A defesa do massacre e a ideia de que "bandido bom é bandido morto" fomentam mais violência.
O desembargador Ivan Sartori argumentou que PMs agiram em legítima defesa, uma tese sem sustentação nos autos
Como recorrentemente afirmo em meus trabalhos acadêmicos,
acredito que a consolidação do conceito de pessoa, oriundo da
cristandade, tenha sido a maior evolução civilizatória da sociedade
ocidental. Afinal, é dele que deriva a ideia de igualdade, liberdade e
de direitos para todos os homens. No entanto, toda vez que o Estado
decide, arbitrariamente, sobre quem deve ou não viver, negando a quem
quer que seja a proteção jurídica e política inerentes à condição
humana, regredimos muitos passos nessa conquista.
A anulação das condenações dos 74 policiais militares que participaram do massacre do Carandiru, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, representa, com todo respeito que merece esse colegiado, uma dessas decisões típicas do retrocesso civilizatório que temos assistido na América Latina e no Brasil, em que a jurisdição serve como fonte de exceção, e não da aplicação do Direito.
Os argumentos apresentados pelos juízes responsáveis pela anulação da sentença são insustentáveis não só face ao direito penal e processual penal, mas também, e em especial, ao que determina a nossa Constituição.
Não sem motivos a morte de mais de uma centena de pessoas na Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, ficou conhecida como massacre do Carandiru. Houve ali, de fato, uma chacina produzida por agentes estatais, cujo resultado foi a morte de 111 prisioneiros, dos quais muitos privados de liberdade apenas cautelarmente. Ou seja, não tinham sequer sido julgados, tampouco exercido seu direito de defesa. E, acima de qualquer fato, todos estavam sob a guarda do Estado, que tinha a obrigação de proteger-lhes a vida.
A afirmação de que os policiais militares agiram em legítima defesa não é compatível com a prova dos autos. Além do fato de os presos estarem desarmados, ao contrário dos policiais, foram disparados em média cinco tiros por vítima, dos quais muitos à queima roupa, na cabeça e nas costas. Não houve confronto. Não há, portanto, como justificar a tese de que os policiais agiram no estrito cumprimento de seu dever legal e em legítima defesa. Houve, sim, evidente abuso de poder por parte do Estado e uma chacina executada de forma voluntária pela força policial.
Será votado ainda, em nova sessão, se o tribunal decidirá diretamente pela absolvição dos réus, ou se enviará o caso a novo julgamento, o que também está em total desacordo com a lei processual. O correto seria devolver a decisão para o júri. A Constituição determina que casos de crimes contra a vida sejam submetidos a júri popular, logo o tribunal não pode declarar inocência ou culpa neste caso.
Para além de ser uma decisão incompatível do ponto de vista da lei penal, processual e da Constituição, sob a ótica da Teoria do Estado, a anulação da condenação dos policiais envolvidos no massacre significa a corroboração e o fortalecimento da Polícia Militar como uma força de ocupação territorial e de repressão e controle da pobreza.
Trata-se de uma decisão que visa fortalecer a violência bruta, a soberania absoluta do Estado de exceção que, a título de combater o inimigo social, o suposto bandido, governa a vida nua, desprotegida, das pessoas que vivem nas periferias das grandes cidades do País, com poder de decisão de vida ou morte das pessoas que la habitam.
Nessas áreas dominadas pela pobreza, o paradigma da pólis, que é paradigma do Estado de direito, cede ao paradigma do campo de concentração, que é o paradigma do Estado de exceção, onde as pessoas estão sujeitas à força bruta do Estado, sem qualquer reconhecimento a sua condição humana.
O massacre do Carandiru é, possivelmente, o maior símbolo de um genocídio silencioso em curso no Brasil, um país onde se mata mais em um ano do que se matou em dez durante a Guerra do Golfo. Silencioso porque os mortos não têm identidade étnica, ideológica. No Carandiru, como nas periferias das metrópoles brasileiras, é a pobreza, essa categoria indiferenciada, que unifica as vítimas da violência do Estado.
Cabe lembrar que, como demonstra a história, ninguém ganha com tais excessos autoritários e que estes, ao invés de dissolver conflitos, promovem o caos social. Em São Paulo, por exemplo, a principal consequência da chacina do Carandiru foi a estruturação de uma rede organizada de criminalidade dentro e fora dos presídios: o PCC.
