Por Raphael Silva Fagundes
No pensamento de Rousseau, a crise das monarquias ocidentais
alimentava-se da postura que a crítica política burguesa assumia em
relação ao Estado absolutista. Em sua perspectiva iluminista e
democrática, o poder se faz pela opinião pública que, naturalmente,
desembocará na vontade geral. Mas o povo não é capaz de reconhecer a sua
verdadeira vontade. Assim, o poder do grupo mais interessado em se
tornar dominante, esconde-se por trás do véu da opinião pública.
Contudo, o poder não pode ser óbvio, pois se tornaria odioso, lembraria
(contraditoriamente) o próprio absolutismo: “o maior talento dos líderes
é disfarçar seu poder para torná-lo menos odioso”, diz o filósofo
genebrês.
Para o historiador Reinhart Koselleck, este é o verdadeiro poder
defendido pelos iluministas. Controlando a opinião pública, os
interesses burgueses ganharam preponderância sem parecer que seus
líderes eram os grandes influenciadores. Na verdade, eles estariam
apenas seguindo a vontade geral. Sendo assim, a crise vem da crítica
política feita pelo grupo que consegue influenciar a opinião pública e
que, por sua vez, anseia tomar o poder.
Trata-se de quem possui o monopólio de direito à fala, dos
instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e conhecimento.
Para Pierre Bourdieu, o detentor destes mecanismos terá o poder
simbólico, poder este capaz de definir o que é realidade para um número
amplo de pessoas. Antes, tal papel era da escola, agora, contudo, com a
ampliação do acesso aos aparelhos de comunicação, esse poder está nas
mãos de quem os controla. Ou seja, o Estado, aquele que controla o Plano
Curricular Nacional saiu de cena, tornando-se, assim, complementar.
Hoje, o poder está nas mãos das empresas que compram o tempo dos
comerciais exibidos nas telas e que ocupam as páginas dos jornais e
revistas mais lidos. A humanidade condenou seus olhos a estarem perante
uma tela (celular, tablet, cinema, televisão), é a era da tela global, e
quem tem mais presença nesta ecranosfera terá o maior poder de
influência.
A cultura da convergência, que nos faz criar a partir de pedaços e
fragmentos de informações, está lentamente se tornando uma fonte
alternativa ao poder midiático, mas as grandes corporações ainda têm a
maior influência. O monopólio de definição do real está nas mãos do
capital. A crítica capaz de gerar uma crise política é conduzida por
ele, não mais pelos intelectuais, padres ou partidos políticos.
Observemos uma questão importante. A imprensa (CBN, Globo, Record, Folha de S. Paulo etc.)
não critica as medidas econômicas adotadas por Temer. Reverencia as
reformas trabalhistas e as privatizações. No entanto, em relação à
política, adota-se uma outra postura. Há uma crítica severa ao governo
do presidente não eleito. Isso porque a imprensa tem um discurso para a
economia e outro para a política. Por um lado, deseja que os interesses
econômicos sejam predominantes e guiem a política do País (é a velha
teoria enganadora de fazer o bolo crescer para depois reparti-lo). Por
outro, deseja manter vinculada a imagem de Temer ao PT, a uma política
suja, de modo que a manutenção do anfitrião do Palácio do Jaburu no
poder acaba se tornando útil para esse propósito. Separam economia de
política, a primeira vai salvar a segunda.
"A mídia sempre apresentou dois
discursos. Um de ódio à política, de modo a se aproximar do povo, onde
se resume política à corrupção e que, nos últimos tempos, com o boom das
séries políticas da TV americana, passou-se a descrevê-la como um jogo
de poder onde o povo é apenas expectador"
A mídia sempre apresentou dois discursos. Um de ódio à política, de
modo a se aproximar do povo, onde se resume política à corrupção e que,
nos últimos tempos, com o boom das séries políticas da TV americana,
passou-se a descrevê-la como um jogo de poder onde o povo é apenas
expectador. Já em relação ao econômico, seu discurso se aproxima do
empresário, defendendo as medidas que “salvarão” o Brasil da crise,
obliterando o fato de que elas valem para salvar as fortunas
empresariais em detrimento das condições de trabalho da população.
O poder midiático convence o povo através de sua interpretação sobre
política, aproveitando-se do fato de que é na política que as emoções,
os valores e, em muitos casos, a moral se encontram. O povo acaba
pensando economicamente como as corporações midiáticas pelo fato de o
econômico ser descrito de forma complexa, neutra, fria e calculista.
Especialistas são chamados, números são exibidos. Como o homem
humilde poderia opinar? De onde emana um discurso similar ao dele (de
ódio à política), emana, também, um outro (voltado à economia) que ele,
ou é alheio, ou aceita por não compreender. A dominação, desta forma, é
feita pela a adesão popular ao discurso econômico burguês. A política
serve como espetáculo, onde se concentra o encanto retórico que conduz o
povo a defender os interesses econômicos que são antagônicos a sua
existência pacífica.
A palavra “crise” não foi cunhada para significar catástrofe, mas
para designar um momento onde se deve tomar uma decisão. Todavia, o que
vemos é uma comercialização da ideia de crise para justificar medidas
econômicas interessantes a empresas e às suas marionetes políticas.
Portanto, vender a Eletrobras e a Cedae, cortar investimentos sociais
etc., são projetos pré-crise, que se aproveitaram da “catástrofe”,
alimentando-se de uma retórica baseada na justificativa (que só aponta
uma solução possível), para ganhar força. A solução para a crise já
existia antes dela acontecer.
♦ Raphael Silva Fagundes
é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ.
Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
Disponível em: https://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/10631-a-comercializacao-simbolica-da-crise
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