Filósofa já está no Brasil e fala à AzMina sobre racismo, feminicídio e as tentativas de silenciá-la.
Para a Wikipedia ela é “uma das
principais teóricas da questão contemporânea do feminismo”, mas para as
mais de 360 mil pessoas que aderiram a este abaixo assinado,
ela é a “idealizadora e uma das principais promotoras da ideologia de
gênero”. Judith Butler, americana, filósofa, lésbica e professora da
Universidade da Califórnia em Berkeley desembarca no Brasil em meio a um
combo de polêmicas sobre sexualidade, disparadas por episódios como o
cancelamento de uma exposição cujas obras incitariam a pedofilia e a
decisão do MASP de, pela primeira vez em sua história, impor restrição
etária em uma de suas exposições – cujo tema é sexualidade.
Para a filósofa, aqueles que temem a “ideologia de gênero” e o
feminismo temem que “se não afirmarmos as diferenças naturais entre os
dois sexos, a base heterossexual do casamento pode ser questionada,
assim como o papel do casamento heterossexual como necessário para a
família”. Ela explicou, no entanto, que o gênero não nega diferenças
biológicas entre os sexos, mas permite perguntar como as diferenças
biológicas são organizadas e como refletimos sobre a relação entre
diferenças biológicas e papéis e identidades sociais.
“Essas perguntas já estão sendo feitas em todo o mundo, e parece
muito tarde para silenciá-las. Aqueles que temem essas questões temem
novas formas sociais de sexualidade, intimidade e família”, conclui.
Butler palestra hoje (6) às 19 horas sobre seu Caminhos divergentes – Judaicidade e crítica do sionismo,
recém lançado no Brasil pela editora Boitempo. As inscrições para o
evento, parceria entre a Boitempo, a Unifesp e a ICArabe, já se
esgotaram, mas haverá transmissão ao vivo com link a ser divulgado na página oficial do evento
no Facebook. Terça (7), quarta (8) e quinta (9) é a vez do SESC
recebê-la para o simpósio “Os Fins da Democracia”, do qual a filósofa é
organizadora.
Leia a seguir a entrevista exclusiva que Butler concedeu a AzMina por email:
AzMina: Sua vinda ao Brasil tem sido bastante
repudiada por movimentos que vinculam seu nome ao que chamam de
“ideologia de gênero”. Um dos abaixo assinados que pedem o cancelamento
de suas palestras diz que “não podemos permitir que a promotora dessa
ideologia nefasta promova em nosso país suas ideias absurdas, que têm
por objetivo acelerar o processo de corrupção e fragmentação da
sociedade”. São acusações bastante abstratas, mas que claramente apelam
para algum tipo de medo. Como você compreende esse medo? Quais as
estruturas e dinâmicas são desafiadas por suas ideias?
Butler: Eu acho que
existe um equívoco a respeito do significado do termo “gênero”. Para
aqueles que acreditam que existe uma lei natural ou divina que distingue
os dois sexos e estabelece seus respectivos papéis sociais na
sociedade, o gênero parece ser um conceito que refuta essa crença.
Acredito também que exista um temor de que, se não afirmarmos as
diferenças naturais entre os dois sexos, a base heterossexual do
casamento pode ser questionada, assim como o papel do casamento
heterossexual como necessário para a família. Assim, todos os medos que
as pessoas têm sobre mulheres que assumem novos papéis na sociedade,
sobre o movimento LGBTQI e o casamento gay, sobre o uso de tecnologias
reprodutivas, sobre o direito ao aborto, sobre o crescente número de
famílias “misturadas” e famílias gays e lésbicas com filhos, sobre arte
sexualmente explícita – tudo isso está associado aos efeitos do
“gênero”. Mas o gênero não nega
diferenças biológicas entre os sexos, embora a perspectiva do gênero nos
permita perguntar como as diferenças biológicas são organizadas e como
refletimos sobre a relação entre diferenças biológicas e papéis e
identidades sociais. Essas
perguntas já estão sendo feitas em todo o mundo, e parece muito tarde
para silenciá-las. Aqueles que temem essas questões temem novas formas
sociais de sexualidade, intimidade e família. No entanto, as formas
tradicionais podem coexistir com formas não tradicionais, e muitas
pessoas vivem uma combinação de ambos.
AzMina: Em setembro deste ano, uma exposição
intitulada “Queermuseu – cartografias da diferença na arte da
brasileira”, foi suspensa depois de uma onda de protestos na internet.
Ainda em setembro, viralizou um vídeo não autorizado gravado no Museu de
Arte Moderna no qual uma criança acompanhada de sua mãe toca os pés de
um artista que se apresentava nu. Protestos na porta do museu contra a
performance incluíram agressão física. Em 20 de outubro estreou no Museu
de Arte de São Paulo a exposição “Histórias da Sexualidade”, com
classificação etária de 18 anos. É a primeira vez que a presença de
menores, mesmo que acompanhados dos responsáveis, é vetada em uma
exposição do museu. Esses esforços no sentido de isentar a infância de
sexualidade têm sido recorrentes no Brasil, com desdobramentos
conservadores importantes no campo da Educação e, agora, na Arte. O que
há por trás dessa concepção de infância e como o conceito de
performatividade pode nos ajudar a desconstruí-la?
