A campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres é
uma mobilização que ocorre todo ano e envolve as instituições, diversos
setores da sociedade e muitas vezes até a mídia. Enquanto no resto do
mundo, a movimentação se inicia no dia 25 de novembro, dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, no Brasil, é no dia da Consciência Negra, 20 de novembro, que as atividades começam.
O
motivo desse deslocamento de datas é buscar destacar a opressão que
recai sobre as mulheres negras e a necessidade de olhar para as
especifidades para quem sofre o racismo e o machismo juntos, uma
combinação que potencializa vulnerabilidades sociais. Por exemplo, a
taxa de homicídio de mulheres negras é o dobro da taxa das mulheres
brancas e são as negras que se encontram na base da pirâmide social e
recebem menos que homens brancos, mulheres brancas e homens negros.
É
preciso ouvir mulheres negras e falar sobre o combo racismo e machismo e
combater seus efeitos em todos os espaços. Por isso, conversei com a
militante feminista e do movimento negro, Joice Berth. Joice é arquiteta e urbanista e colunista do Justificando. Ela também tem um perfil no Medium.
Thaís: Quais os principais desafios no combate ao racismo hoje? E ao machismo?
Joice Berth: Acho
que os desafios do combate ao racismo de hoje, são os de sempre. E é
simples, falta honestidade, boa vontade, e entendimento de que esse é o
canal formador das desigualdades juntamente com a misoginia e o machismo
que formaram nossa base social, definindo lugares e atuações
desastrosas, excludentes, violentas que permeiam todos os assuntos de
interesse geral. Quando a sociedade entender que é preciso um esforço
conjunto na erradicação desses demônios sociais, a gente começa a sair
do buraco. Enquanto houver negação, perseguição, deslegitimação e
desqualificação desses problemas e de quem os discute com seriedade,
todo mundo vai continuar insatisfeito e inseguro sobre o futuro do país.
Thaís: Quais temáticas feministas precisam ser encaradas também pela perspectiva de raça pelo movimento?
Joice: Todas.
Quando falamos em desigualdades no campo profissional por exemplo,
dizemos que mulheres brancas ganham menos que homens. Precisamos
racializar e lembrar que ela ganha mais que o homem negro e que ganha
mais que a mulher negra, salientando que ela adentra os espaços
profissionais, sobretudo os que fogem da subalternidade e exigem
qualificação acadêmica, ainda que de forma precária, mas mulheres negras
não estão sequer entrando, mesmo com as mesmas qualificações porque
estão socialmente colocadas nos lugares de servidão. Quando falamos em
ditadura da beleza outro exemplo que gosto muito de usar porque é
bastante simbólico, estamos falando da exclusão de mulheres negras dessa
categoria pelo racismo que estabelece um padrão branco com o único
aceitável. Então, abdicar das características impostas pelo padrão
branco, como cortar o cabelo ou não usar maquiagem, é muito
revolucionário para a mulher branca. Mas a mulher negra nunca sequer
teve a possibilidade de usar esses símbolos impostos pelo patriarcado.
Ou seja, para a mulher branca é revolucionário “não ser bonita”. Para a
mulher negra é revolucionário se entender bonita. Essas nuances, muito
sutis, muitas vezes geram discussões tolas, acusações e ataques que
partem de mulheres que não usam a empatia para compreender que nossos
caminhos, ainda que pautados pelo patriarcado, são diferentes e vão
gerar atuações específicas de enfrentamento. Também não podemos deixar
de falar das diferenças de ser mãe negra e mãe branca, isso gera outros
embates, outras vivências que precisam ser cuidadosamente conversadas.Enfim, todas as temáticas feministas devem ser racializadas.
Thaís: O que é feminismo negro? Por que é tão importante falar sobre ele?