Ao contrário do que pensam os defensores da ignominiosa teoria do “bandido bom é bandido morto”, os efeitos desse tipo de repressão violenta do Estado contra uma suposta criminalidade não são positivos. A ideia de que esse tipo de conduta é capaz de estabelecer a ordem e a paz social é um dos maiores mitos ou ilusões fascistas da atualidade. A resposta social à truculência estatal é o acirramento dos conflitos e, consequentemente, mais violência.
A anulação das condenações dos 74 policiais militares que participaram do massacre do Carandiru, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, representa, com todo respeito que merece esse colegiado, uma dessas decisões típicas do retrocesso civilizatório que temos assistido na América Latina e no Brasil, em que a jurisdição serve como fonte de exceção, e não da aplicação do Direito.
Os argumentos apresentados pelos juízes responsáveis pela anulação da sentença são insustentáveis não só face ao direito penal e processual penal, mas também, e em especial, ao que determina a nossa Constituição.
Não sem motivos a morte de mais de uma centena de pessoas na Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, ficou conhecida como massacre do Carandiru. Houve ali, de fato, uma chacina produzida por agentes estatais, cujo resultado foi a morte de 111 prisioneiros, dos quais muitos privados de liberdade apenas cautelarmente. Ou seja, não tinham sequer sido julgados, tampouco exercido seu direito de defesa. E, acima de qualquer fato, todos estavam sob a guarda do Estado, que tinha a obrigação de proteger-lhes a vida.
A afirmação de que os policiais militares agiram em legítima defesa não é compatível com a prova dos autos. Além do fato de os presos estarem desarmados, ao contrário dos policiais, foram disparados em média cinco tiros por vítima, dos quais muitos à queima roupa, na cabeça e nas costas. Não houve confronto. Não há, portanto, como justificar a tese de que os policiais agiram no estrito cumprimento de seu dever legal e em legítima defesa. Houve, sim, evidente abuso de poder por parte do Estado e uma chacina executada de forma voluntária pela força policial.
Será votado ainda, em nova sessão, se o tribunal decidirá diretamente pela absolvição dos réus, ou se enviará o caso a novo julgamento, o que também está em total desacordo com a lei processual. O correto seria devolver a decisão para o júri. A Constituição determina que casos de crimes contra a vida sejam submetidos a júri popular, logo o tribunal não pode declarar inocência ou culpa neste caso.
Para além de ser uma decisão incompatível do ponto de vista da lei penal, processual e da Constituição, sob a ótica da Teoria do Estado, a anulação da condenação dos policiais envolvidos no massacre significa a corroboração e o fortalecimento da Polícia Militar como uma força de ocupação territorial e de repressão e controle da pobreza.
Trata-se de uma decisão que visa fortalecer a violência bruta, a soberania absoluta do Estado de exceção que, a título de combater o inimigo social, o suposto bandido, governa a vida nua, desprotegida, das pessoas que vivem nas periferias das grandes cidades do País, com poder de decisão de vida ou morte das pessoas que la habitam.
Nessas áreas dominadas pela pobreza, o paradigma da pólis, que é paradigma do Estado de direito, cede ao paradigma do campo de concentração, que é o paradigma do Estado de exceção, onde as pessoas estão sujeitas à força bruta do Estado, sem qualquer reconhecimento a sua condição humana.
O massacre do Carandiru é, possivelmente, o maior símbolo de um genocídio silencioso em curso no Brasil, um país onde se mata mais em um ano do que se matou em dez durante a Guerra do Golfo. Silencioso porque os mortos não têm identidade étnica, ideológica. No Carandiru, como nas periferias das metrópoles brasileiras, é a pobreza, essa categoria indiferenciada, que unifica as vítimas da violência do Estado.
Cabe lembrar que, como demonstra a história, ninguém ganha com tais excessos autoritários e que estes, ao invés de dissolver conflitos, promovem o caos social. Em São Paulo, por exemplo, a principal consequência da chacina do Carandiru foi a estruturação de uma rede organizada de criminalidade dentro e fora dos presídios: o PCC.
Ao contrário do que pensam os defensores da ignominiosa teoria do “bandido bom é bandido morto”, os efeitos desse tipo de repressão violenta do Estado contra uma suposta criminalidade não são positivos. A ideia de que esse tipo de conduta é capaz de estabelecer a ordem e a paz social é um dos maiores mitos ou ilusões fascistas da atualidade. A resposta social à truculência estatal é o acirramento dos conflitos e, consequentemente, mais violência.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/carandiru-e-a-ilusao-fascista-de-ordem-social
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