Do apoio à “cura gay” aos ataques à exposição Queermuseu, a defesa de
Jesus é geralmente invocada para mascarar o preconceito e a intolerância.
Uma das obras da Queermuseu, encerrada antes do prazo
Nos últimos dias testemunhamos episódios no País que
chamaram a atenção e provocaram reações dos mais diferentes grupos,
especialmente os religiosos: a oposição à exposição Queermuseu,
patrocinada pelo Banco Santander, em Porto Alegre. A proibição pela
Justiça de uma peça teatral no SESC de Jundiaí que retrata Jesus, no
tempo presente, como uma mulher trans. E a decisão judicial de liberar o
tratamento de reversão homossexual e a realização de pesquisas sobre o
tema, a chamada “cura gay”.
Ações presenciais e midiáticas levaram cristãos, evangélicos
e católicos, a participar ardorosamente destas manifestações de
intolerância, por vezes inflando-as com discursos baseados numa defesa
de Jesus e do Evangelho.
Ao acessar estes conteúdos, publicados em mídias sociais e
em documentos oficiais de grupos cristãos, veio-me à memória um clássico
hino evangélico, trazido pelos missionários no século XIX, popularmente
conhecido como “Glória, glória, aleluia!”. Uma das estrofes diz: “Da
vaidade, fiéis servos lutam por fazer-nos seus / Muitas vezes nos
assaltam os modernos fariseus / Mas se alguém procura ver-nos sem a
graça do bom Deus / Vencendo vem Jesus!”. O verso ecoou na minha mente:
“Modernos fariseus”...
Fariseus ("separados", "santos”, no hebraico) eram um grupo
de religiosos no tempo e no lugar em que viveu Jesus de Nazaré, tal como
relata a Bíblia cristã. Tinham grande influência, pois eram os
guardiões da lei religiosa, defensores dos valores da "gente de bem" da
época.
Os fariseus foram dos que mais criaram problemas para Jesus,
pois criticavam-no por não cumprir os princípios e regras religiosas
que defendiam. As narrativas bíblicas contam como Jesus era
mal visto por ser originário de Nazaré, uma periferia da Palestina.
Além de ele andar com gente não considerada "de bem": pobres pescadores,
deficientes, mulheres, contestadores da ordem vigente.
Também por Jesus estar mais presente em espaços considerados
"não frequentáveis": a beira-mar, lugar dos socialmente excluídos,
casas dos considerados impuros, periferias e locais de outras culturas.
Ele ainda rompia com regras socioculturais e religiosas que
excluíam integrantes da sociedade e os impediam de viver plenamente:
rituais de limpeza do corpo como valor extremo, separação dos “impuros”,
permissão de injustiças no dia do descanso, o sábado.
Jesus, por sua vez, não se omitiu frente a esse grupo dos
fariseus. Era sabedor de que a interpretação deles da lei religiosa era a
que lhes convinha. Impunham pesadas culpas e exclusão, especialmente
aos menos favorecidos, e privilegiavam os de maior importância social.
Eles tinham apoio de grupos do poder político. Jesus não se omitiu e,
segundo o evangelista Mateus (capítulo 23), os chamou de “hipócritas”
porque “dão o dízimo, mas negligenciam os preceitos mais importantes da
Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; porque limpam o exterior do copo e
do prato, mas estes, por dentro, estão cheios de rapina e
intemperança”.
Jesus chamou os fariseus de “guias cegos, que coam o
mosquito e engolem o camelo”, de “serpentes, raça de víboras” e também
de “sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas
interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia! Que
exteriormente parecem justos aos homens, mas, por dentro, estão cheios
de hipocrisia e de iniquidade”.
Não à toa os fariseus estiveram entre aqueles que tramaram para Jesus ser preso, torturado e recebesse a pena de morte.
E “os modernos fariseus”? Como não pensar neles? Não seriam
os que atuam nas mídias sociais em prol da censura de manifestações
artísticas divergentes de sua concepção do mundo e de Deus, das quais
até desconhecem o conteúdo? Como não identificá-los nas postagens de
vídeos e memes raivosos e desrespeitosos em relação à sexualidade e à
afetividade diferente de seus padrões?
“Hipócritas e sepulcros caiados”, que dizem defender a fé
cristã, restringindo-a à moral sexual, enquanto a justiça e a
misericórdia são negligenciadas. Isto acontece no silêncio em relação à
juventude dizimada nas periferias, aos indígenas assassinados por
garimpeiros e grileiros nas matas do Brasil, aos direitos que são
retirados dos trabalhadores, ao patrimônio natural destruído pela
ganância do agronegócio... Para listar apenas algumas ações que ameaçam a
integridade e a dignidade dos humanos criados por Deus.
Destes “modernos fariseus” (lideranças eclesiásticas,
educacionais e midiáticas), não se pode esperar muito. O mesmo podemos
dizer de religiosos comuns que reproduzem acriticamente esses conteúdos.
Mas isto não é novo. O escritor russo Dostoiévski,
no século XIX, narrava no conto “O Grande Inquisidor” (no livro “Os
Irmãos Karamazov”) que se Jesus de Nazaré voltasse à Terra, seria
crucificado de novo... Ainda bem que existem aqueles e aquelas que o
seguem até o fim.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-assalto-dos-201cmodernos-fariseus201d
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