sábado, 30 de dezembro de 2017

A COMERCIALIZAÇÃO SIMBÓLICA DA CRISE

(Charge: R. Crumb 77') 


Por Raphael Silva Fagundes


No pensamento de Rousseau, a crise das monarquias ocidentais alimentava-se da postura que a crítica política burguesa assumia em relação ao Estado absolutista. Em sua perspectiva iluminista e democrática, o poder se faz pela opinião pública que, naturalmente, desembocará na vontade geral. Mas o povo não é capaz de reconhecer a sua verdadeira vontade. Assim, o poder do grupo mais interessado em se tornar dominante, esconde-se por trás do véu da opinião pública. Contudo, o poder não pode ser óbvio, pois se tornaria odioso, lembraria (contraditoriamente) o próprio absolutismo: “o maior talento dos líderes é disfarçar seu poder para torná-lo menos odioso”, diz o filósofo genebrês.
Para o historiador Reinhart Koselleck, este é o verdadeiro poder defendido pelos iluministas. Controlando a opinião pública, os interesses burgueses ganharam preponderância sem parecer que seus líderes eram os grandes influenciadores. Na verdade, eles estariam apenas seguindo a vontade geral. Sendo assim, a crise vem da crítica política feita pelo grupo que consegue influenciar a opinião pública e que, por sua vez, anseia tomar o poder.
Trata-se de quem possui o monopólio de direito à fala, dos instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e conhecimento. Para Pierre Bourdieu, o detentor destes mecanismos terá o poder simbólico, poder este capaz de definir o que é realidade para um número amplo de pessoas. Antes, tal papel era da escola, agora, contudo, com a ampliação do acesso aos aparelhos de comunicação, esse poder está nas mãos de quem os controla. Ou seja, o Estado, aquele que controla o Plano Curricular Nacional saiu de cena, tornando-se, assim, complementar.
Hoje, o poder está nas mãos das empresas que compram o tempo dos comerciais exibidos nas telas e que ocupam as páginas dos jornais e revistas mais lidos. A humanidade condenou seus olhos a estarem perante uma tela (celular, tablet, cinema, televisão), é a era da tela global, e quem tem mais presença nesta ecranosfera terá o maior poder de influência.
A cultura da convergência, que nos faz criar a partir de pedaços e fragmentos de informações, está lentamente se tornando uma fonte alternativa ao poder midiático, mas as grandes corporações ainda têm a maior influência. O monopólio de definição do real está nas mãos do capital. A crítica capaz de gerar uma crise política é conduzida por ele, não mais pelos intelectuais, padres ou partidos políticos.
Observemos uma questão importante. A imprensa (CBN, Globo, Record, Folha de S. Paulo etc.) não critica as medidas econômicas adotadas por Temer. Reverencia as reformas trabalhistas e as privatizações. No entanto, em relação à política, adota-se uma outra postura. Há uma crítica severa ao governo do presidente não eleito. Isso porque a imprensa tem um discurso para a economia e outro para a política. Por um lado, deseja que os interesses econômicos sejam predominantes e guiem a política do País (é a velha teoria enganadora de fazer o bolo crescer para depois reparti-lo). Por outro, deseja manter vinculada a imagem de Temer ao PT, a uma política suja, de modo que a manutenção do anfitrião do Palácio do Jaburu no poder acaba se tornando útil para esse propósito. Separam economia de política, a primeira vai salvar a segunda.


"A mídia sempre apresentou dois discursos. Um de ódio à política, de modo a se aproximar do povo, onde se resume política à corrupção e que, nos últimos tempos, com o boom das séries políticas da TV americana, passou-se a descrevê-la como um jogo de poder onde o povo é apenas expectador"

A mídia sempre apresentou dois discursos. Um de ódio à política, de modo a se aproximar do povo, onde se resume política à corrupção e que, nos últimos tempos, com o boom das séries políticas da TV americana, passou-se a descrevê-la como um jogo de poder onde o povo é apenas expectador. Já em relação ao econômico, seu discurso se aproxima do empresário, defendendo as medidas que “salvarão” o Brasil da crise, obliterando o fato de que elas valem para salvar as fortunas empresariais em detrimento das condições de trabalho da população.
O poder midiático convence o povo através de sua interpretação sobre política, aproveitando-se do fato de que é na política que as emoções, os valores e, em muitos casos, a moral se encontram. O povo acaba pensando economicamente como as corporações midiáticas pelo fato de o econômico ser descrito de forma complexa, neutra, fria e calculista.
Especialistas são chamados, números são exibidos. Como o homem humilde poderia opinar? De onde emana um discurso similar ao dele (de ódio à política), emana, também, um outro (voltado à economia) que ele, ou é alheio, ou aceita por não compreender. A dominação, desta forma, é feita pela a adesão popular ao discurso econômico burguês. A política serve como espetáculo, onde se concentra o encanto retórico que conduz o povo a defender os interesses econômicos que são antagônicos a sua existência pacífica.
A palavra “crise” não foi cunhada para significar catástrofe, mas para designar um momento onde se deve tomar uma decisão. Todavia, o que vemos é uma comercialização da ideia de crise para justificar medidas econômicas interessantes a empresas e às suas marionetes políticas. Portanto, vender a Eletrobras e a Cedae, cortar investimentos sociais etc., são projetos pré-crise, que se aproveitaram da “catástrofe”, alimentando-se de uma retórica baseada na justificativa (que só aponta uma solução possível), para ganhar força. A solução para a crise já existia antes dela acontecer.



♦ Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

Disponível em:  https://www.carosamigos.com.br/index.php/artigos-e-debates/10631-a-comercializacao-simbolica-da-crise

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