Há dez dias, a chamada lista suja do trabalho escravo,
que revela o nome de empregadores envolvidos em contratações análogas à
escravidão, voltou a ser publicada. Ela estava suspensa desde 2014,
quando o então ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, acatou o pedido feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que conta com construtoras flagradas explorando trabalhadores expostas na lista. A Abrainc
argumentou que não havia a garantia do direito de defesa das
empregadoras. Seguiu-se um imbróglio jurídico e a edição de uma nova
portaria, mudando a forma como a lista é divulgada – apenas
trabalhadores com todos os recursos administrativos esgotados
apareceriam.
A entrevista é de Talita Bedinelli, publicada por El País, 02-04-2017.
Mesmo com o entendimento do próprio Supremo de que as mudanças
apaziguavam as inquietações das construtoras, o Governo federal, já sob a
tutela de Michel Temer,
recusava-se a publicá-la. Foi preciso que o Ministério Público do
Trabalho conseguisse uma liminar, obrigando que o documento, elogiado
pela Organização das Nações Unidas, voltasse a se
tornar público. Mas, ainda assim, não há garantia de que ela não se
tornará secreta, novamente, já que a liminar pode ser derrubada a
qualquer momento.
O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, conta que está é apenas mais uma das dificuldades vividas pelo combate ao trabalho escravo no Brasil. Responsável pela equipe que flagra as denúncias, ele conta os problemas enfrentados pela fiscalização.
Eis a entrevista.
Por que a lista existe e é importante que seja publicada?
A chamada lista suja
foi criada por meio de uma portaria para evitar que essas empresas que
exploram trabalhadores em condições análogas à de escravo tivessem
acesso a empréstimos públicos. A ideia era que não faria sentido o
próprio Estado financiar uma empresa que estava submetendo seus cidadãos
a uma condição análoga à de escravo. Durante mais de dez anos houve a
lista sem qualquer contestação. Até que, em 2014, após operações onde
foi constatada a existência de trabalho escravo na construção civil, as construtoras criaram uma associação, que contestou a portaria no Supremo Tribunal Federal. O ministro Ricardo Lewandowski
determinou, num plantão de final de ano, a suspensão da lista acolhendo
o argumento de que ela não oferecia o direito do contraditório e de
defesa. Tentamos derrubar a medida no próprio Supremo. E, como ela não
caiu, tentamos um acordo para que o Governo reeditasse a portaria,
corrigindo questões levantadas pelo ministro. E assim foi feito.
E depois?
A portaria que está em vigor, que é de meados do ano passado, atendeu às exigências do ministro. A ministra Carmen Lúcia,
já presidente do Supremo, entendeu que a ação das construtoras tinha
perdido objeto. A partir de então, começamos as tratativas com o
Ministro do Trabalho, já do Governo Michel Temer, e em
razão de não haver uma definição sobre a publicação da lista ajuizamos
uma ação civil pública para que o ministério efetivamente cumprisse a
portaria, feita pelo próprio Governo. Houve uma defesa por parte da
União, contestando a portaria. Hoje, há uma liminar determinando a
publicação. Por isso a lista foi publicada na semana passada.
Qual a garantia de que a lista não será tirada do ar novamente?
Tivemos uma reunião com o ministro [do Trabalho, Ronaldo Nogueira]
na terça-feira ele nos afirmou que enquanto ele for ministro a lista
está mantida. Independentemente do desfecho judicial, ele disse que vai
publicar a lista.
Mas se o próprio Governo está recorrendo, como ele pode assegurar isso?
Confesso que é um pouco estranho mesmo. Dentro do próprio Governo
esta questão não é tranquila. Tanto o Ministério da Justiça como o dos
Direitos Humanos, desde o início da ação civil pública, emitiram notas
técnicas no sentido de que a lista deveria ser publicada. Então, a
restrição se restringiu à AGU [Advocacia-Geral da
União] e ao Ministério do Trabalho. Os outros dois órgãos que assinaram a
portaria são a favor dela. O que estamos buscando, e conversamos com o
ministro sobre isso, é que seja feito um acordo judicial para que se
formalize a posição dele.