Joice: Feminismo
Negro é uma vertente do feminismo que faz o recorte racial dentro das
demandas genéricas do feminismo hegemônico. Cronologicamente falando, o
feminismo nasceu branco, a demarcação histórica do feminismo no mundo se
deu através das mulheres brancas. No entanto, mulheres negras já eram
feministas orgânicas, que já lutavam por equidade de direitos, tanto de
gênero quanto racial. É importante falar sobre ele, porque essa
demarcação cronológica excluiu a luta de mulheres negras e suas
especificidades e cravou teoricamente a hegemonia de pautas, sem
considerar os entremeios e as peculiaridades naturais que existem dentro
da categoria humana “mulher”. Não só as negras e suas demandas que se
entrecruzam com a questão racial foram deixadas de lado. As mulheres
indígenas, as mulheres transgênero e lgbts, as mulheres rurais, latinas,
etc. Por isso o leque dessa luta precisa ser constantemente aberto. Até
porque, mulheres brancas têm um papel fundamental e estratégico nessa
luta e precisa entender que hoje, 2017, a função dela dentro da
sociedade precisa ser revista e unificada com as outras demandas que
ficaram no caminho, porque isso é condição fundamental para o avanço da
luta.
Thaís:
A reforma trabalhista já está em vigor, os parlamentares ainda querem
aprovar a reforma da Previdência e as ameaças aos direitos reprodutivos e
sexuais das mulheres, como a PEC “Cavalo de Tróia”, seguem em curso.
Num momento de avanço do conservadorismo e de retrocessos sociais, as
mulheres negras são as principais afetadas. Você pode falar um pouco
sobre isso?
Joice: Não
chegamos sequer a resolver as condições de trabalho que mantém a mulher
negra na base da pirâmide. As cotas raciais, tanto para acesso a
universidade quanto para acesso a cargos públicos específicos, foram um
avanço, mas não deram conta de tirar ou pelo menos minimizar a
permanência de mulheres negras nas posições mais precárias dentro da
esfera profissional. Tem doméstica que se formou em universidades, mas
continua sendo rejeitada no mercado de trabalho, porque a parede do
racismo continua atuando. Então,
sobre esses retrocessos, eu digo que eles não são novidade para nós que
estamos na base da pirâmide social, nós convivemos com eles
diariamente. Os poucos avanços concretos, pouco ou nada alteraram nossa
condição. Daí eu tenho que evocar Angela Davis, que diz que quando
melhora para mulheres negras, melhora de verdade e pra todo mundo. Nunca
melhorou pra gente, então é natural que essa fragilidade em algum
momento viesse à tona. O racismo é estrutural e estruturante. Enquanto
os movimentos políticos e sociais não entenderem isso e desenvolverem um
trabalho pautado por essa realidade, nada, nenhuma construção ou plano
de melhoria social, será concretizado. Sempre voltaremos à estaca zero.
Sempre.
Thaís: O racismo e o machismo afetam todo o tecido social. Como eles afetam a Arquitetura e o Urbanismo?
Joice: A
gente pode usar a Arquitetura e, principalmente, o Urbanismo para
ilustrar o quanto que a negação dos problemas de base que temos, acabam
minando todas as iniciativas de resolução das incongruências que
apuramos no tecido social. Poderia ser qualquer outra profissão, mas
como sou arquiteta de formação, gosto de observar o quanto os
planejadores urbanos, por exemplo, são problemáticos, porque sentam e
discutem o futuro de pessoas vitimadas pelo racismo e machismo, sem o
entendimento necessário das dinâmicas sociais que alocam pessoas nos
lugares de exclusão. Continuam brincando de salvadores da periferia, não
criam meios de desenvolver o empoderamento real das pessoas que moram
ali. Não fazem a leitura de que uma favela é uma área favelizada, porque
houve uma ação social que construiu aquele lugar como um depósito de
indesejáveis(e os indesejáveis têm cor e gênero específico) e tratam
desigualdades como se fossem fenômenos sociais autônomos, quando na
verdade são consequências materiais das estruturas sócias criadas e
mantidas para fundamentar os privilégios dos quais eles gozam. Dificilmente
você tem discussão sobre opressões estruturais dentro dos eventos de
arquitetura e urbanismo e quanto tem, não atinge a profundidade
necessária para instrumentalizar profissionais para que estes se abram
para novas visões, novas perspectivas de atuação profissional mais
condizentes com a realidade cotidiana de um país como o nosso.
Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/ativismodesofa/2017/11/22/1747/
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