral, tanto a impotência ecológica quanto a
injustiça social do “capitalismo vede”. Em consonância com os métodos de
“governança”, este acordo foi preparado depreciando a democracia em
troca do “diálogo estratégico de alto nível” ente as grandes potências,
as instituições internacionais e os grandes grupos capitalistas. O
acordo não diz nada sobre os combustíveis fósseis e também não contém
medidas concretas para reduzir as emissões. As contribuições
nacionalmente determinadas põem em perspectiva um aquecimento pelo menos
duas vezes superior ao objetivo de 1,5ºC a 2ºC, como aquecimento máximo
adotado na COP.
2.3.4. O “capitalismo verde” é uma hipocrisia.
Combina elementos como: o fetichismo tecnológico (um mito do avanço
tecnológico, que permitirá conciliar a saída da crise e a recuperação
econômica), o fetichismo da mercadoria (mito das internalização das
extremidades: imposto carbono ou feed-in-tariff – que permita
orientar, de forma branda, os investimentos com relação à
sustentabilidade), a apropriação/mercantilização generalizada das
funções ecossistêmicas para (tentar) “compensar” as emissões, e o timo
dos indicadores de transição (a proporção das fontes energéticas
renováveis tende a substituir a concentração atmosférica do
CO2eq/equivalente de dióxido de carbono, enquanto que estas duas fontes
podem aumentar ao mesmo tempo, como é provável neste caso). Esta
estratégia está fadada ao fracasso, porque não põe em questão nem a
acumulação nem a propriedade privada do setor energético. Assim, pode-se
reprovar também a ideia de um imposto carbono, cujo produto seria
integralmente compartilhado por toda a sociedade e que funcionaria como
incentivo para que a mesma se encarregasse da transição ecológica. Esta
proposta não garantiria a eficácia do imperativo no que refere à redução
das emissões, pelo fato dela se limitar ao marco da estratégia do
“capitalismo verde” – internalização das externalidades –, além de se
basear na ideologia liberal da liberdade do consumidor ou da
consumidora.
2.3.5. O problema da acumulação se traduz
concretamente em três níveis: a bolha de carbono (é preciso destruir,
como capital, 4/5 das reservas fósseis mundiais), a concorrência entre
as empresas (crescer ou desaparecer) e a concorrência geoestratégica
entre potências (que se relaciona com a concorrência entre as empresas).
A questão norte-sul constitui um desafio complementar e uma expressão
do mesmo quebra-cabeça. Então, sem a transferência massiva de tecnologia
própria e meios financeiros e, sobretudo, sem uma divisão dos “créditos
carbono” baseada nas responsabilidades históricas, os países do Sul
deveriam escolher entre a peste e a cólera. Isso quer dizer, renunciar
ao seu desenvolvimento ou acelerar a catástrofe.
2.3.6. A urgência absoluta determina tudo. No ritmo
atual das emissões e de absorções, os “créditos carbono” ainda
disponíveis para cumprir os 1,5º C se esgotarão em 2030. Confrontado com
este desafio, o capital orienta-se em três direções: relançamento da
energia nuclear, apropriação generalizada dos “serviços ecossistêmicos”
(como novo campo de valorização) e as tecnologias de aprendiz de
feiticeiro da geoengenharia.
- Apesar dos acidentes de Three Miles Island, Chernobyl e Fukushima, assim como os riscos de disseminação da arma nuclear, a International Energy Agency [Agência Internacional de Energia (AIE)] aposta em um crescimento de mais de 60% da capacidade mundial de eletricidade de origem nuclear, com um desenvolvimento forte nos chamados “países emergentes”. Estão sendo construídos mais de 70 reatores nucleares e existem 160 projetados.
- Os Think tank do “capitalismo vede” pregam abertamente a apropriação capitalista generalizada dos ecossistemas e de sua capacidade de absorver o carbono, e exigem aos governos que concedam condições atrativas, a fim de garantir os direitos de propriedade para este tipo de investimento no que eles descrevem como “infraestruturas”.
- De todos os modos, estas respostas parecem, ao todo, muito insuficientes, Sendo que, esta é a razão que leva os investidores, cada vez mais, a situarem seus interesses nas tecnologias da geoengenharia. A mais desenvolvida destas tecnologias, que seria a Bio-energy with carbon capture and storage (BECCS) [Bioenergia com captura e armazenamento de carbono], combina a incerteza do armazenamento geológico do carbono com os riscos, seja para a produção de alimentos, para a biodiversidade ou para ambas, na medida em que as superfícies necessárias para a produção de biomassa energética seriam grandes. Por um lado, as consequências sociais e ecológicas deste tipo de opção tecnológica absurda correm o risco de serem incalculáveis. Por outro lado, a BCCS, de forma concreta, é especialmente atrativa para o capital, porque combinaria uma prestação de um serviço que poderia ser pago pela coletividade (retirar o carbono da atmosfera) com a produção de eletricidade. No caso em que, este insensato projeto permitiu, uma vez mais, atrasar a hora da verdade do produtivismo capitalista (da mesma forma como aconteceu com a invenção dos fertilizantes, no final do século XIX), este adiamento teria como consequência a colocação, de algum modo, do termostato do globo nas mãos do capital, que passaria a dispor, a partir daí, de um poder absoluto sem precedentes sobre a humanidade.
2.4. Populismo, nacionalismo e negacionismo climático
2.4.1. Apesar de seu viés ideológico, a avaliação
científica lança luz sobre a impotência capitalista e acusa
objetivamente os setores do capital mais opostos a uma transição
ecológica. Esta impotência e esta acusação tornam-se insuportáveis para
os setores ligados à indústria do petróleo (aos setores ligados aos
combustíveis fósseis) e para as camadas mais reacionárias da classe
capitalista. Em virtude das polêmicas sobre o tabaco e o buraco na
camada de ozônio, os trusts capitalistas colocaram em prática um método
perverso, com o objetivo de minar as avaliações científicas em nome de
uma pseudo-ciência e do direito ao contraditório. Esse método foi
aplicado com o objetivo de negar a realidade da mudança climática
antrópica. Esta negação financiada pelos lobbies capitalistas da
indústria do petróleo acabou saindo derrotada no âmbito científico e no
seio das “elites” do grande capital que optam pelo “capitalismo verde”.
No entanto, os lobbies capitalistas do setor petrolífero, que financiam
os “mercados da controvérsia”, não se dão por vencidos. Este setor
inspira-se no trabalho que foi realizado pela indústria do tabaco, no
sentido de proteger seus interesses. Para alcançar seus fins, apostam na
ascensão do populismo, que lhes abre novas possibilidades. A eleição de
Trump constitui um êxito para estes setores capitalistas que, desde
muitos anos, tentam acabar com a United States Environmental Protection Agency (EPA ou USEPA) [Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos].
2.4.2. O negacionismo climático do novo presidente
dos Estados Unidos não desmente a tomada de consciência capitalista
sobre a urgência climática, já que se impõe a ela através de um
populismo protecionista e nacionalista que tenta misturar
demagogicamente os cientistas com a “elite”, subordinando a questão do
equilíbrio ecológico (da regulação do meio ambiente) ao estatismo, bem
como subordinando os acordos sobre o clima (dentre outros acordos) à
globalização neoliberal destruidora de empregos e da democracia. Além da
pressão dos lobbies do setor dos combustíveis fósseis (sobretudo os do
carvão), o negacionismo climático constitui um elemento do ambiente
reacionário global, que integra também o machismo, o racismo, o
criacionismo, o antissemitismo, o ódio à igualdade de direitos, o
malthusianismo, o extrativismo, etc… Resumindo: em nome da liberdade,
rechaçam quaisquer restrições impostas aos ricos e à vontade dos
governantes de garantir seus privilégios custe o que custar, esmagando
as lutas pela emancipação, criando bodes expiatórios e destruindo o
planeta. As declarações de Trump sobre o clima são vistas como terríveis
pela maioria dos responsáveis do grande capital internacional e
estadunidense. O fato de que um personagem como este tenha podido chegar
à presidência da primeira potência mundial expressa a gravidade da
crise sistêmica. Esta favorece a ascensão do irracional no seio das
classes dominantes e acentua a autonomia relativa da esfera política. No
seio da mesma, em determinadas circunstâncias de crise aguda, os
indivíduos podem desempenhar um papel determinante até o ponto de impor
seu próprio projeto.
