Há uma ideia corrente segundo a qual o cristianismo cultivaria
ilusões quanto à vida e disseminaria uma visão enganadora sobre o
caminho da alegria ou felicidade, com o objetivo de manter os mais
pobres sob controle, auxiliando o sistema de dominação a manter-se
incólume. O ensinamento original de Jesus, o assentamento bíblico da
religião e a tradição das primeiras comunidades cristãs desautorizam tal
interpretação.
No entanto, muitas concepções e ações da Igreja institucional ao
longo dos séculos, hoje representadas pelos segmentos conservadores do
cristianismo, operaram e operam exatamente no sentido da crítica. Boa
parte da hierarquia católica e de outras confissões cristãs aliou-se ao
longo do tempo e alia-se hoje aos poderosos de plantão; tais segmentos
buscam conferir legitimidade à dominação e exploração e assegurar aos
ricos o conformismo dos pobres em relação ao status quo,
admitindo no máximo a busca de soluções individualistas (a teologia da
prosperidade). A religião transforma-se então num verdadeiro salve-se quem puder.
A liturgia da Palavra que será proclamada nas missas da noite de
Natal em quase todo o planeta neste 24 de dezembro de 2016 afirma uma
visão profundamente realista do cristianismo sobre a vida e assegura que
seu projeto de esperança está imerso numa relação amorosa-compassiva com cada ser humano e toda a humanidade.
Duas leituras constituem o centro da liturgia natalina.
A primeira, tomada de Isaías (Is 9,1-6), anuncia um novo tempo para o
povo judeu, com a chegada do Messias. O texto é todo costurado com base
na contraposição entre o tempo de opressão e a possibilidade de uma
nova época de libertação: “O povo que andava nas trevas viu uma grande
luz” (v.1); neste novo tempo, “o jugo que pesava sobre eles, o bastão
posto sobre seus ombros, a vara do opressor, tu os despedaçaste como no
dia de Madiã” (v.3); e então o “menino que nos nasceu” (v.5) irá
assegurar “o estabelecimento de uma paz sem fim” (v.6), numa era apoiada
“sobre o direito e a justiça” (v.6).
A alegria do novo tempo anunciada por Isaías está permeada por uma
visão histórica dos anos de sofrimento do povo, com raízes de exploração
e opressão muito concretas.
A leitura culminante da noite de Natal dialoga com o trecho de
Isaías. É o relato, no Evangelho de Lucas (Lc 2,1-14) do nascimento do
Menino anunciado pelo profeta. Relata o nascimento de um bebê nascido em
pobreza e enorme fragilidade, pois sua mãe “deu à luz seu filho
primogênito, envolveu-o com faixas e reclinou-o numa manjedoura, porque
não havia um lugar para eles na sala” (v.7) –a manjedoura é o tabuleiro
onde come o gado nos estábulos. O paralelismo com Isaías é evidente
(v.8): na escuridão da noite (como em Isaías), um grupo de pastores (o
povo) foi envolvido de luz (viu uma grande luz) e apareceu-lhe um anjo:
“Eis que vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo”
(v.9).
Tanto em Isaías como em Lucas relata-se uma alegria nascida em meio a
condições terríveis de opressão e sofrimento e revelada não aos ricos e
poderosos, mas aos mais pobres –os pastores estavam à margem da vida
social judaica de então, eram gente menosprezada e suspeita.
Trevas e luz, opressão e libertação, sofrimento e alegria –estes são
os duplos que marcam o profetismo bíblico e sua culminância, a chegada
do Esperado.
Neste Natal de 2016 estes polos estão em enorme evidência. No Brasil,
a noite natalina está cercada por uma sucessão de agressões dos ricos e
poderosos contra os pobres, usurpando seus direitos; tomaram de assalto
o poder de Estado e colocaram-no a serviço de seus interesses,
esmagando as pessoas comuns sem piedade. No mundo, respirou-se um ano
opressivo, de controles autoritários estendidos de maneira sem
precedentes, com o peso do capitalismo neoliberal descarregado sobre os
ombros de milhões e milhões de pessoas, especialmente os refugiados; uma
onda de ódio aos pobres e proclamação da avareza como valor supremo
varreu e varre o planeta.
Por isso, o teólogo brasileiro Leonardo Boff escreveu num breve artigo que este é um “Natal em tempos de Herodes”
numa referência ao relato no Evangelho de Mateus (Mt 2,16-18) do
massacre dos bebês em Belém ordenado pelo rei Herodes, que se segue ao
nascimento de Jesus.