Caso o Governo brasileiro reverta a decisão de se publicar a lista, para onde recorrer?
Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos e para a OIT
[Organização Internacional do Trabalho]. Existe uma série de requisitos
para que o país seja denunciado em ambos os órgãos internacionais. Um
deles é que a gente vença essas etapas no judiciário local. Então,
estamos deixando para pensar nisso depois.
A lista que saiu agora não está completa, certo?
Alguns nomes foram publicados e depois retirados. Nós oficiamos o
Ministério do Trabalho para que o órgão explique os motivos dessa
retirada.
Desde 2014, quando a lista deixou de ser publicada, apenas
isso se desobedeceu ou todo o resto deixou de ser cumprido, como a
contratação com o Governo?
A partir do momento que deixou de ser publicada a lista voltou tudo ao que era antes.
E qual prejuízo pode ter havido neste período?
O que existe é o trabalhador que precisa pegar
água no cocho onde o gado bebe água. Isso eu já constatei. É trabalho
degradante. Ou pegar água no rio onde ficam os búfalos o dia inteiro,
como eu também já vi na Ilha de Marajó
O prejuízo é o efeito pedagógico. Faltava a exposição pública dessas
empresas para que a própria sociedade possa ter a consciência de que
aquele produto foi produzido com mão de obra escrava.
Por exemplo: eu vou comprar um vestido para a minha mulher ou um terno
para mim, se eu sei que aquela loja já foi condenada por trabalho
escravo eu não vou comprar naquela loja. A gente precisa dessa exposição
pública para que a sociedade faça a opção. Se a gente pegar o nível de
resgate de trabalhadores vemos que a partir das condenações, junto com a
publicação da lista, houve uma queda significativa nos números de
resgates de trabalhadores em condição análoga à de escravo. Isso é
resultado do efeito pedagógico.
Falamos de trabalho escravo, no Brasil, em 2017, quando as
convenções assinadas pelo país são de décadas atrás. Por que isso ainda
acontece? É um problema de legislação?
Nossa legislação é uma das mais modernas do mundo. É uma legislação reconhecidamente progressista no tema. O Brasil é referência na OIT e na ONU
sobre trabalho escravo. O que falta no país? Primeiro, uma consciência
política e humana com relação ao trabalho. Fomos um dos últimos países
do mundo a abolir a escravidão.
E nós ainda temos uma mentalidade escravagista, da propriedade. Até
pouco mais de cem anos atrás, o trabalho era visto como algo sujo, como
algo que quem tinha que fazer era o escravo. O trabalho no Brasil
ainda não é visto como algo nobre, tanto que o sonho do brasileiro é
ganhar na loteria para parar de trabalhar. É preciso introjetar na nossa
cultura que o trabalhador é fonte de riqueza. Se fala muito que quem
gera riqueza nesse país é o empresário. Mas, não. Quem gera é o
investimento do empresário é o trabalho do trabalhador. Não deveria
existir essa dicotomia entre capital e trabalho. Talvez isso explique a
quantidade de problemas que ainda temos em 2017 com relação ao trabalho
escravo. Além disso, temos um déficit de auditores fiscais do trabalho
muito grande, o que também dificulta as ações contra o trabalho escravo e
outras fraudes. O Ministério Público do Trabalho já entrou com uma ação civil pública contra a União para que fossem realizados os concursos. Essa ação está em curso ainda.
Como o flagrante ao trabalho escravo é feito no país?