2.4.3. O negacionismo climático de Trump está na
contramão da transição energética capitalista atual, inclusive nos
Estados Unidos. Esta postura de Trump enfrenta fortes obstáculos
diplomáticos, econômicos, institucionais e sociais. Sendo que, o impacto
efetivo da mesma será medido na prática. Porém, nenhum líder
capitalista romperá com os Estados Unidos para salvar o clima do
planeta. Assim, o perigo é real. Ainda quando as emissões dos Estados
Unidos não representam mais que 10% das emissões mundiais, Trump pode
agravar, significativamente, o fosso entre o objetivo oficial de Paris e
os compromissos das Nationally Determined Contributions (NDC) [Contribuições
Nacionalmente Determinadas]. A NDC dos Estados Unidos é insuficiente e
as medidas adotadas por Barack Obama não permitem reduzir mais que 83%
das emissões de gases de efeito estufa (ante os níveis de 2005 até
2050). O Clean Energy Plan (Plano Energia Limpa)
abolido por Trump representava, por sua parte, cerca de 14% do
compromisso estadunidense. Abolindo também algumas outras medidas
(eficiência dos motores, isolamento de edifícios, fugas na rede de gás,
etc…) Trump poderia diminuir o compromisso dos Estados Unidos em 50% ou
mais. Uma política como esta tornaria ainda mais difícil o
desenvolvimento de políticas posteriores para tratar de reparar os
destroços. No marco capitalista, o risco aumentaria; em particular,
devido à opção do capital em recorrer à geoingenharia. De todos os
modos, a maior ameaça não está na extensão da fissura negacionista
climática aos outros países, e sim na transformação da relação de forças
sociais (favorecida, por exemplo, pelo desemprego e o veneno racista),
no contagio populista-protecionista e na mudança da relação de forças
global entre as potências, com uma escalada de tensões geoestratégicas,
inclusive de guerra pela hegemonia. Neste cenário, a questão climática
ficaria relegada à enésima gama de prioridades (existe um precedente: ao
contrário de Trump, Lyndon Johnson se conscientizou sobre a mudança
climática, mas a Guerra do Vietnã marginalizou esta preocupação). Neste
caso, o runway climate change (a mudança climática
descontrolada) seria inevitável, enquanto armas terríveis (químicas,
nucleares, de urânio empobrecido, etc…) provocariam a morte e a
destruição a uma escala sem precedentes.
- Lutas, reivindicações e estratégia ecossocialista
3.1. Um plano urgente ecossocialista
3.1.1. É urgente a criação de uma relação totalmente
diferente entre a humanidade e o meio ambiente, baseada no “cuidado”
dos seres humanos e do meio ambiente. As evoluções da ciência e da
técnica criaram as condições objetivas mais favoráveis do que nunca para
isso, mas uma nova relação entre as pessoas e seu meio ambiente não
pode materializar-se mais que no marco de uma relação totalmente
diferente entre as próprias pessoas, o que coloca a necessidade da
erradicação total e global do capitalismo. Esta erradicação é a condição
sine qua non de uma gestão racional, cuidadosa e prudente do intercâmbio das matérias entre a humanidade e o restante da natureza.
3.1.2. A resposta à destruição ambiental em geral e
ao risco do negacionismo climático em particular, não está na defesa de
um capitalismo verde, bem como na defesa do Acordo de Paris como um “mal
menor”, e sim em uma política mundial climática de urgência que
satisfaça as necessidades humanas reais; quer dizer, as necessidades que
não são determinadas pelo mercado, e sim que são provenientes da
deliberação democrática, e que irão fazer com que as populações
afastem-se pouco a pouco da alienação mercantil. A precondição para
impulsionar tal política seria romper com a lógica da acumulação
produtivista do capital através da colocação em prática de profundas
reformas estruturais orientadas para por fim à pobreza e fazer
retroceder, de forma radical, a desigualdade social e a esfera
mercantil.
3.1.3. Nesta perspectiva, as principais reivindicações são:
3.1.3.1. Socialização do setor energético: é a única
forma de abandonar a energia fóssil e nuclear, a fim de desenvolver
rapidamente a transição em direção a um sistema energético renovável,
descentralizado e eficiente, baseado em imperativos ecológicos e
sociais.
3.1.3.2. Socialização do setor creditício: torna-se
indispensável, devido à integração do setor energético e financeiro aos
grandes investimentos em longo prazo, com o fim de dispor dos recursos
financeiros necessários para os investimentos da transição.
3.1.3.3. Soberania alimentar e proteção da
biodiversidade através da socialização do solo, a reforma agrária e a
transição a uma agricultura ecológica e camponesa local, reconhecida
como de interesse público, sem organismos geneticamente modificados
(OGM) nem pesticidas, com uma forte redução da produção/consumo de carne
e respeito ao bem-estar animal: trata-se de um meio decisivo para
reduzir as emissões, proteger a biodiversidade, sanear o meio ambiente e
favorecer a tomada de consciência ecológica.
3.1.3.4. Socialização da água: indispensável para
uma política que pretenda acabar com a desigualdade social e promover
uma agroecologia baseada em camponeses e camponesas.
3.1.3.5. Abolição do sistema de patentes e,
concretamente, a proibição imediata de patentear seres vivos e
tecnologias de conversão/armazenamento de energia. Refinanciamento
público significativo da investigação (pesquisa) científica, pondo fim
aos dispositivos que subordinam as pesquisas, de um modo geral, à
indústria.
3.1.3.6. Abolição da propriedade privada dos
bosques; gestão pública em função das necessidades da biodiversidade, da
gestão dos recursos hídricos, do armazenamento do carbono e de sua
função social.
3.1.3.7. Reconhecimento dos direitos dos povos originários.
3.1.3.8. Eliminação das produções inúteis
(armamentos, etc…), eliminar setores perigosos (petroquímico, nuclear);
reestruturação coletiva de seus trabalhadores e trabalhadoras sob o
controle operário.
3.1.3.9. Desenvolvimento de empresas públicas
orientadas à criação de empregos para criar uma transição ecológica sem
visar o lucro, sob o controle operário e cidadão (sobretudo no âmbito da
produção elétrica, da construção-isolamento-renovação de edifícios, da
mobilidade das pessoas para sair do “tudo automóvel”, da reciclagem do
lixo e da reparação dos ecossistemas).
3.1.3.10. Redução coletiva radical do tempo de
trabalho sem perda de salário, reduzindo a carência de trabalho, com
nova contratação proporcional: junto com o desenvolvimento do setor
público, esta seria a condição, por excelência, para conciliar a redução
da produção com a criação do pleno emprego, como característica da
transição.
3.1.3.11. Extensão da gratuidade de bens (produtos alimentícios básicos) e dos serviços (transportes públicos, ensino, cuidados).
3.1.3.12. Abolição das dívidas públicas (sem
indenização, salvo para os pequenos produtores) e uma reforma fiscal
redistributiva para fazer com que, contribuam o capital e os
patrimônios.
3.1.3.13. Dedicar pelo menos 1% do PIB dos países
ricos em ajuda ao desenvolvimento. Distinção absoluta entre esta ajuda e
o respeito dos compromissos adquiridos em torno do Fundo Verde (100
bilhões de dólares anuais), que se desenvolverão através de doações (não
de empréstimos). Gestão pública do Fundo Verde, não pelo Banco Mundial,
e sim pelos representantes dos países do Sul, sob o controle das
comunidades e dos movimentos sociais.
3.1.3.14. Impostos para os transportes internacionais: aéreos e marítimos.
3.1.3.15. Extensão dos direitos de organização e
controle dos trabalhadores e trabalhadoras das grandes empresas,
sobretudo no que se refere à saúde no trabalho, à durabilidade dos
produtos, à eficiência da produção, etc… Proteção àqueles que denunciam
(lanceurs d’alerte/denunciantes) estas questões nas empresas.
3.1.3.16. Estatuto de refugiados para as vítimas das
catástrofes ecológico/climáticas; liberdade de movimento, bem como a
instalação e o respeito absoluto dos direitos democráticos, para as
pessoas refugiadas em geral.
3.1.3.17. Reforma urbana em longo prazo, orientada
no sentido de terminar com a especulação do solo, “naturalizar” a cidade
(incentivando a agricultura urbana) e liberá-la da cultura do uso do
automóvel em beneficio do transporte de massa, das hortas coletivas e da
mobilidade branda.
3.1.3.18. Política socioeconômica em longo prazo,
que favoreça o reequilíbrio das populações urbanas e rurais, coerente
com os objetivos da agricultura ecológica, da soberania alimentar e do
cuidado dos ecossistemas.
3.1.3.19. Política de planificação econômica
familiar baseada em um bom sistema de seguridade social, que garanta a
subsistência e pensões suficientes, que inclua o direito das mulheres à
interrupção da gravidez e à contracepção gratuita.
