O Brasil teve um presidente protestante na figura do
presbiteriano Café Filho, que assumiu o país por pouco mais de um ano
após o suicídio de Getúlio Vargas, não tendo sido eleito para a função.
Mas como o país adora um presidente que governa sem ter sido eleito para
isso, tá valendo. O ditador militar Ernesto Geisel era luterano, mas
também não foi eleito pelo voto popular. E até agora, o Brasil não teve
alguém na Presidência que se afirmasse como evangélico neopentecostal,
com suas liturgias da prosperidade e da cura.
Na minha opinião,
isso é questão de tempo, haja vista o crescimento de denominações como a
Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de
Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, Igreja
Apostólica Fonte da Vida, Ministério Internacional da Restauração, Sara
Nossa Terra, entre outras. E é natural que seja assim. O que não é
natural é que isso venha junto com perdas para a dignidade de outros
grupos sociais.
O discurso violento de uma parte dos membros de
algumas denominações, principalmente contra outras religiões e a
população LGBT é incompatível, contudo, com as atribuições
constitucionais de um administrador público. Em tese, a tendência é de
que, para se tornarem viáveis eleitoralmente para cargos executivos,
pessoas que ostentam esse discurso violento abandonem posições mais
radicais em busca do voto.
Ou peçam perdão por terem escrito e defendido algo em um passado muito recente.
No
Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Universal e
sobrinho de Edir Macedo, segue à frente nas pesquisas eleitorais para
prefeito do Rio de Janeiro, em disputa com Marcelo Freixo. Reportagem de Fernando Molica, no jornal O Globo,
mostrou trechos de um livro escrito por ele – e publicado em 2002 no
Brasil, quando foi eleito senador – no qual desfere uma série de
preconceitos contra outras religiões e contra minorias, tendo como
referência o período em que viveu na África para ajudar a implantar a
igreja de seu tio.
Ele escreveu que a Igreja Católica e outras
religiões cristãs ''pregam doutrinas demoníacas'' e ''tem pregado para
seus inocentes seguidores a adoração aos ídolos e a veneração a Maria
como sendo uma deusa protetora''. E que igrejas de matrizes africanas,
abrigam ''espíritos imundos'' e que praticam o sacrifício de crianças.
Disse também que o trabalho de sacerdotes de religiões africanas ''é
motivado pelo maldito amor ao dinheiro''.
Segundo a reportagem, no
livro, Crivella diz que demônios são responsáveis por vícios e pela
homossexualidade. O senador diz que gays não devem ser tratados com
menosprezo ou discriminação, mas ressalva que “milhões são vítimas desse
terrível mal, vivendo sem paz e numa condição lamentável para o ser
humano.” E traz alertas: “O pai viciado e adúltero provavelmente passará
o mesmo espírito para o seu filho”. Para ele, isso explica o fato de
“um pai de respeito” passar, de repente, a ser homossexual. “E quando
ele morre, o espírito se manifesta no seu filho que prontamente
negligencia sua esposa e seus filhos para prosseguir nessa conduta
maligna.” Entre outras muitas coisas.
Ele pediu perdão após a publicação da reportagem, dizendo que vivia na ''imaturidade da fé''. O que mostra que a chance de uma eleição pode converter alguém.
O
número de católicos tem caído (de 63%, em 2010, para 57%, em 2014,
segundo o Datafolha) e o de evangélicos não apenas cresce em número (de
24% para 28%), mas também em presença na política partidária. Durante os
últimos anos, um naco conservador dos congressistas religiosos formou
uma espécie de bancada fundamentalista, bloqueando projetos de leis que
efetivam direitos relacionados à saúde da mulher, educação e questões de
gênero – sem contar as tentativa de retrocesso nos direitos já
vigentes.
Vale lembrar, porém, que, se por um lado, há
parlamentares evangélicos que vociferam contra a dignidade humana, há
outros que atuam na defesa dos direitos das minorias, mesmo nos casos em
que há conflito com interpretações hegemônicas de sua própria religião,
da mesma forma que ocorre com muitos católicos. Um pessoal cujas bases
teológicas estão muito mais próximas ideologicamente de mim – que creio
no Palmeiras e no combate à justiça social – do que das bases de muita
gente de sua própria igreja.
É importante fazer essa ressalva
neste momento de polarização extrema e débil, em que pessoas são
julgadas politicamente por sua fé. Até porque, no fundo, mesmo aqueles
que não se dizem religiosos, uma vez chegando ao poder, atendem às
demandas de grupos religiosos ultraconservadores com vistas à chamada
governabilidade.
Por exemplo, o combate à homofobia através da
educação não avançou quase nada nos últimos anos – por conta da pressão
de deputados da bancada fundamentalista e por esse cálculo
político. Publicamente, FHC e Dilma foram, no máximo, agnósticos
não-praticantes. Mas ajoelharam e disseram amém. E o agnóstico Getúlio
Vargas, que tomou o poder através de um golpe, instituiu ensino
religioso nas escolas públicas, em 1931, em nome da governabilidade.
Particularmente,
ficarei chocado no momento em que o Brasil eleger um presidente
declaradamente ateu que não precise esconder isso de seu eleitor com
medo que o seu caráter seja, estupidamente, julgado por conta disso. O
fato é que o brasileiro aceita mais facilmente alguém que acredita em
Deus – mesmo com uma fé diferente da sua – do que alguém que não
acredita ou não tem certeza disso. E mesmo que, em nome dessa fé, cometa
grandes atrocidades.
No dia em que isso ocorrer, creio que
atingiremos a maturidade como democracia. Não porque ateus são melhores,
longe disso. Mas porque teremos compreendido que, se o governante zelar
pela dignidade e igualdade de direitos de todas as crenças, sua fé
pessoal é tão importante quanto o time de futebol pelo qual torce. A não
ser pelo Palmeiras, claro, pois isso é evidência de caráter.
O
problema nunca é a fé de alguém. Pode-se acreditar na onipotência de
Homer Simpson, na onipresença de Goku ou na onisciência de Pikachu e ser
um governante bom e justo.
Mas se essa fé é usada como
instrumento para causar dor e sofrimento, como caminho para reduzir a
dignidade de outra pessoa ou para limitar os direitos fundamentais de
outro grupo social, então essa fé é contrária aos princípios
constitucionais que um eleito para o cargo de prefeito, governador ou
presidente deve assumir. Pois ele não é um parlamentar que representa um
grupo, mas alguém que deve governar para todos e todas.
Se
houvesse um Deus ou Deusa, esse ser supremo sentiria uma vergonha
profunda da suruba entre política e religião que se vê por aqui e uma
tristeza de que isso não seja levado em conta na hora do voto. E
guardaria tudo para o Dia do Juízo Final.
Mas como não existe nada lá em cima, além da nossa criatividade, passou da hora de tomarmos as rédeas da nossa própria vida.
Sobre o autor
Leonardo Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos
direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova
York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É
diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas
para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/17/no-brasil-e-mais-facil-eleger-um-fundamentalista-religioso-do-que-um-ateu/
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