A gente trabalha muito com denúncias. Especialmente de trabalhadores
que fogem das fazendas e relatam isso para entidades parceiras. Elas
comunicam para a gente, fazemos os grupos móveis e as operações. Pelo
tamanho do Brasil, o preço para o deslocamento é muito grande. No Sul do
Pará tem fazenda maior do que muitos municípios do Brasil. Até para
achar a entrada da fazenda, a sede, é uma novela. Para a gente acessar
uma fazenda às vezes nem com carro com tração nas quatro rodas, tem que
pegar barco, helicóptero, algo muito difícil, verdadeiras aventuras. Se a
gente não tiver esses informantes às vezes não consegue chegar. Estamos
procurando um trabalho mais efetivo com a polícia, com a polícia
rodoviária. Fazer um trabalho de inteligência para dar mais efetividade
para as ações.
Temos um Legislativo muito conservador. Tenta-se, inclusive,
mudar as regras do combate ao trabalho escravo. Há deputados que acusam a
fiscalização de punir, por exemplo, fazendas por não haver copos
plásticos para que o trabalhador beba água. Como vê isso?
Já peguei um caso no Tocantins
que o trabalhador estava operando uma serra elétrica, que pegou um nó
na madeira, pulou e quase arrancou a perna dele. E o empregador falou:
‘isso não é problema meu, se vira’. Achamos esse trabalhador se
arrastando na estrada. Isso não é o que se faz nem com um animal
Esse argumento eu já ouvi. É um absurdo, uma situação que não existe.
O que existe é o trabalhador que precisa pegar água no cocho onde o
gado bebe água. Isso eu já constatei. É trabalho degradante. Ou pegar água no rio onde ficam os búfalos o dia inteiro, como eu também já vi na Ilha de Marajó (Pará). O que se pretende no projeto que tramita no Senado Federal é restringir o trabalho escravo a apenas o trabalho com restrição de liberdade. Esse conceito é o que a gente tinha quando a Lei Áurea
foi editada. Se isso passar, vamos ter um atraso de uns 130 anos na
história. Eles querem tirar o conceito de jornada exaustiva e de
trabalho degradante da norma. Claro que jornada exaustiva não é a de 10,
12 horas. É a de 18, 20 horas por dia. Condição degradante é o
trabalhador ser obrigado a se alimentar com comida podre, a beber água
de rio, fazer as necessidades no meio do mato. É ele se machucar e ser
jogado no meio do mato. Já peguei um caso no Tocantins
que o trabalhador estava operando uma serra elétrica, que pegou um nó na
madeira, pulou e quase arrancou a perna dele. E o empregador falou:
‘isso não é problema meu, se vira’. Achamos esse trabalhador se
arrastando na estrada. Isso não é o que se faz nem com um animal. Há
fazendas de criação de gado que têm até instalações hospitalares para o
gado, mas o trabalhador não tem, sequer, uma cama para dormir ou água
tratada.
Preocupam as investidas do Legislativo em relação às leis trabalhistas, como a recém-aprovada Lei da Terceirização?
É uma pauta nitidamente empresarial em que se busca a retirada de
direitos trabalhistas. Em que pese o discurso ser o da segurança
jurídica, o que a gente vê são propostas que trazem muito mais
insegurança. É uma pauta precarizante, em que os empresários buscam
diminuir os seus custos, retirando os direitos dos trabalhadores.
A terceirização pode eventualmente estimular o trabalho degradante?
A terceirização hoje é condição sine qua non para o trabalho escravo
Hoje 92% dos trabalhos em condições análogas à de escravo no Brasil
são oriundos da terceirização. Eles tiveram a terceirização como causa
principal. Isso ocorre muito nas fazendas, em que o fazendeiro contrata o
gato, que alicia os trabalhadores. Quando a gente aciona essas
empresas, elas dizem: quem contratou foi o gato, não fui eu. Ele
terceirizou a contratação. Da mesma forma com essas grandes marcas, que
fazem uma cadeia produtiva quase infinita para a produção das suas
roupas. Elas estão, na verdade, terceirizando. A terceirização hoje é condição sine qua non para o trabalho escravo. A liberalização para a terceirização impede a responsabilização da empresa que se aproveita daquele trabalhador.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/566392-trabalho-escravo-ha-fazendas-com-hospitais-para-o-gado-mas-o-trabalhador-nao-tem-nem-agua-tratada
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