3.1.4. Este programa não é exaustivo: ele é e
continuará sendo enriquecido pelas lutas concretas. O que é comum foi
definido através de um processo democrático e social, e não através da
natureza que faria certos elementos “comuns”, enquanto outros seriam
destinados à apropriação privada. As reivindicações enumeradas mais
acima não constituem, portanto, uma solução “chave na mão” [ver verbete
no final]: mostram a via geral a seguir para uma saída anticapitalista,
ecossocialista, internacionalista e ecofeminista, que modificará todas
as esferas da atividade (produção, distribuição, consumo) e implicará
uma mudança profunda de valores. Elas podem ser aplicadas
individualmente, mas não é possível sair da crise sem aplicá-las de
forma coordenada e planificada. 3.1.5. Todas elas
formam um todo coerente, incompatível com o funcionamento normal do
sistema capitalista. Não existe outra solução que permita fazer frente à
urgência da situação. Esta solução responde à contradição principal do
capitalismo assinalada por Marx, e que hoje em dia é mais profunda que
nunca: enquanto que as forças produtivas gerais da sociedade (a ciência e
a tecnologia) permitem reduzir radicalmente o tempo de trabalho, dando
ao trabalho um sentido como atividade coletiva consciente, produtora do
bem viver ao que cada qual contribui segundo suas capacidades, a
acumulação de valor continuará dependendo do roubo do tempo de trabalho
alheio, base miserável inerente ao capitalismo e que constitui a própria
essência do sistema. Neste marco, é necessário assinalar as
importâncias estratégicas: da redução radical do tempo de trabalho sem
perda de salário, da extensão da esfera da gratuidade, assim como a do
setor público sob o controle democrático.
3.2. Alienação salarial e ecossocialismo
3.2.1. Somente as exploradas e oprimidas, bem como
os explorados e oprimidos podem levar a luta ambiental até o fim, porque
a abolição do sistema capitalista está relacionada com seus interesses
de classe; o capital explora o trabalhador e a trabalhadora através da
compra de sua força de trabalho. Portanto, a coisificação e a destruição
do meio ambiente não são alheios à relação de exploração salarial, e
sim formam parte desta última. Mas há outros elementos constitutivos da
mesma, que seriam: a coisificação e a destruição da massa assalariada,
bem como a invisibilidade do trabalho de reprodução, que arruína o
pequeno campesinato. Em condições “normais” do modo de produção
capitalista, a existência cotidiana do proletariado depende do
funcionamento do sistema que lhe esgota direta e indiretamente, e que
destrói o meio ambiente. Esta contradição faz com que se torne muito
difícil atrair o movimento operário para a luta ecológica. A dificuldade
aumenta no período atual, devido ao desemprego massivo, ao retrocesso
da consciência de classe e à degradação da relação de forças com o
patronato.
3.2.2. As direções majoritárias do movimento
sindical se alinham com o “capitalismo verde” através de uma linha de
colaboração de classe: para essas direções, o “capitalismo verde” está
relacionado com a “transição justa”, que respeita a competividade das
empresas (resolução de Vancouver/Canadá da Confederação Sindical
Internacional/CSI), e com o “desenvolvimento sustentável”. Estes setores
vivem com a ilusão de que a transição capitalista, na condição da
formalização de um acordo, reduzirá massivamente o desemprego mediante o
relançamento do crescimento graças à produção “verde”. Frente a esta
corrente sindical dominante, alguns setores se inclinam rumo ao
populismo e ao protecionismo, e inclusive para o negacionismo climático,
em reação ao fato de que a defesa do clima serve de pretexto para os
ataques capitalistas, ou com a ilusão de que desse modo poderão evitar a
destruição dos empregos nos setores fósseis ou nos setores vinculados
aos mesmos. Consequentemente, constitui uma tarefa de importância
estratégica: alimentar o debate em torno às alternativas
ecossocialistas, para fortalecer, de maneira urgente, uma esquerda em
ruptura com o capitalismo, no interior dos sindicatos.
3.2.3. Setores de esquerda participam nas lutas
ambientais sobre a base, fundamentalmente, de exigir a socialização da
energia (através de organizações como a Trade Unions for Energy Democracy, TUED) [Sindicatos por Democracia Energética] e a criação de empregos climáticos [empregos públicos estáveis em setores-chave com o objetivo de reduzir as emissões de gases de efeito estufa].
Neste momento, estes setores são minoritários e não sempre
antiprodutivistas. Reforçá-los, coordená-los e radicalizá-los exige
muita paciência e tato. É isto que nós podemos fazer, porque a
consciência da gravidade da destruição ecológica do planeta devido à
busca do lucro também se estende às amplas camadas da classe operária.
Esta consciência cresce de uma maneira difusa, e apenas está relacionada
com posições ecológicas assumidas por setores do movimento operário,
mas acaba se materializando em outros níveis, podendo manifestar-se, de
forma brusca, através das mobilizações gerais. À margem destas
mobilizações, os enormes imperativos da transição ecológica –
concretamente, a necessidade de um decrescimento global da produção
material para estabilizar o sistema climático – parecem inalcançáveis
para uma maioria, o que contribui para alimentar um sentimento de
impotência ou de recuo sobre as mudanças individuais no modo de vida.
3.2.4. A defesa da saúde das trabalhadoras e dos
trabalhadores constitui um meio importante para que a luta ecológica
possa ser levada em consideração pelo sindicalismo. Efetivamente, a
degradação da relação de forças entre o capital e o trabalho se traduz,
sobretudo, na deterioração das condições de trabalho, e isto contribui
para a intensificação dos ataques capitalistas contra a saúde das
trabalhadoras e dos trabalhadores, em particular, contra a saúde
daquelas e daqueles que se encontram em uma situação de precariedade.
Entre as trabalhadoras e os trabalhadores, a luta contra o crescimento
das enfermidades profissionais constitui a base para fazer avançar a
consciência de que o capital destrói tanto a Terra, como a saúde
daquelas e daqueles que pertencem ao conjunto da classe trabalhadora.
Destruição que adquire também a forma de incremento dos riscos
psicossociais, que não somente está ligada às formas de organização e de
controle no trabalho, e sim também aos estragos ambientais, que muitos
trabalhadores e trabalhadoras se veem obrigados a levar a cabo por ordem
do capital. A defesa da saúde constitui também um ponto de apoio para a
convergência – muitas vezes difícil – das reivindicações das
trabalhadoras e dos trabalhadores de empresas contaminantes, das
populações adjacentes que também padecem devido a esta poluição, e dos
movimentos em defesa do meio ambiente.
3.2.5. Os planos para a criação de emprego através
de uma transição ecológica planificada (“um milhão de empregos
climáticos”) constituem outro meio para incorporação do mundo do
trabalho à luta a favor do meio ambiente, vinculando esta luta ao
combate em defesa e pela extensão do setor público sob o controle
democrático da população. Mas não é suficiente para mostrar que a
transição pode criar empregos; também é preciso respeitar os imperativos
ecológicos e o princípio de responsabilidade diferenciada com relação
ao Norte e ao Sul no que se refere ao aquecimento global. As
trabalhadoras e os trabalhadores de uma empresa ou um setor que exigem
garantir seu emprego para a reconversão verde da produção têm que contar
com um apoio incondicional. No entanto, os planos globais para ciar
“empregos climáticos” no patamar dos países desenvolvidos, não podem se
esquivar do problema da redução global da produção material. A partir
daí, será decisiva a ideia de que estes planos incluam a Réduction Collective du Temps de Travail
(RCTT), isso quer dizer, a Redução Coletiva (radical) do Tempo de
Trabalho sem perda de salários, junto a reivindicações em defesa do
desenvolvimento do setor público. A RCTT é a reivindicação
antiprodutivista por excelência. Como tinha assinalado Marx: é o meio
privilegiado para “controlar, de forma racional o intercâmbio de matéria
com a natureza respeitando a dignidade humana”, quer dizer, de
conciliar o pleno emprego com a eliminação de produtos inúteis, daninhos
e com data de validade programada.
3.3. As lutas das mulheres e o ecossocialismo
3.3.1.
Os povos indígenas, o campesinato e a juventude são os setores que se
situam na vanguarda da luta pelo meio ambiente, e as mulheres jogam um
papel primordial nestes três setores. Isto se deve a sua opressão
específica, não ao seu sexo biológico. A opressão patriarcal impõe às
mulheres atividades sociais diretamente vinculadas aos “cuidados”, que
lhes situam na primeira linha dos desafios ambientais. Pelo fato de
produzirem 80% dos produtos alimentícios nos países do Sul, as mulheres
estão diretamente expostas aos estragos da mudança climática e da
agricultura. Pelo fato também de assumirem a maioria das tarefas
domésticas de educação das crianças e de manutenção da casa, as mulheres
também estão expostas aos efeitos da destruição e contaminação do meio
ambiente no âmbito da saúde e da educação.
3.3.2. No âmbito ideológico, os movimentos
feministas conservam a memória das experiências de instrumentalização do
corpo das mulheres em nome da ciência (campanhas de esterilização
forçada, etc…), o que favorece uma visão crítica da pseudo-
racionalidade científica mecanicista como instrumento de dominação e
manipulação. 3.3.3. Além disto, as mulheres contribuem
com um valor particular, precioso e insubstituível para a formação da
consciência anticapitalista global, que favorece a integração das lutas.
