Professor do Boston College defende mudanças institucionais contra a
corrupção, para dar eficiência ao Estado e reduzir as ilegalidades do
mercado.
Ato contra a corrupção em julho, no Rio de Janeiro: diagnóstico errado cria distrações no debate sobre o problema
De Cambridge
A corrupção no Brasil é fruto de uma relação imatura e parada no
tempo entre o Estado e o mercado capitalista e só uma reforma das
instituições será capaz de alterar essa realidade. Esse é o diagnóstico
de Paulo Barrozo, premiado ex-docente em Harvard e atualmente parecerista e professor na Boston College Law School. Em entrevista a CartaCapital,
Barrozo, especialista no funcionamento de instituições, defende
mudanças profundas e rápidas na relação Estado-mercado, para quebrar um
círculo vicioso.
De acordo com Barrozo, temos um mercado que "socorre-se
dentro e fora da lei" ao Estado para aumentar lucros e fugir de riscos,
e um Estado ineficiente, incapaz de construir o futuro. Neste cenário,
diz ele, casos de corrupção continuarão a se repetir, e o
desenvolvimento ficará para trás. "Estado e mercado são incapazes de deixar um ao outro atravessar a rua sozinho", diz Barrozo. "Sem
melhoria institucional, o País estará condenado a conviver com uma
perpétua troca de personagens numa trama que continua a mesma".
CartaCapital: No clima de polarização política do Brasil,
os lados procuram encontrar "o" culpado pela corrupção. A esquerda diz
que é o mercado. A direita diz que é o Estado. Faz sentido essa
discussão?
Paulo Barrozo: Posto nestes termos o debate é uma
distração. Foco nos atores da corrupção é necessário porém insuficiente
para compreender e inibir o problema. Seria um grande avanço abandonar a
prática de super-personalizar malefícios e curas. Pensa-se assim: o mal
que aflige o País é produto de fulano; e o antídoto para o mal será o
salvador beltrano. Indivíduos são responsáveis por suas ações, ponto.
Entretanto é erro grave distrair-nos de compreender os elementos
estruturais que possibilitam, favorecem ou compelem certas condutas.
Para pensar bem o Brasil é preciso abandonar o “paradigma das
novelas”, no qual personagens possuem exagerado poder sobre a trama, e
adotar o “paradigma institucional”, onde a ênfase recai sobre as
instituições.
CC: Como esse paradigma institucional se aplica ao contexto atual de corrupção?
PB: O cerne do problema é institucional, e foco nele
é o mais importante para o futuro. Instituições são importantes porque
elas canalizam condutas, criando padrões de longo prazo.
Corrupção nos níveis e formas encontradas no Brasil do século XXI é
um roteiro, um “script”, onde atores desempenham papéis demarcados por
instituições mal desenhadas ou arcaicas.
As instituições escrevem o roteiro. Sem melhoria institucional, o
País estará condenado a conviver com uma perpétua troca de personagens
numa trama que continua a mesma.
CC: Qual então é o cerne institucional do problema?
PB: O modo como o Estado brasileiro institucionalizou seu mercado e os canais conectando Estado-mercado.
Em linhas resumidas, o problema é o seguinte: a despeito da retórica
dos agentes de mercado de “aceito risco e competição, crio riqueza e
assim mereço o lucro que faço”, o mercado no Brasil socorre-se dentro e
fora da lei ao Estado para diminuir ou compensar os riscos e incertezas
da competição econômica e para aumentar lucro para além do que o mercado
acomodaria.
Ao mesmo tempo, e a despeito da retórica de “imparcialidade,
impessoalidade, legalidade e promoção do bem-comum”, o Estado brasileiro
ficou parado na fase autoritária de seu desenvolvimento: rabugento,
repleto de certezas não problematizadas e ineficiente em construir
futuro. Estado e mercado são incapazes de deixar um ao outro atravessar a
rua sozinho.
