A presença de gays na religião afro sempre foi visível, mas o diálogo com a sociedade ainda precisa avançar.
Cena da Parada do Orgulho Gay em Brasília. Nas ruas, o preconceito é maior do que nos terreiros
Painho, um dos personagens mais famosos de Chico Anysio,
era um pai de santo homossexual, cheio de trejeitos e afetações. Mesmo
delineado com os traços fortes da caricatura, encontrava na realidade
dos terreiros sua inspiração.
O candomblé
sempre acolheu homens e mulheres homossexuais e essa condição nunca foi
empecilho para que se tornassem respeitados como sacerdotes e
inscrevessem seu nome na história de luta e resistência da religião.
Isso não significa, porém, que tenha sido uma trajetória fácil.
Apesar de ser um espaço de acolhimento, o terreiro nunca
esteve livre de reproduzir os preconceitos que a sociedade suscitava.
Portanto, mesmo incluídos na estrutura hierárquica do candomblé, os
homossexuais travaram algumas batalhas para ter seu lugar reconhecido.
Seguem na luta, mas, ainda assim, ser gay no candomblé é infinitamente
mais fácil do que ser gay em muitas religiões, sobretudo nas mais
tradicionais.
Num momento em que o debate sobre a tal “cura gay” retoma
a cena, parece oportuno marcar a posição do candomblé enquanto
território de acolhimento e inclusão. Religião e homossexualidade sempre
pareceram andar em sentidos opostos, mas a postura dos povos de matriz
africana, desde sempre, foi em outra direção. Isso rendeu ao candomblé
mais um estigma e ratificou sua vocação para ser a grande religião dos
excluídos.
Pai de santo homossexual soava muitas vezes como um
pleonasmo. Trata-se, obviamente, de um estereótipo, de um preconceito.
Há, e sempre houve, pais e mães de santo heterossexuais. Alguns,
inclusive, com várias mulheres e uma prole respeitável. Outros com seus
relacionamentos múltiplos, com gente de ambos os sexos. E há ainda mães
que são lembradas pela discrição, quase um celibato, sem, contudo,
deixar de dar margem a todo tipo de especulação.
Heteronormatividade e candomblé nunca flertaram. A
antropóloga Teresinha Bernardo disse certa vez com propriedade: “O
candomblé liberta as pessoas para a vida”. Liberta também para a
sexualidade. O que muitos considerariam perversões, taras, desvios, são
comportamentos absolutamente naturais para o povo do axé. Não se trata
de uma religião permissiva, longe disso. É bom que se diga que não
criminalizar comportamentos ou orientações sexuais é muito diferente de
ser conivente com abusos de qualquer ordem.
No terreiro, a homossexualidade sempre esteve presente de
forma muito natural e tranquila. Nunca foi considerada doença nem
perversão. Claro que algumas mentes colonizadas tentaram impor outros
padrões e obrigaram muitas vezes gays e lésbicas a se esconder,
reprimindo comportamentos, controlando os corpos, coibindo desejos. Mas,
na sua essência, o candomblé sempre aceitou e respeitou a condição
humana, por isso é certamente a religião com a maior proporção de
homossexuais assumidos, inclusive entre as lideranças.
A perseguição histórica sofrida pelos povos de matriz
africana abre o precedente para que seus territórios saibam acolher e
compreender todos que de alguma forma foram marginalizados. A própria
condição do negro na sociedade nos ensinou que a união de todos aqueles
que são discriminados é uma estratégia de resistência.
Gays e lésbicas
contribuíram para a preservação de nossas tradições. Muitos pais e
filhos de santo homossexuais ajudaram no processo de expansão da
religiosidade e da cultura dos terreiros. Um bom exemplo foi a
construção de um código de comunicação com base na linguagem do terreiro
utilizado pelos gays e travestis como instrumento de defesa contra a
opressão. “Pajubá” é praticamente um idioma das ruas que mistura
palavras de várias línguas africanas preservadas nos candomblés.
Uma onda conservadora assola o País e fomenta um sem-número
de retrocessos ideológicos que acabam culminando em ações práticas. Seja
por meio de um projeto de lei que tramita no Congresso, seja pela
liminar de um juiz, não se pode admitir que uma condição humana seja
tratada como doença. Não há argumento capaz de justificar tamanho
disparate.
Reacender a discussão sobre a “cura gay” é um desserviço, um
entrave à cultura de paz, ao diálogo e ao pleno respeito à diversidade.
Determinar o que é certo ou errado a partir de convicções religiosas e
tentar limitar o acesso à dignidade, pois é digna uma vida sexual plena,
é condenar à perseguição cidadãos e cidadãs que têm direitos, que pagam
impostos, que cumprem seus deveres e não precisam nem merecem ser
submetidos às loucuras de fanáticos fundamentalistas que em nome da
preservação da família, da tradição e dos bons costumes condenam seres
humanos a viver sob a égide desumana de um deus castrador e punitivo.
Quando alguém argumenta a favor da “cura gay” e diz que
“pessoas que não podem ter filhos são como árvores secas que só servem
pra lenha”, percebemos o grau de debilidade a que uma sociedade chegou.
Sim, a sociedade chegou nesse nível e pode ir mais longe. Uma análise à
luz de Foucault ajudaria a explicar, mas não há mentes abertas para o
entendimento. Primeiro, trata-se o gay como aberração, depois como
doente e há também os que consideram a homossexualidade um crime, haja
vista os países que a punem com penas severas, inclusive de morte.
No Brasil, o desrespeito, a omissão, o silêncio são o júri
que vem condenando muitos homossexuais à morte. Não podemos admitir que
se discuta uma cura para aquilo que não é doença. Pessoas morrem por ser
homossexuais, são assassinadas com requintes de violência. Portanto, é
urgente que o Congresso se ocupe em discutir o que realmente importa, é
preciso tornar a homofobia crime. Não podemos permitir que gays,
lésbicas, travestis, transgêneros, transexuais, bissexuais sejam a lenha
da fogueira na qual esses negros macumbeiros devem arder para expiar
seus pecados.
Disponivel em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/homossexualidade-e-candomble
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