Lutando contra a apropriação patriarcal de seu corpo, assim como de sua
capacidade natural reprodutiva, e contra a exploração do trabalho
doméstico gratuito que realizam em sua maioria, as mulheres cultivam a
compreensão de que o capitalismo se baseia não somente na apropriação da
natureza e na exploração da força de trabalho através do trabalho
assalariado, e sim também na invisibilidade patriarcal do trabalho de
cuidados e de reprodução da força de trabalho. Isso quer dizer, estes
três pilares do capitalismo têm, em última instância, um denominador
comum: a apropriação dos recursos naturais, que tem como um de seus
elementos a força de trabalho humana. As lutas das mulheres: (1) a favor
do direito ao controle de seus corpos, a sua sexualidade e as suas
capacidades reprodutivas, (2) bem como contra as discriminações sexistas
das que são vítimas no mercado de trabalho assalariado e na reprodução
em geral e, por último, (3) a luta a favor do reconhecimento social e da
socialização do trabalho doméstico, formam parte integral do combate
ecossocialista, que é enriquecido e ampliado devido a estas lutas.
3.4. Questão agrária e ecossocialismo
3.4.1.
A nível mundial, o campesinato e as operárias e os operários agrícolas
constituem o setor social mais massivamente comprometido com a luta
ambiental em geral e a climática em particular. Este papel de vanguarda
representa a resposta à brutal agressão do capital que quer acabar com o
campesinato independente para convertê-lo em mão de obra assalariada
agrícola ou em trabalhadores nas redes de franquias – que produzem
mercadorias medíocres a preços baratos para o mercado mundial, em lugar
de produtos alimentícios de boa qualidade para as populações locais – ou
em desempregados, a fim de pagar-lhes, ao contratá-los, um salário
baixo. Tudo isso é fruto do trabalho de organização e conscientização
desenvolvida pelos sindicatos camponeses como a Via Campesina.
3.4.2. Diferente da massa assalariada, o pequeno
campesinato não está integrado ao capital. Apesar da produção para o
mercado impor-lhes objetivos e métodos produtivistas, os camponeses e as
camponesas seguem conservando a mentalidade do artesão preocupado em
“trabalhar bem”. Assediados por um capitalismo poderoso, eles e elas se
mobilizam para preservar ou reconquistar a propriedade de seus meios de
produção. Neste momento, a desigual relação de forças diante da
agroindústria e da grande distribuição, faz com que busquem alianças com
outros movimentos sociais. Estes camponeses e estas camponesas também
compreendem o valor da legitimidade que lhes é transmitido pelo fato de
explicitarem e assumirem a importância ecológica de suas lutas. E com
relação aos operários e às operárias agrícolas, sobretudo aqueles e
aquelas que se encontram indocumentados e superexplorados
(principalmente as mulheres), pode-se dizer que eles e elas quase não
possuem nenhuma perspectiva de converterem-se em camponeses nem de
superarem os limites ultra precários do trabalho assalariado. Para este
setor, a luta anticapitalista é a única alternativa.
3.4.3. A importância da questão agrária não deve ser
julgada em função da proporção de camponeses e de camponesas com
relação à população economicamente ativa, e sim a partir de cinco fatos
objetivos:
3.4.3.1. – O desafio da alimentação humana, e das
ameaças: da grande distribuição, da agroindústria e da pesca industrial
com relação aos camponeses e às camponesas, aos pescadores, às
comunidades, aos consumidores e às consumidoras, à saúde humana e ao
meio ambiente, assim como com relação às lutas de emancipação em geral
(através da dependência frente os mercados mundiais que concedem as
multinacionais um enorme meio de pressão sobre os povos). A mudança de
comportamento das consumidoras e dos consumidores não pode gerir a
transição ecológica, mas sua opção no que se refere à alimentação pode
ajudar na orientação das cadeias de produção que possuem um impacto
ecológico significativo, o que também pode contribuir para a redução do
sentimento de impotência diante da crise ecológica. Ao mesmo tempo, esta
questão possui um caráter de classe profundo, porque as opções das
consumidoras e dos consumidores estão limitadas pela redução do valor de
reprodução da força de trabalho e pelas políticas salariais que
empobrecem as trabalhadoras e os trabalhadores. A grande distribuição “a
baixo custo” desempenha, por isso, um importante papel: assegura de
forma coercitiva uma demanda consistente para a “comida de plástico”
[produtos alimentares industriais que causam prejuízo para as pessoas] e
para os medíocres produtos da agroindústria, inclusive através do
“microcrédito”. Os modos de produção agrícolas estão, portanto, no
coração dos desafios decisivos da saúde humana e da proteção do meio
ambiente, que põem ao descoberto a força destrutiva do capital. A
reivindicação da “soberania alimentar” permite unificar consumidores e
produtores em torno da luta e das práticas geradoras da consciência
anticapitalista.
3.4.3.2. – Com relação ao importante papel das
mulheres na produção agrária e os impactos da opressão das mulheres
sobre o déficit produtivo, podemos dizer: as mulheres constituem 43% da
mão de obra agrária nos chamados “países em desenvolvimento”. A
discriminação patriarcal se traduz no reduzido tamanho de suas fazendas e
de seu rebanho, em um nível de mecanização mais fraco, em uma carga de
trabalho mais pesada para um menor rendimento (devido ao peso de tarefas
improdutivas – água e madeira), no menor acesso à formação e ao crédito
(mas um acesso maior que os homens no que se refere ao microcrédito) e,
para as assalariadas, um status mais precário que o dos homens. A
emancipação das agricultoras é uma das condições determinantes para
responder ao desafio da produção de alimentos, bem como o da agricultura
ecológica. Esta é uma questão, por si mesma, ecossocialista.
3.4.3.3. – O setor agrícola-florestal, em seu
conjunto, (que inclui, por um lado, a produção de insumos agrícolas, de
máquinas, etc… e, por outro lado, a transformação e a distribuição) é
responsável por mais de 40% das emissões de gases de efeito estufa. A
agroindústria é, além disto, um agente-chave da contaminação química da
biosfera. Enquanto que a pesca industrial e a contaminação da água pela
agroindústria são fatores determinantes do declínio da biodiversidade em
ambientes aquáticos. Ao mesmo tempo, o aquecimento ameaça a
produtividade da terra, e a acidificação provocada pelo aquecimento
climático ameaça os ecossistemas aquáticos.
3.4.3.4. – Fundamentalmente, o declínio da
biodiversidade não se freará mediante a criação de reservas naturais, e
sim mediante o impulso de uma agricultura ecológica que substitua à
agroindústria. Por outro lado, para deter a mudança climática já não
basta reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Nas próximas
décadas será preciso retirar quantidades de carbono da atmosfera. Os
únicos meios para retirá-lo sem riscos e sem recorrer à geoengenharia
nem a instrumentalização/apropriação/mercantilização generalizadas dos
ecossistemas são: a agricultura camponesa e um reflorestamento racional.
Assim, questões como a proteção da biodiversidade e do clima: (1)
reforçam a necessidade da alternativa ecossocialista, e (2) dão base
material ao papel decisivo da alternativa agroecológico
camponesa/alimentar nesta alternativa global.
3.4.3.5. – A transição para uma agricultura (e para
uma pesca, bem como para uma silvicultura) ecológica é um fator de
primeira ordem para a construção de uma sociedade ecossocialista. Este é
um fator que possui a mesma importância em comparação tanto com a
democracia dos produtores, bem como com a utilização de uma energia 100%
renovável. Esta agricultura, hoje, é mais intensiva em mão de obra do
que a agricultura industrial. A transição para uma silvicultura
sustentável e a restauração/proteção dos ecossistemas implica também num
crescimento da população dedicada a estas atividades. Neste caso, o
exemplo de países – como a Venezuela – em que quase a totalidade da
população é urbana e dependente exclusivamente do mercado mundial para
alimentar-se, mostra que é muito difícil reverter esta tendência. Com o
objetivo de evitar que a situação chegue a esse ponto extremo, é
preciso: adotar uma política de longo fôlego sobre a revalorização do
trabalho agrícola, desenvolver um trabalho de formação dos trabalhadores
e equipar as zonas rurais com infraestruturas e serviços para as
pessoas.
3.5. Os povos indígenas, o bom-viver e o ecossocialismo
3.5.1. Nas Américas do Norte, Central e do Sul, na
África, na Ásia e na Oceania, os povos originários se situam também na
primeira fila da defesa do equilíbrio ecológico. Seu combate soma-se,
muitas vezes, aos combates das camponesas, dos camponeses e das
comunidades rurais, mas também é específico. Os povos originários
produzem sua existência social a partir de uma relação direta com o meio
ambiente, que foi moldado por eles, e que constitui o seu espaço vital.