Butler: Eu
compreendo que os esforços virtuais para impedir que eu fale (que são
curiosos, posto que eu não irei falar no SESC, sou apenas uma
organizadora da conferência lá) podem ser compreendidos tal como a
terceira parte desta história, embora as duas primeiras presumam que
haverá dano para as crianças, e meu discurso é posto como corrompendo e
fragmentando a sociedade. Talvez tenhamos que entender a política da
família que liga essas três casos. Tocar os pés de um dançarino nu ou
até mesmo ver uma foto de um dançarino nu é perturbador para algumas
pessoas que acreditam que as crianças não devem ser expostas a situações
potencialmente sexuais. Acho que todos nós podemos concordar que a
exploração sexual das crianças é errada, mas discordamos a respeito de a
arte por si só ser ou não capaz de causar danos da forma como alguns
supõem. Independentemente dos debates sobre se essas representações são
pornografia ou arte de outro tipo, parece claro que os censores querem
que as crianças permaneçam no escuro sobre a nudez humana e suas
alegrias. A censura comunica que
dançar nu é vergonhoso ou perigoso, mas talvez isso seja uma forma de
contestar a cultura da vergonha sexual. Nós
podemos e devemos nos opor a situações de danos sexuais, mas podemos e
devemos nos opor à vergonha sexual por atos alegres e não prejudiciais
capturados através de imagens.
AzMina: O Brasil foi o último país do globo a abolir
a escravidão, e apesar de negros representarem 53% de nossa população,
apenas 17% dos mais ricos são negros. Em 20 de novembro celebra-se aqui o
Dia da Consciência Negra, uma data que discute o racismo sob diversas
perspectivas. O contradiscurso passa por questionamentos acerca da
inexistência de um “dia da consciência branca”, pela afirmação da
miscigenação como marca da identidade brasileira e outras forma de
negação do racismo, muitas vezes semelhantes aos discursos que negam as
desigualdades de gênero. Estes dois recortes – raça e gênero – se
entrelaçam, resultando em desigualdades ainda maiores quando falamos em
mulheres negras. A exemplo disso, de 2014 para 2015 o Brasil viu uma
redução de 7,4% no homicídio de mulheres não negras contra um aumento de
22% no homicídio de negras. Seria útil enfrentar esses problemas
aplicando a ideia de gênero como “repetição estilizada de atos”, que
você discute em Problemas de gênero, a questões de raça? Seria a
branquitude também uma “repetição estilizada de atos” a serviço da
criação e manutenção de uma norma excludente?
Butler: O que eu
sugeriria é que nos questionemos sobre quais populações são consideradas
fáceis de matar e merecedoras da morte. A prática generalizada do
feminicídio, o que inclui mulheres trans e travestis, vitima
desproporcionalmente as mulheres negras. Estas são formas sistêmicas de
racismo, repetidas ao longo do tempo, estabelecendo o direito não apenas
de dominar, mas de matar, por parte dos homens que procuram instalar e
impor a desigualdade racial e de gênero. Ao tentar entender o
feminicídio, temos que nos perguntar como o gênero e a raça se
interseccionam para entender as formas de dominação que procuram manter a
supremacia branca e continuar o legado da escravidão por outros meios.
Portanto, há um caráter repetitivo, se não compulsivo, para o
feminicídio – não só no Brasil, mas em toda a América Latina,
especialmente em lugares como Honduras. Podemos dizer que uma forma de supremacia de gênero e raça se constitui de novo e de novo a cada ato de assassinato. Mas
não podemos compreender essa forma de poder sem compreender o passado
imperial, a instituição da escravidão e sua continuação no presente, e
as formas pelas quais as mulheres negras sofrem a convergência dessas
histórias. As redes de resistência são impressionantes, uma vez que é
evidente que a aplicação da lei ainda não é um aliado do movimento.
AzMina: Seu livro Caminhos divergentes – Judaicidade e crítica do sionismo,
amplia o espaço para que críticas progressista ao Estado de Israel –
que frequentemente são acusadas de serem anti-semitas – aconteçam dentro
do campo da judaicidade. Em abril, o pré candidato à presidência do
Brasil Jair Bolsonaro palestrou no Clube Hebraica, onde fez afirmações
preconceituosas e jocosas sobre negros, indígenas, mulheres, gays,
refugiados e integrantes de ONGs, e defendeu que todo brasileiro tenha
uma arma de fogo em casa. Foi muito aplaudido e ouviu gritos de apoio,
sendo chamado de “mito” por parte da plateia. A Confederação Israelita
do Brasil criticou a presença de Bolsonaro no clube. Como você avalia
este embate entre forças progressistas e conservadoras dentro da
comunidade judaica brasileira?
Butler: Eu não conheço a comunidade judaica
brasileira o bastante para te dar uma resposta, mas talvez eu compreenda
isso melhor depois da minha visita. O que muitas vezes eu consigo ver é
que alguns conservadores olham para o Estado de Israel não apenas
porque ele contém uma população minoritária (os palestinos), mas porque
tem uma força militar forte e está disposto a usar a força militar de
formas que claramente desafiam o direito internacional . Nos Estados
Unidos, o supremacista branco Richard Spencer invocou o Estado de Israel
como um modelo para seu próprio projeto, argumentando que assim como os
judeus queriam seu próprio estado, também os brancos o querem. É claro
que há uma oposição generalizada a este tipo de racismo dentro da
comunidade judaica nos EUA e em Israel, mas isso nos diz algo sobre como
o Estado de Israel é percebido. Muitos judeus entendem o que significa
ter sido oprimido por conta do genocídio nazista, e para muitos isso os
obriga a lutar contra opressões de todos os tipos, recusando o racismo
de todos os tipos.
Disponível em: http://azmina.com.br/2017/11/e-muito-tarde-para-silenciar-questionamentos-sobre-genero-diz-judith-butler/
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