Com um giro original, honesto e corajoso, o ministro Luís Roberto
Barroso deu a resposta: aborto não pode ser crime, segundo a
Constituição Federal, pois viola direitos fundamentais das mulheres.
Manifestação pela legalização do aborto no último dia 8 de março no Rio de Janeiro
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, foi claro: criminalizar o aborto é uma violação dos direitos fundamentais das mulheres. Não foram poucos os direitos listados por ele: saúde, integridade, igualdade e segurança.
Ao proibir uma mulher de decidir sobre o aborto, o Estado brasileiro
viola de maneira cruel os direitos de grupos mais vulneráveis de
mulheres: as negras e indígenas, as pobres ou nordestinas.
Barroso qualificou esse efeito perverso da lei criminal como
discriminação às mulheres pobres, para quem o aborto clandestino é
prática de muito risco e sofrimento.
A decisão, tomada na terça-feira (29/11),
foi inesperada por uma razão simples. O caso não era de uma mulher
concreta reclamando o direito ao aborto ou a não ser presa por tê-lo
realizado; ou uma ação constitucional, como será a do dia 7 de dezembro
sobre as consequências da epidemia do vírus zika entre meninas e
mulheres no Brasil.
Em 2014, o ministro Marco Aurélio Mello recebeu uma ação penal contra
cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica de aborto em Duque de
Caxias, no Rio de Janeiro. A discussão era se cabia ou não prisão
preventiva para os acusados de realizar aborto ilegalmente.
A resposta de Marco Aurélio foi uma liminar contrária à prisão
preventiva: não havia risco à ordem pública ou à investigação. Barroso
pediu vistas ao caso e fez um retorno argumentativo original.
Além de seguir o voto de Marco Aurélio, Barroso avançou na discussão
que importa à Suprema Corte: enfrentou o que estava escondido por trás
de uma clínica clandestina de aborto em zonas pobres do Rio de Janeiro.
Aquele não poderia ser apenas um caso de habeas corpus sobre prender ou
não preventivamente pessoas acusadas de um crime. A pergunta correta
seria outra: por que haveria crime neste caso?
Com um giro original, honesto e corajoso, Barroso deu a resposta:
aborto não pode ser crime, segundo a Constituição Federal, pois viola
direitos fundamentais das mulheres. Ou seja, além de não caber prisão
preventiva aos acusados, o aborto deveria ser descriminalizado nas 12
primeiras semanas de gestação.
Para o voto, Barroso usou dados epidemiológicos e legislações de outros
países. O aborto é legalizado ou descriminalizado em grande parte
dos países democráticos, entendidos lá como um direito à intimidade e
uma proteção à saúde.
Se realizado em condições seguras, não há risco na interrupção de uma
gestação. Se há impacto à saúde das mulheres pelo aborto, os riscos
estão na ilegalidade e clandestinidade da prática. É o cenário de crime
que adoece as mulheres: elas temem ser presas, se arriscam com métodos
que desconhecem a segurança, silenciam sobre suas histórias.
Para se ter uma ideia da magnitude do aborto no Brasil, uma em cada
cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto. São milhões de
mulheres que, em algum momento da vida, experimentaram a angústia de
atravessar a fronteira da legalidade.
Barroso falou delas ontem. Não havia uma mulher para lhe oferecer o
rosto e a biografia, mas todas nós, mulheres comuns, conhecemos
histórias de muitas mulheres que fizeram aborto.
Elas usaram medicamentos, chás ou ervas, algumas se arriscaram em
clínicas como a de Duque de Caxias. Algumas morreram e é nosso dever
contar suas histórias como histórias de graves violações do Estado
brasileiro contra as mulheres. Elas morreram em situação de intenso
sofrimento, comparável às práticas de tortura.
Infelizmente, a resposta madrugadeira da Câmara dos Deputados foi alegar ímpeto legislativo na Suprema Corte e mover-se para propostas de maior criminalização.
Não houve nada de ativismo judicial no voto de Barroso: aborto é uma
questão constitucional e é dever da corte enfrentá-la à luz dos direitos
fundamentais.
*Debora Diniz é pesquisadora na Anis - Instituto de Bioética e
integrante da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças
Correlatas, do Ministério da Saúde. É autora de 'Zika - Do Sertão
Nordestino à Ameaça Global' (Civilização Brasileira). Artigo publicado
originalmente no site da revista Carta Capital.
Disponível em: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/45836/decisao+do+stf+encara+a+realidade+sobre+o+aborto+no+brasil.shtml
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