Devido a isso, estes povos são o alvo de muitos setores capitalistas
muito poderosos e ávidos de saquear recursos naturais, como:
multinacionais do petróleo, do gás, de minérios, da madeira, da pasta de
papel, da carne, da agroindústria, do setor farmacêutico; sem contar as
financeiras da “compensação carbono” disfarçadas de defensoras
ecológicas dos bosques (assim como as ONGs meio ambientais, que estão
totalmente integradas ao capitalismo verde, assim como ao dispositivo
imperialista). Por regra geral, todos estes saqueadores extrativistas
atuam com a cumplicidade dos governos nacionais e das autoridades
locais, que invocam objetivos de desenvolvimento e necessidades
ecológicas para dissimular seu desejo de lucro e seu desprezo
neocolonial com relação aos indígenas. Por sua parte, estes geralmente
não dispõem de nenhum título de propriedade sobre os recursos de seu
ambiente. Não dispõem de outro meio maior do que a luta, para não
acabarem como miseráveis assalariados agrícolas ou como sub-proletários
em povoados pobres. Para lutarem, os povos originários protegem e dão a
conhecer sua cosmogonia, que é considerada uma riqueza maravilhosa para o
conjunto da humanidade, além de uma fonte de inspiração para o
ecossocialismo. No entanto, não é esta cosmogonia que explica seu papel
de vanguarda: este provém, sobretudo, do fato destes povos
encontrarem-se na luta, em suas últimas trincheiras, diante de uma
situação limite, após séculos de exploração e humilhação colonial. Neste
combate desigual, utilizam como motivo máximo para esta luta, e com
razão, a questão da “crise ecológica”, a fim de encontrar aliados entre
os movimentos sociais e, desse modo, poder melhorar a relação de forças a
seu favor.
3.6. Autogestão, controle e alternativa
3.6.1. As mudanças profundas no modo de vida e nas
perspectivas de desenvolvimento que necessita a transição ecológica não
poderão ser impostas a partir de cima, de forma autoritária ou
tecnocrática. Somente serão realizáveis se a maioria da população chegar
à conclusão de que são indispensáveis e compatíveis com a melhora
significativa de suas condições de existência; quer dizer, estas
mudanças precisam se tornar desejáveis. Assim, trata-se de impulsionar
um processo permanente de educação sobre a gravidade da destruição do
meio ambiente e de suas causas. Diante da impotência capitalista,
trata-se de estimular processos democráticos de controle ativo,
encarregar-se da luta durante o processo da transição ecológica e
intervir nas decisões públicas, inclusive com relação às questões da
apropriação comum da produção e da reprodução social, bem como da
proteção dos ecossistemas ameaçados. Por sua própria natureza, estes
processos se combinam com as lutas das nacionalidades oprimidas a favor
de seus direitos sociais e de seu direito democrático de
autodeterminação. Trata-se também de esboçar, na prática, a invenção de
relações emancipadas entre os seres humanos, e entre a humanidade e o
restante da natureza, a fim de mostrar que “outro mundo é possível”.
Sendo que, é preciso que os setores mais comprometidos com estas lutas
(que abraçaram integralmente esta nova orientação) intervenham no
movimento operário, a fim de combater a influência do produtivismo em
seu seio.
3.6.2. É preciso apoiar e incentivar, de forma
ativa, tanto o movimento a favor dos desinvestimentos em energias
fósseis, como o movimento das cidades em transição. No geral, as
experiências de controle operário, de controle cidadão, de gestão
participativa, inclusive de autogestão, assim como as lutas das mulheres
a favor de seu reconhecimento social e pela socialização do trabalho
doméstico, criam o terreno apropriado para a formação de uma consciência
e de um projeto anticapitalistas que inclui a dimensão ecossocialista.
Como ficou demonstrado na Europa e, sobretudo, na América Latina,
através das experiências de produção autogestionada, que evolvem, em
geral, setores excluídos e oprimidos da sociedade, como: trabalhadoras e
trabalhadores que foram despedidos, pessoas em situação de
precariedade, pessoas indocumentadas, e aqueles e aquelas que solicitam
asilo. Estas alternativas representam uma resposta imediata à exclusão
social massiva e permanente que degrada a existência e a dignidade das
pessoas. Todas elas ocupam um lugar importante na estratégia
ecossocialista, porque rechaçam o fatalismo, geram solidariedade e vão
mais além dos círculos militantes em prol do meio ambiente. No entanto, é
ilusório acreditar que a generalização dessas experiências por toda a
sociedade permitirá, por si só, evitar a catástrofe ecológica: as
medidas socioeconômicas estruturais, fundamentalmente a socialização do
crédito e da energia – tornam-se indispensáveis. As iniciativas de
transição precisam ser articuladas com base na existência de uma
planificação democrática da transição ecológica, que inclua, ao mesmo
tempo, a satisfação das necessidades sociais e o respeito dos
imperativos ecológicos. Sem dita articulação, estas iniciativas podem
conduzir à despolitização e, inclusive, podem acabar em nada.
3.6.3. A luta contra os grandes projetos fósseis
constitui um elemento-chave do movimento geral para que ele possa
interferir na transição ecológica, bem como controlá-la e assumir
responsabilidades com relação a ela. As manifestações massivas, a
ocupação de indústrias de combustíveis fósseis (petrolíferas e
derivadas) e de minas, e as campanhas de desobediência civil permitem
opor-se, de forma concreta, à dinâmica “crescentista” e “extrativista”
do capital. Estas lutas têm uma importância de primeira ordem para a
defesa dos ecossistemas e das comunidades humanas que vivem neles. Estas
lutas também têm uma importância estratégica para a defesa do clima,
porque o nível atual das infraestruturas constitui uma espécie de
gargalo que estrangula a valorização das reservas de capital dos setores
da indústria de combustíveis fósseis. E constituem um meio
privilegiado, em nível territorial, para estabelecer pontes entre as
lutas: camponesas, dos povos indígenas, da juventude, das mulheres e, a
partir daí, exigir ao movimento operário que se integre à luta pela
transição ecológica. A construção de redes internacionais destas
resistências permite melhorar a relação de forças, dissipar as acusações
de NIMBY [acrônimo em inglês da expressão Not In My Back Yard,
que significa em português “não em meu quintal”] e reforçar a
legitimidade das reivindicações. Em determinados casos, isto permite
obter vitórias parciais e, inclusive, impor reformas que, ainda no marco
do capitalismo, podem servir de pontos de apoio para radicalizações
posteriores.
3.6.4. A convergência necessária entre as lutas
sociais e ambientais não possui como objetivo uma convergência baseada
em um compromisso estável entre a questão ambiental e a questão social.
Trata-se de um processo dinâmico de esclarecimento, de recomposição e de
radicalização. Semelhante processo implica múltiplos conflitos entre
setores sociais, em particular, conflitos com os setores do movimento
operário que praticam ou combinam a colaboração de classe com o
produtivismo. Ao mesmo tempo em que, por um lado, demonstramos uma
sensibilidade tática indispensável, insistindo nas vantagens da
transição ecológica para o mundo do trabalho (sobretudo tratando de
elementos como saúde e emprego), por outro lado, pode ser que seja
necessário desencadear um, certo, conflito com o movimento operário e os
trabalhadores e as trabalhadoras que se encontram sob a influência
produtivista. Conflito que deve ser pensado e manejado com cuidado, sem
provocações, com o objetivo de animar o debate sobre as alternativas,
encontrar aliados e fazer emergir no mundo do trabalho um sentido de
responsabilidade humana mais profunda e forte em comparação com o
sentido de responsabilidade introduzido pelo capital. Dessa maneira, a
luta ecossocialista pode contribuir para gerar, no interior dos
sindicatos, uma esquerda que rompa com o capitalismo e a colaboração de
classes.
3.6.5. É preciso ganhar o movimento operário e o
restante dos movimentos sociais para a luta a favor de um programa de
transição ecossocialista. Sendo que, de forma urgente, precisamos
colocar em prática alternativas políticas que possam tornar-se
majoritárias, e que tenham como meta a conquista do poder político, para
implementar um plano global de reformas estruturais anticapitalistas
que satisfaça as necessidades e os imperativos do meio ambiente. Sem a
construção destas alternativas políticas e sem sua articulação com os
movimentos sociais, esta perspectiva comum se reduziria a uma quimera,
de modo que o meio ambiente será sacrificado no altar do social ou
vice-versa. A instalação de um governo ecossocialista que rompa com o
capitalismo apoiando-se na mobilização social é a pedra angular de um
urgente programa ecossocialista. No entanto, o ecossocialismo em um só
país não é possível. A formação de semelhante governo não constitui mais
que uma etapa transitória de um processo permanente orientado para a
derrocada do capitalismo em todo o planeta. Este governo constrói desse
modo uma ponte rumo a uma saída internacionalista revolucionária à crise
sistêmica do capitalismo.