Esta relação imatura Estado-mercado é institucionalizada de
ponta-a-ponta. Instituições têm o poder de perpetuar problemas, mas
também o de repará-los. Basta reimaginá-las bem.
CC: A corrupção é então um mal principalmente institucional? Não há fatores culturais envolvidos?
PB: Com certeza. Mas é preciso acertar nos detalhes do diagnóstico institucional antes de prescrever a cura.
Algo mal compreendido é que os mercados de hoje são uma criação do
Estado moderno. Repito: o mercado é uma política pública, e das mais
importantes e bem-sucedidas, do Estado moderno.
Nenhum dos principais elementos do mercado, incluindo a psicologia de
seus agentes, escapa de ser uma criação direta ou indireta do Estado,
que continua a mantê-los. Como criação do Estado, o mercado só é tão bom
quanto seu criador. Parado no tempo em seu desenvolvimento, o Estado
brasileiro cria e mantém um mercado de faz-de-contas. Um mercado onde
verdadeiro risco e competição são a exceção e não a regra; onde limites
mercadológicos ao lucro são ultrapassados com a ajuda do Estado.
Nisso entram fatores culturais, porém tais fatores ganham maior
relevância na medida em que influenciam instituições do Estado e do
mercado.
CC: Quais então seriam suas sugestões de mudança
cultural e de reimaginação institucional para reduzir a corrupção no
Brasil? Há bons modelos estrangeiros?
PB: Não há tempo a perder e não seria sábio esperar
até que soluções de mais longo prazo frutifiquem. Urgente neste momento é
olhar para os recursos transformadores que o País já possui no aqui e
agora. E a partir desses recursos reimaginar o futuro do Estado e de seu
mercado na experiência democrática brasileira. Há modelos estrangeiros,
e seria tolo não lançar mão de qualquer boa ideia ou lição de fracasso
de outros países. Mas isso só faria sentido e seria eficaz no contexto
de uma ousadia nacional.
CC: Como assim “ousadia nacional”?
PB: Países são um pouco como indivíduos em um
aspecto. Indivíduos devem perguntar-se: “o que trago como contribuição
para a mesa de minha família e comunidade?” O mesmo para países, que
devem preocupar-se com o que contribuem para a mesa da humanidade. A
grande questão existencial para o Brasil é: o que faltaria na história
da humanidade se faltasse o Brasil?
Vejo no DNA da cultura e de algumas instituições brasileiras três
elementos que se cultivados e combinados ofereceriam uma notável e única
contribuição do Brasil para a humanidade. O primeiro elemento é uma
flexibilidade criativa diante de obstáculos e oportunidades.
O segundo é a capacidade de compreender a falibilidade humana e dar
novas chances às pessoas que cometem equívocos. O terceiro é um apetite
pelo futuro, que faz deste mais importante do que tradições e história.
Esses elementos existem em diferentes graus em outros países, mas não na
intensidade e sinergia que no Brasil poderiam vir a ter.
O problema é que no Brasil estes elementos culturais apresentam-se em
sua versão degenerada. Flexibilidade criativa degenera no “jeitinho”,
que vira uma desculpa para não fazer as coisas bem feitas e no tempo
certo. Compreensão da falibilidade humana degenera em super punibilidade
dos pobres e impunidade sobretudo das classes média e alta.
Apetite pelo futuro degenera em ignorância histórica combinada com
desejos para o futuro que caminham desacompanhados de disciplina e
afinco realizadores. Desejos que não viram projetos
O Brasil vai superar as formas degeneradas de seu software cultural.
Quando isso acontecer, brasileiros oferecerão ao mundo um exemplo de
cultura onde flexibilidade criativa, aceitação da falibilidade humana e
apetite pelo futuro unem-se para criar uma sociedade gentil, inclusiva,
calorosa, responsável, criativa e destemida frente ao futuro. Seria
impossível que a corrupção como encontrada no Brasil hoje sobrevivesse
num ambiente assim.