A alegria pelo nascimento do Bebê, neste Natal de 2016, está cercada
por sofrimento, dor e perseguição aos pobres, como estava quando do
nascimento de Jesus.
Respiramos um tempo que em tudo lembra o ambiente quase irrespirável
da ascensão do nazismo na Alemanha dos anos 1930. Talvez a melhor
referência para este Natal seja a conferência de Edith Stein que ela
pronunciou em três noites na Associação de Acadêmicos Católicos de
Ludwigshafen, na Renânia-Palatinado, na Alemanha, em 1933, exatamente o
ano em que Hitler tornou-se chanceler.
Edith Stein foi a segunda mulher a defender uma tese de doutorado em
Filosofia na Alemanha, foi discípula e tornou-se professora
universitária e assistente de Edmund Husserl, o fundador da
fenomenologia. Judia, converteu-se ao cristianismo nos anos 20 e, em
1934 tornou-se monja carmelita, com o nome de Teresa Benedita da Cruz.
Arrancada pelos nazistas do mosteiro carmelita de Echt (Holanda), foi
assassinada aos 51 anos, em 1942, na câmara de gás no campo de
concentração de Auschwitz-Birkenau –em 1988 foi canonizada.
Na conferência que proferiu em 1933, “O Mistério do Natal”, Edith
Stein captou este clima e o ambiente que marca o contexto histórico do
nascimento do Jesus e que em alguns momentos, como na Alemanha de 1933 e
no Brasil e no mundo de hoje, aparece novamente pintado em cores
fortíssimas.
No início de sua conferência, ela conduziu seus ouvintes a um
ambiente idílico, terno, que remete imediatamente ao imaginário do Natal
no hemisfério norte: “Quando os dias ficam cada vez mais curtos quando
caem os primeiros flocos de neve (normal, no inverno alemão), então
surgem suavemente os primeiros pensamentos natalinos.”
A cena foi rapidamente truncada por Stein para a apresentação de uma
visão realista do Natal, especialmente nos tempos de cólera de Herodes,
de Hitler, de Temer e Trump e outros:
“Cada um de nós talvez já tenha experimentado tal felicidade natalina. Mas, até aqui, o céu e a terra não se uniram. Também hoje a estrela de Belém é uma estrela na noite escura. Já no segundo dia, a Igreja tira as vestes festivas e se reveste com a cor do sangue e, no quarto dia, de cores enlutadas.
Estêvão, o protomártir, aquele que primeiro seguiu o Senhor para a morte, e os santos inocentes, as criancinhas de Belém de Judá, mortas cruelmente por mãos de algozes, estão ao redor da Criança no presépio. O que isto quer dizer? Onde está o júbilo das potências celestes? Onde está a tranquila bem-aventurança da noite santa? Onde está a paz na terra? ‘Paz na terra aos homens de boa vontade’.
Mas nem todos têm boa vontade. Por isso, o Filho do Pai Eterno nasceu da glória celeste, pois o mistério do mal encobriu a terra com a escuridão.” [se quiser, leia toda a conferência aqui]
Edith Stein referia-se às leituras que se seguem ao nascimento de
Jesus nas missas, em todos os anos litúrgicos católicos: em 26 de
dezembro, a prisão e assassinato de Estevão, o primeiro mártir cristão,
que abriu uma onda de perseguição aos seguidores de Jesus (nos capítulos
6 e 7 do livro dos Atos dos Apóstolos); e o assassinato dos bebês em
Belém, mencionado no artigo Boff, Evangelho do dia 28 de dezembro.
Pastores, empregadas domésticas, serventes, operários, pedreiros,
ambulantes, desempregados e desempregadas, sem terra e sem teto,
trabalhadores e trabalhadoras em escritórios, camponeses, moradores e
moradoras das periferias, favelas e cortiços das grandes cidades e do
mundo, refugiados e refugiadas! Em meio a tanta fome, sofrimento,
perseguição, incerteza, na noite de Natal chega Aquele que fará o
caminho com seu povo, escutando e animando cada pessoa e toda a gente.
Ele vem, perto ou longe da Igreja ou das igrejas, das religiões
institucionalizadas e instrumentalizadas, distante do poder e da
riqueza: esperança e alegria no cotidiano da vida em permanente
peregrinação.
Por Mauro Lopes
Disponível em: http://outraspalavras.net/maurolopes/2016/12/23/2016-um-natal-cercado-por-sofrimento-dor-e-perseguicao-aos-pobres/
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