3.7. Tecnologia, autogestão e descentralização
3.7.1. “A Comuna é a forma política finalmente
descoberta, para levar a cabo dentro dela a emancipação econômica do
trabalho”, escrevia Marx em suas lições da Comuna de Paris. No século
XIX, o capitalismo criou um sistema energético cada vez mais uniforme e
centralizado, cujo controle técnico e político implicava respectivamente
em um amplo aparato burocrático e também em um complexo sistema de
delegações de poder. Evidentemente, este sistema não é a causa da
degeneração burocrática da URSS – que foi, sobretudo, produto da
contrarrevolução stalinista -; mas em certa medida o favoreceu.
Inversamente, a flexibilidade e a adaptabilidade das tecnologias não
garantem um socialismo democrático, mas abre novas possibilidades para
reformas estruturais anticapitalistas a partir de um desenvolvimento
territorial descentralizado, organizado, que tem como meta o controle
democrático dos recursos energéticos renováveis disponíveis e de sua
utilização por parte das comunidades locais. Em particular, no que se
refere à utilização do potencial solar (centrais termossolares) nas
regiões semidesérticas, do potencial hidrelétrico (micro centrais como
alternativa às macro represas), e eólico e marinho nas ilhas e nas
regiões da costa, etc…. Mas a materialização destas possibilidades
depende da luta de classes. A confiscação somente de uma parte das
fortunas acumuladas pelas petromonarquias árabes seria suficiente para
financiar projetos regionais alternativos de desenvolvimento, baseados
na energia solar e dedicados à satisfação das necessidades em nível
local, no Oriente Próximo e no Oriente Médio. Nessa mesma linha, é
deplorável o fato de que os governos latino-americanos “progressistas”
não tenham investido os recursos obtidos com a exploração fóssil em
planos de transição social e ecológica orientada a outro tipo de
desenvolvimento, descentralizado, democrático, mais equilibrado entre a
cidade e o campo, centrado nas comunidades e baseado em 100% nas
energias renováveis.
3.7.2. As tecnologias energéticas renováveis
modificam também a articulação de medidas estruturais e experiências de
controle ou autogestão em nível territorial, o que abre novas
possibilidades de autonomia energética. Desse modo, ganha atualidade e
credibilidade o projeto de uma sociedade ecossocialista democrática
baseada em uma rede de órgãos de poder descentralizados. No âmbito da
luta, incluindo também a soberania alimentar, o ecossocialismo é
particularmente importante para os países do Sul, já que o mesmo
representa o marco, o pressuposto básico de um modelo de desenvolvimento
alternativo ao modelo imperialista.
3.8. Destruição do meio ambiente e compromisso social e científico
3.8.1. As respostas capitalistas são ecologicamente
insuficientes e, ao mesmo tempo, socialmente injustas, porque não
possuem fundamento ao considerarem as regras sociais de mercado, como
leis naturais ineludíveis. Isto leva determinados cientistas a
somarem-se ao campo da luta. Seu compromisso tem como pano de fundo a
crítica à parcialização crescente da investigação e sua subordinação
cada vez maior às necessidades do capital e a sua temporalidade. Um
número minoritário, mas crescente, de investigadores e investigadoras
percebem a necessidade do trabalho interdisciplinar e transdisciplinar,
que implica na colaboração com os setores sociais. Neste contexto,
emerge a oportunidade para redefinir “o saber”, tirá-lo de seu
isolamento e colocá-lo contra o capital. Esta oportunidade aumenta pelo
crescimento, em determinados setores da classe dominante, da
irracionalidade e da negação de fatos objetivos, bem como dos elementos
reacionários encarnados sobretudo por Donald Trump. Os ecossocialistas
devem aproveitar, de forma absoluta, esta oportunidade, para a difusão
de suas ideias. Não se trata de submeter o movimento social à ditadura
da “ciência” ou dos intelectuais, e sim, ao contrário, de pôr, como
pensadores, sua competência ao serviço do movimento social e submetê-lo à
crítica. Isso pode aumentar em grande medida a credibilidade e a
legitimidade das opções anticapitalistas. Concretamente, a experiência
da cooperação internacional dos cientistas constitui um recurso
importante para desenvolver o internacionalismo.
3.9. Auto-organização das populações afetadas
3.9.1. Os meios para deter a catástrofe que se
avizinha estão, terrivelmente, atrasados com relação às exigências.
Portanto, acontecerão catástrofes ecológicas “antrópicas” de forma
múltipla; em particular, devido a fenômenos meteorológicos extremos
(inundações, ciclones, etc…). Isto cria situações de desorganização e de
caos, que são exploradas pelos especuladores, e instrumentalizadas para
exercer a dominação (política, econômica, geoestratégica). Ao mesmo
tempo, estas situações podem ser propicias para desenvolver iniciativas
de construção de redes de solidariedade alternativas às agências
imperialistas, assim como a auto-organização da ajuda, do acolhimento de
refugiados e de refugiadas e inclusive da reconstrução da vida social
em geral. Assim, estas iniciativas contam com uma grande legitimidade,
porque podem ser vitais nestas circunstâncias, além de serem mais
eficazes do que a ajuda internacional [oficial]. O fator subjetivo é
determinante para concretizar as possibilidades deste tipo. Esta
perspectiva forma parte integrante de nossa estratégia ecossocialista,
bem como da nossa estratégia revolucionária. Além disto, a persistência
da impotência capitalista diante do desenvolvimento da crise ecológica
contribui para criar uma situação objetivamente propícia, tanto para a
barbárie como para a revolução.
3.10. Localização, autogestão e internacionalismo
3.10.1. No plano de urgência ecossocialista, a
exigência da importância da localização da produção agrícola [área de
pesquisa e análise que define métodos e critérios, com o objetivo de
escolher o local mais adequado para o desenvolvimento de produtos
agrícolas], bem como da soberania alimentar se inscreve em uma
perspectiva autogestionária e internacionalista radicalmente oposta,
tanto à globalização capitalista como à soberania nacional.
Particularmente nos países desenvolvidos, isto requer prestar uma grande
atenção à retomada da ofensiva por parte da extrema-direita ou da
direita extrema. Ambas tratam de desvirtuar as reivindicações ecológicas
em direção às pseudo-respostas nacionalistas, que sempre estão ao
serviço do capital e criam passarelas para temas racistas, islamofóbicos
e reacionário-tradicionalistas em geral. As demandas em torno da
localização da produção e da soberania alimentar constituem os terrenos
favoritos destas tentativas. Portanto, é crucial para a esquerda
abraçar, com cuidado, estas reivindicações, a fim de impedir que as
mesmas sejam instrumentalizadas, de um modo geral, pela direita e pela
extrema-direita.
3.10.2. Colocamo-nos contra a transferência de
empresas para os países com baixos custos, e somos partidários da
localização da produção em geral, mas não apoiamos a exigência da
relocalização de empresas que foram transferidas. Pois, de um modo
geral, a ideia da relocalização implica no fato dos trabalhadores e
trabalhadoras dos países com custos reduzidos perderem seus empregos, em
benefício dos trabalhadores e trabalhadoras dos países imperialistas,
que acabam recuperando seus empregos. No lugar de unir os trabalhadores e
as trabalhadoras dos diferentes países diante de seus exploradores,
esta reivindicação acaba colocando-os em conflito, e acaba desarmando-os
frente às exigências patronais da competitividade do mercado. A
localização da produção se inscreve em um projeto totalmente diferente,
que parte das necessidades ecológicas e sociais, em particular dos
direitos ao emprego e ao salário para todos e todas, perto de seu local
de moradia. Igualmente, para nós, a soberania alimentar não é o mesmo
que soberania nacional, e sim uma soberania no nível dos territórios
definidos como conjuntos geofísicos, independentemente das fronteiras
dos Estados. Esta soberania alimentar não se inscreve em uma tendência
nacionalista que visa o fechamento de fronteiras, e sim, ao contrário,
em uma tendência internacionalista para aboli-las, a fim de deixar o
caminho livre para a ligação em rede de territórios autogestionados, com
os intercâmbios e a centralização política funcionando no seio das mais
amplas regiões geográficas. De um modo geral, esta ligação em rede é
indispensável não somente por razões econômicas e sociais, mas, sim,
também por razões ecológicas, tais como: a necessidade de uma gestão
integrada ao nível das grandes bacias hidrográficas.
3.10.3. Em geral, as fórmulas “protecionistas de
esquerda e solidárias” dão credibilidade à ideia de que a concorrência
que exercem os países com salários baixos e que não protegem o meio
ambiente são a causa principal destas perdas de emprego industrial nos
países desenvolvidos. No entanto, a causa principal destas perdas de
emprego é o crescimento da produtividade do trabalho em um contexto no
que o movimento histórico pela redução do tempo de trabalho está
bloqueado em função de uma relação de forças degradada. Adotando uma
visão obsoleta da economia mundial baseada na concorrência entre países,
na medida em que as multinacionais possuem um papel fundamental, o
“protecionismo de esquerda” desvia a atenção da contradição
capital-trabalho em benefício de uma frente interclassista na defesa da
concorrência. O “protecionismo de esquerda” se apresenta como
internacionalista, mas transfere a concorrência destrutiva das
exportações agrícolas de baixo custo dos países desenvolvidos para os
países do Sul, bem como outras manifestações da dominação imperialista.O
perigo da contaminação racista a partir das posições que possuem uma
relação com o tema da soberania é significativo. Efetivamente, nos
países mais desenvolvidos, percebe-se, de forma mais evidente, a
passagem da defesa do emprego mediante a preservação da concorrência das
empresas contra a concorrência dos países com salários baixos, para a
defesa do emprego mediante a luta contra a concorrência dos
trabalhadores indocumentados ou de pessoas refugiadas, porque estes
representam uma espécie de “terceiro mundo a domicílio”. É justamente
esta armadilha mortal que a extrema-direita quer levar ao movimento
operário e ao movimento em defesa do meio ambiente.