CC: E o aspecto institucional?
PB: Começo com o presente para em seguida oferecer sugestões de caminho para o futuro.
O arcabouço institucional do Brasil e do mundo é fruto da imaginação
institucional do século XVIII, com adendos sobretudo do século XX.
Do século XVIII herdamos a receita para institucionalizar a
República, o Estado de direito, a tripartição do poder do Estado em
Legislativo, Executivo e Judiciário, e um elenco de direitos
individuais. Esta herança institucional foi suficiente para criar os
mercados do século XIX. As crises econômicas, políticas e militares do
século XIX no entanto levaram a experimentos institucionais que
culminaram apenas no século XX.
Duas das principais inovações institucionais do século XX foram,
primeiro, o aperfeiçoamento do gerenciamento do mercado com a criação de
agências reguladoras com expertise especifica sobre os diferentes
setores da economia nacional. Segundo, a expansão do elenco de direitos
individuais com o acréscimo dos direitos políticos e sociais, culminando
na participação eleitoral universal e no Estado de bem-estar social.
O legado institucional dos séculos XVIII e XX precisa de uma nova
injeção de criatividade institucional. O mundo correu, e o arcabouço
institucional ficou para trás.
Não seria extraordinário se logo agora quando o mundo mais precisa, o
Brasil pudesse dar o exemplo de como repensar as instituições? Quem
melhor do que o Brasil para reimaginar a democracia no século XXI,
tornando-a mais compatível com a flexibilidade criativa, a aceitação da
falibilidade humana e um futurismo que toma para si a responsabilidade
pelo futuro da humanidade e do planeta?
CC: Por onde começar?
PB: Que tal o esboço de cinco ideias iniciais sobre a relação Estado-mercado?
Primeiro. Modificar leis de contratos, propriedade, tributos,
antitruste, governança corporativa e trabalho para dar vantagem no
mercado àqueles agentes econômicos que mais e melhor inserissem em suas
atividades uma flexibilidade criativa apta a gerar crescimento
sustentável em conexão com a economia global e com máxima inclusão.
Segundo. Modificar leis penais, de falências e concordatas, de
responsabilidade civil e da gestão pública para reprimir apenas a má fé
de agentes públicos e privados, e não uma responsável flexibilidade
criativa na busca e realização de objetivos legítimos.
Terceiro. Modificar leis de imigração e naturalização para oferecer
residência, amparo econômico por dois anos e em seguida naturalização a
qualquer estrangeiro que concluir doutorado em uma das universidades
brasileiras com avaliação excelente da Capes ou em uma das 100
universidades estrangeiras selecionadas pela excelência e ambição de
seus programas. É tempo do Brasil agressivamente recrutar, ao invés de
exportar talentos.
Quarto. Transformar a relação do BNDES com o mercado. Como regra, o
banco financiaria apenas infraestrutura básica e de ponta para a qual o
mercado não tenha apetite ou visão de longo-prazo para financiar, e
inovadores empreendedores, incluindo micro e médios, que não tenham
acesso a financiamento no próprio mercado.
Quinto. Transformar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. O
SBDC é reativo, sobremaneira preocupado com fiscalização e repressão de
infrações e abusos. Importante, porém nem de perto suficiente. É
necessário criar um mandato proativo audaz de conduzir o processo de
maturação do capitalismo no Brasil. De SBDC para SBDM – Sistema
Brasileiro de Desenvolvimento dos Mercados. O Estado brasileiro tem sido
um mal criador do mercado capitalista. É passada a hora de mudar.
O Brasil merece um Estado inteligente e justo, e um mercado de
verdade, com riscos, incertezas e lucros batalhados para substituir o
mercado de faz de conta do presente. Melhorias institucionais são o
caminho.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/economia/o-estado-brasileiro-tem-sido-um-mal-criador-do-mercado-capitalista?utm_content=buffer51824&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer
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