Por Meghie Rodrigues e Patrícia Spinelli(*), especial para o blog
A
ciência ocidental como a conhecemos é vista – e não raramente, age –
como um rolo compressor de culturas e saberes que escapam do crivo de
seu método científico. Mas nem sempre isso foi (e muito menos precisa)
ser assim.
A astronomia, por exemplo, serviu (e muito) como
ferramenta para marcação do tempo desde que nos entendemos como
coletividade. Ela também é pano de fundo para histórias sobre a criação
do mundo. E, em culturas como a dos Suruí em Rondônia, também carrega
preceitos morais e culturais aos mais novos.
O céu observado por
Galileu e Edwin Hubble ontem é o mesmo que o visto por tikunas,
ashaninkas e kaxinawás de hoje. No entanto, contam histórias diferentes:
Galileu viu luas em Júpiter em um universo em constante movimento.
Universo
muito mais agitado que a ideia de Aristóteles, dominante até então, de
que para além da Lua tudo era perfeito e sem rugas nem colisões. As
crateras lunares que o italiano descreveu em seu “Mensageiro das
Estrelas” eram uma prova de que existia um mundo novo em convulsão muito
acima das nossas cabeças.
Para os tupi-guarani, estas crateras
são um lembrete de que o incesto deve ser evitado. Vistos daqui de
baixo, os vales e montanhas da Lua parecem manchas – que são, em um dos
mitos fundadores guarani, marcas de resina que Sol deixou sobre o rosto
do seu irmão, Lua, para descobrir quem a violentava enquanto dormia.
Todas
as noites, Sol era violentada por alguém que entrava em seu quarto sem
fazer barulho. Numa ocasião, resolveu descobrir quem era. Sujou suas
mãos de urucum e esperou o violador aparecer. Quando apareceu, Sol
passou as mãos sujas na face dele para que pudesse reconhecê-lo à luz do
dia. Como a mancha de urucum não saía, o rosto de Lua, irmão de Sol,
ficou manchado – e as manchas estão lá até hoje.
Além de sua
beleza, mitos como este guardam uma memória histórica, cultural,
política e estética que vem se perdendo sob uma estrutura social e
educacional homegeneizante.
Escolas indígenas, ao terem que seguir
o mesmo programa das escolas regulares e se basear nos parâmetros
curriculares nacionais, frequentemente geram conflitos de
auto-reconhecimento por parte de crianças e jovens de povos
tradicionais. Ainda é difícil mensurar os efeitos que esse
não-reconhecimento tem sobre culturas indígenas diversas, mas muitos
pesquisadores da área de educação, antropologia e linguística vêm
tentando entender como essa relação se dá.
Será que o sufocamento
das culturas por parte do conhecimento ocidental é um caminho sem volta?
Talvez não precise ser – e há gente trabalhando nisso. Em uma visita
que fizemos aos Suruí, em 2014, a observação noturna do céu se
transformou numa aula para nós, astrônomos profissionais que estávamos
lá. Quem apontou o laser verde para o céu foi o líder da comunidade
Suruí, enquanto pudemos aprender sobre os diversos significados que os
astros têm para eles.
Nosso grupo se dedica à divulgação de
astronomia para crianças e jovens fora dos grandes centros urbanos.
Formado por astrônomos, educadores e comunicadores das Américas e da
Europa, ele vem desenvolvendo atividades que se utilizam da astronomia
para promover troca de conhecimento e experiência.
No mapa de
locais visitados estão Sena Madureira e Cruzeiro do Sul, no Acre,
Cobija, na Bolívia, e Kampala e Mbale, em Uganda – além de comunidades
na Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Índia e Peru. Em novembro, o
GalileoMobile irá visitar a cidade de Cacoal e arredores para promover a
astronomia em escolas regulares e indígenas do povo Paiter Suruí.
A
expectativa é promover atividades nas escolas que levem em conta as
diferentes características das comunidades, sempre em diálogo com os
saberes tradicionais. E fomentar a discussão, sobretudo com os anciãos
do povo, para que o grupo e os mais jovens possam aprender a astronomia
como como é repassada na tradição local.
Saiba mais sobre o GalileoMobile, clique aqui.
(*)
Meghie Rodrigues é jornalista que cobre a área da ciência e integrante
do grupo de pesquisa do Observatório do Amanhã; Patrícia Spinelli é
pesquisadora em astronomia e educação não formal do Museu de Astronomia e
Ciências Afins. Ambas integramos a equipe do GalileoMob.
Diponivel em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/09/quando-o-ceu-e-usado-para-a-reafirmacao-cultural-dos-povos-indigenas/
Nenhum comentário:
Postar um comentário