3.10.4. Frente a um governo ecossocialista que
começaria a romper com a lógica capitalista apoiando-se na mobilização
das exploradas e dos explorados (das oprimidas e dos oprimidos em
geral), evidentemente, defenderemos o direito desse governo a proteger
sua política através de medidas como: o monopólio do comércio exterior, o
controle do movimento de capitais, etc… Mas neste caso, não se trata de
proteger as empresas capitalistas contra a concorrência internacional:
trata-se, pelo contrário, de proteger a política anticapitalista, ao
mesmo tempo em que, é preciso fazer um apelo para que todos os
trabalhadores explorados e todas as trabalhadoras exploradas (oprimidos e
oprimidas em geral) dos outros países se somem a esta luta, para que
essa vitória se propague, em uma perspectiva internacionalista de
derrubada do capitalismo mundial. Tal política é diametralmente oposta
ao “protecionismo”, que sempre conduz a subordinar as reivindicações
ecológicas e sociais às necessidades de reforçar o capitalismo nacional
no mercado mundial, quer dizer, em última instância, ao livre câmbio.
3.10.5. O ecossocialismo pode começar a nível
nacional, mas não pode realizar-se plenamente mais que a nível mundial,
porque a gestão racional e prudente do sistema terrestre exige uma
planificação democrática mundial. O trabalho científico mundial
realizado por organismos como o GIEC, o IGBP e outros, mostra que esta
planificação democrática mundial é possível. Este trabalho que é
realizado pelos cientistas, poderia ser feito também por representantes
dos movimentos sociais, que seriam democraticamente eleitos. Sendo que,
em parte, este trabalho já é realizado, hoje, por organizações, como: a
Via Campesina e outros sindicatos.
4. Luta ideológica
4.1. Combate ético e projeto de civilização
4.1.1.
Apostamos por um ecossocialismo radicalmente anticapitalista,
humanista, internacionalista, feminista e autogestionário a partir desta
tripla constatação que determina seu conteúdo: – A necessidade de um
programa anticapitalista de transição que leve em consideração os
imperativos ecológicos de forma pertinente e sem remetê-los ao
pós-capitalismo. – A impossibilidade de colocar em prática o conjunto
deste programa, além da via da ação direta, revolucionária, democrática e
auto-organizada das exploradas e dos explorados, assim como das
oprimidas e dos oprimidos, o que implica na convergência e na extensão a
todo o planeta da luta das assalariadas e dos assalariados, das
mulheres, dos LGBTs, da juventude, do campesinato e dos povos
indígenas. – A profunda crise do significado e dos valores que se
derivam da inversão entre as necessidades e a produção, entre o trabalho
vivo e o trabalho morto, entre os seres vivos e os inertes: o capital
aliena o ser humano de sua natureza animal social, como um ser pensante,
que produz conscientemente e coletivamente sua existência social.
4.1.2. Para nós, o ecossocialismo não é somente uma
estratégia de luta e um programa: é, também, um combate ético. “A
natureza” é o corpo inorgânico da humanidade; a destruição do meio
ambiente é a nossa própria destruição e de nossos descendentes. Por
isso, a crise ecológica se estende além da crise do funcionamento dos
ecossistemas, e como fruto da lógica do lucro: é uma crise global da
civilização humana. Acabar com ela tem como pré-condição necessária
abolir a produção mercantil e substituí-la por uma sociedade baseada no
valor de uso definido em função da satisfação das necessidades humanas,
reais e democraticamente definidas. No entanto, esta condição necessária
não é em si mesma suficiente. Em primeiro lugar, porque a destruição
ecológica, assim como a opressão das mulheres, existe desde antes do
capitalismo, mas de forma diferente. Em segundo lugar, e, sobretudo,
porque “o socialismo realmente existente” desenvolveu uma forma
específica de “produtivismo burocrático” tão destruidor do meio ambiente
como o produtivismo capitalista.
4.1.3. O balanço do modelo específico de socialismo
da URSS, da China e dos países do Leste Europeu (satélites da URSS) não
pode se resumir exclusivamente à degeneração burocrática stalinista da
revolução. No plano ideológico, viu-se favorecida em parte pela
absorção, por parte do movimento revolucionário, das concepções
mecanicistas desenvolvidas pela burguesia. Estas concepções, que
precisam ser analisadas no seu contexto histórico, determinaram uma
visão do meio ambiente como um elemento a ser dominado, moldável à
vontade e sem limites. Estas ideias estiveram presentes na maioria das
tendências do movimento operário; inclusive, infelizmente, na oposição
de esquerda ao stalinismo.
4.1.4. Da mesma maneira, o movimento pela
emancipação das mulheres requer a construção de uma corrente
ecossocialista que atue em seu interior, de algum modo, em nome da
natureza, mas a partir de uma perspectiva anticapitalista,
internacionalista e antiburocrática. Trata-se de desenvolver pouco a
pouco uma nova consciência ecológica, uma nova cosmogonia, uma nova
cultura que desenvolva os valores de respeito, do cuidado e da
prudência. A humanidade tem causado muitas destruições ecológicas, mas
não há nenhum motivo para pensar que a inteligência e a sensibilidade
humana nos impeçam de retomar o que as concepções mecanicistas da
natureza fizeram esquecer. Assim, é preciso: sermos cuidadosos com o
meio ambiente, reconstruir o que é possível e, como resultado da opção
por fazer algo diferente, inventar uma nova cultura da nossa
relação com
o resto da natureza.
4.1.5. Nós não reivindicamos nenhuma espécie de
monopólio do ecossocialismo. Estamos abertos à colaboração com o resto
das correntes que reivindicam este conceito e debateremos com eles,
sobretudo, sobre a relevância e a coerência das respostas que propõem no
sentido de unificar as lutas sociais e ecológicas.
4.2. A ecologia de Marx, fonte de inspiração e trabalho inconcluso
4.2.1. Nós nos baseamos na análise crítica de Marx
e, mais concretamente, nas seguintes ideias que se referem de forma
direta à relação da humanidade com a natureza e a crítica desta relação
sob o capitalismo: A natureza e o trabalho são as duas únicas fontes de
riqueza; a natureza é a principal fonte dos valores de uso. O
capitalismo pressupõe a separação entre produtores e recursos naturais, a
apropriação destes pelo capital, a compra da força de trabalho em troca
de um salário e a reprodução ampliada permanente deste movimento de
expropriação/alienação. A busca de lucro fomenta a pilhagem dos recursos
naturais, minerais e orgânicos; sobretudo a tendência a uma
agroindústria cada vez mais intensiva, que esgota os solos, pratica a
monocultura e privilegia a produção de carne. A única agricultura
racional seria aquela baseada no trabalho das camponesas e dos
camponeses na propriedade coletiva do solo. A única política florestal
possível racional seria aquela que funciona à margem da busca do lucro,
ou seja, que não visa o lucro. O capital é uma relação social de
exploração do trabalho, alimentado pela adição de recursos naturais,
orientada à produção da mais-valia. O único limite do capital é o
próprio capital. A produção da mais-valia implica necessariamente na
ruptura do metabolismo entre a humanidade e o conjunto da natureza. A
acumulação esgota tanto a Terra, como os trabalhadores e trabalhadoras,
cuja força de trabalho é, também, um recurso natural. Para por fim à
pilhagem dos recursos (a gestão racional da relação sociedade-natureza),
é exigida a abolição da exploração da força de trabalho e a redução de
tempo do tempo de trabalho.
4.2.2. Apesar das riquezas destas contribuições, o
trabalho de Marx e Engels encontrava-se sob pressão: já que estava
influenciado, em certa medida, pelo cientificismo e pela ilusão do
progresso derivado do “crescimento ilimitado das forças produtivas”. É
preciso submeter seu pensamento ao método de análise eco-feminista sobre
o patriarcado. A fórmula de Marx, que afirma que o capital enfraquece
as duas únicas fontes da riqueza, ou seja, a terra e o trabalhador, é
enriquecida ao integrar também, de forma explícita, o trabalho agrícola e
a reprodução: pela lógica de seu desenvolvimento, o capital tende a
aumentar a exploração do trabalho assalariado, a opressão patriarcal das
mulheres (que assumem gratuitamente a maioria dos cuidados de
reprodução no marco da família), a destruição do meio ambiente e a ruína
do pequeno campesinato. Esta visão dinâmica senta as bases para a
necessidade histórica da convergência das lutas operárias, camponesas,
feministas, jovens e ecológicas. A ideia de Marx de que, a força de
trabalho humana é uma fonte não somente social (gerada pelas formas
cooperativas), e sim também natural, dá fundamento a sua afirmação de
que a apropriação privada da Terra aparecerá, um dia, tão bárbara como a
apropriação privada de um ser humano por outro. No entanto, a força de
trabalho feminina foi criada pela divisão sexual do trabalho [Marx e
Engels, na Ideologia Alemã, defendem a tese de que a primeira divisão do
trabalho deu-se entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos] e
na “família o homem é o burguês e a mulher o proletariado” (Engels).
Consequentemente, a apropriação do corpo das mulheres e sua
discriminação na esfera produtiva constituem uma forma específica de
apropriação da riqueza pelo capitalismo, que é necessário por em
evidência para que a análise desse modo de produção seja completa. Essa
forma se combina com a exploração do trabalho assalariado e a pilhagem
dos recursos que ocasiona, por outro lado, a ruína do campesinato
independente e a destruição das comunidades indígenas.
4.2.3. Nosso ecossocialismo integra este conjunto de
aspectos. A luta das mulheres forma parte da luta de classes – ainda
que não se limite a ela – porque a opressão patriarcal é um dos
fundamentos do capitalismo. As lutas em prol do meio ambiente formam
parte integrante da luta de classes – ainda que não se limitem a ela
porque o insaciável apetite do capital por consumir recursos é a
contrapartida da sua dependência do trabalho vivo, que transforma estes
recursos, por um lado, em valor e, por outro lado, reproduz a força de
trabalho no marco doméstico. Portanto, o ecossocialismo não é somente
uma aliança antiprodutivista entre o social e o ambiental, uma aliança
operário-camponesa: ele é também, levando em conta a influência do
feminismo nos meios social e ambiental, o próprio ecofeminismo
socialista. Para nós, o conceito de ecossocialismo não se justifica
somente pela (1) diferenciação com relação ao produtivismo burocrático
como característica do socialismo real em nome da libertação das forças
produtivas, (2) mas também pelo rompimento com as “escórias
produtivistas” presentes no pensamento de Marx e Engels, assim como,
mais ainda, na maioria dos marxistas posteriores a Marx. Os crimes
ecológicos da burocracia stalinista, da mesma forma que os crimes
sociais, não podem ser imputados ao marxismo. Mas “a ecologia de Marx”
constitui uma investigação inacabada. Nosso ecossocialismo tem também a
ambição de continuar a dita elaboração e transcender seus limites.
4.3. Decrescimento e ecossocialismo
4.3.1. É puro idealismo acreditar que um modo de
produção baseado na apropriação do corpo das mulheres e na sua
exploração, bem como na exploração da força de trabalho humano, como
força natural, poderia engendrar na maioria da população uma consciência
social respeitadora dos recursos naturais e da natureza em geral. Em um
sistema de produção geral de mercadorias, quer dizer, de “coisificação”
generalizada, a ideologia dominante em relação à “natureza” é,
necessariamente, a ideologia do mercado que considera o meio ambiente
como uma reserva de recursos gratuitos. A luta ecológica deve se unir às
lutas econômicas e feministas, para dar origem à força social de
transformação da ordem existente. Assim, as questões do trabalho, da
produção, da reprodução e do desenvolvimento, ocupam um lugar central no
nosso ecossocialismo. A natureza do Homo Sapiens seria a de produzir
socialmente sua existência através do trabalho, relação inevitável entre
a humanidade e a natureza. Cada geração se eleva sobre o homem da
geração precedente, de forma que o desenvolvimento é intrínseco à
espécie. No entanto, a natureza humana não existe, de forma concreta,
mais além de suas formas históricas. A resposta à crise ecológica não
consiste em “sair do trabalho”, em “sair do desenvolvimento”, em “sair
do consumo”, em “sair do crescimento”, etc…, que são abstrações
a-históricas. Consiste em sair do trabalho abstrato produtor de valor;
quer dizer, sair do modo produção capitalista baseado no crescimento do
Produto Nacional Bruto (PNB) ou Produto Interno Bruto (PIB) e do modo de
distribuição/consumo/reprodução que derivam dele.
4.3.2. A transição ecológica precisa de um
decrescimento global da produção material e também da diminuição dos
transportes. No entanto, o “decrescimento” não constitui um programa,
porque a necessidade global de “decrescimento” em geral não soluciona
nada. Levando em conta o desenvolvimento de cada país, existem setores
que devem ser eliminados, enquanto outros devem ser reduzidos e, por
outro lado, existem também aqueles que devem ser desenvolvidos. Os
apelos no sentido de “descolonizar a mente” são fórmulas vazias, na
medida em que, não formulam de forma concreta como se pode articular a
redução da produção material global com a satisfação do conjunto de
necessidades sociais insatisfeitas, e que setores devem crescer para
satisfazê-las, como orientar os investimentos rumo a estes setores, como
garantir (ou não) o emprego respeitando o “limite” dos imperativos
ambientais e, mais especificamente, climáticos. O decrescimento tampouco
é um projeto de sociedade, porque não aborda, em absoluto, as relações
de produção e as suas expressões jurídicas, que são as relações de
propriedade.
4.4. Ecossocialismo e a “verdadeira natureza”
4.4.1. Nós rechaçamos as diferentes variantes que
consideram que a “natureza” sofre de uma doença que foi transmitida pela
humanidade. Pois bem, esse modo de produção atual não é “natural” (como
foi o caso na história geológica de outras espécies). Ele está
historicamente determinado pelas relações sociais de produção. Portanto,
a capacidade de carga [que está relacionada basicamente com a
quantidade de comida que a Terra pode produzir, bem como com a
disponibilidade de água doce, dentre outros fatores ambientais] de nossa
espécie está historicamente e socialmente determinada. Qualquer
progresso em geral não é, “por natureza”, ecologicamente regressivo. O
modo de produção capitalista “produz” diante de nós e cada vez mais
rapidamente, uma natureza transformada e empobrecida. Para os
capitalistas, este “progresso destrutivo” não ameaça “o planeta” nem a
“vida em geral”, isto é, a vida, para eles, constitui uma característica
do planeta que nem sequer uma catástrofe termonuclear poderá acabar com
ela. Ao contrário disto, acreditamos que este progresso linear e
destrutivo do capitalismo encontra-se em via de destruir milhares de
formas vivas, além de ameaçar a existência de centenas de milhões de
pessoas e de agravar o risco da condução da humanidade em direção à
barbárie, e que poderia, inclusive, eventualmente e no final das contas,
ameaçar à espécie humana em seu conjunto.
4.4.2. A visão da “verdadeira natureza” como a
natureza sem seres humanos é a-histórica e misantrópica. Não contribui
para nenhuma solução real, pelo fato desta “natureza verdadeira”,
virgem, não existir em nenhum lugar do mundo. Frente a esta rua sem
saída, a cosmogonia dos povos indígenas (a Pachamama) [a Mãe Terra]
constitui uma fonte de inspiração para uma nova concepção da relação
entre a humanidade e a natureza, uma concepção libertada tanto da
paranoia da busca do lucro, bem como da racionalidade instrumental
própria das “gélidas águas do cálculo egoísta”. Mas esta cosmogonia é
uma fonte de inspiração, e não um produto de exportação. Uma sociedade
comunista, sem classes, em determinados aspectos se assemelhará às
chamadas sociedades “primitivas”, mas será muito diferente das mesmas,
devido ao nível de desenvolvimento das forças produtivas. Igualmente,
esta sociedade se assemelhará, em determinados aspectos, às sociedades
dos povos indígenas, mas será diferente. Uma concepção em que as noções
éticas de precaução, respeito e responsabilidade, assim como a
fascinação pela beleza do mundo, se alimentarão permanentemente, não
através de uma apreensão mágica, e sim mediante uma apreensão científica
cada vez mais fina e mais claramente incompleta.
4.5. Religião e crise ecológica
Com
relação à encíclica “Laudato Si!”, é preciso analisar sua importância,
suas debilidades e a origem das mesmas. Consideramos como a contradição
mais importante deste texto: o problema dos direitos das mulheres. Esta
questão é fundamental para nossa crítica ecossocialista.
5. Conclusão: ecossocialismo ou barbárie
Para nós,
também é preciso redefinir historicamente a advertência de Rosa
Luxemburgo, que foi formulada às portas da Primeira Guerra Mundial, e
fazer um paralelo com a “catástrofe que se anuncia”.
Disponível em: http://www.insurgencia.org/a-destruicao-capitalista-do-meio-ambiente-e-a-alternativa-ecossocialista/
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