Publico aqui o prefácio generosamente escrito por Jean Wyllys para o meu livro Como Conversar Com Um Fascista (ed. Record.)
Alguns dizem que a história de um povo ou nação tem um movimento pendular; outros dizem que ela se move numa espiral, ora ascendente ora descendente (confesso que eu prefiro esta segunda alegoria). Qualquer que seja o movimento dessa história, ideias que estiveram encarnadas em pessoas e episódios que fizeram sofrer indivíduos e/ou coletivos costumam retornar como fantasmas ou assombrações desejando reencarnar. Este retorno exige a evocação de poderosos espectros que possam combater e espantar esses fantasmas, como emHamlet, de William Shakespeare.
A maioria da população brasileira está há décadas alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico e de reconhecimento da diversidade cultural e humana. A ampliação do acesso ao sistema formal de educação – incluindo aí o ensino superior –, sobretudo na era Lula, não significou acesso a uma educação de qualidade. Muitas “universidades” e faculdades, principalmente privadas, têm diplomado analfabetos funcionais* por estabelecerem com os alunos uma relação pautada no direito do consumidor. Mais de 70% dos brasileiros não leem livros. A maioria se informa apenas por tevês e rádios, que, pela própria dinâmica da comunicação de massa, não aprofundam as questões de interesse público e divulgam as informações de acordo com interesses políticos e financeiros de seus concessionários ou administradores. Ao mesmo tempo, e graças à inclusão via consumo de bens materiais garantida pelas políticas sociais da assim chamada “Era Lula”, parte expressiva e crescente dessa maioria plugou-se na internet – um dilúvio de informações falsas e verdadeiras nem sempre fáceis de distinguir para alguém sem repertório cultural ou habilidade em interpretar texto – e se organizou em redes sociais digitais por meio de novas tecnologias da comunicação e da informação, como os smartphones. Ora, isso só poderia levar esse contingente a aderir aos discursos demagógicos e manipuladores que interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõem soluções fáceis, mas mentirosas e/ou autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente, como a criminalidade e a violência urbanas, as desigualdades social e de gênero, as tensões raciais, a diversidade de orientação sexual e identidade de gênero, a intolerância religiosa, a mobilidade urbana, os conflitos agrários e os desastres ambientais. Essa situação acrescida da lógica egoísta – “farinha pouca, meu pirão primeiro” – que as crises econômicas e/ou financeiras como a que estamos vivendo costumam trazer são provas irrefutáveis do retorno e reencarnação de um fantasma perigoso chamado fascismo.
Diante desse mal, há que se evocar espectros que possam exorcizá-lo. A filosofia e as ciências humanas não podem, portanto, abrir mão da responsabilidade de evocarem a razão iluminista, o conhecimento científico, a honestidade intelectual, as liberdades civis e a democracia. É o que faz a filósofa Márcia Tiburi neste Como conversar com um fascista? –Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, num texto que impressiona pela combinação da profundidade e sofisticação intelectuais com uma enorme generosidade com o leitor que não compartilha de seu repertório cultural. Portanto, este livro é para o que nasce!
Preocupada com o fascismo que vem afetando a política brasileira nos últimos cinco anos e ciente de que este costuma prescrever a eliminação simbólica e/ou física dos “inimigos” que constrói como forma de se “justificar”, Márcia Tiburi propõe o diálogo como forma de resistência à banalização do mal a que assistimos atônitos, indiferentes ou indignados, ou para a qual damos nossa contribuição, seja em forma de postagens ou comentários no Facebook, seja em ações concretas contra o outro (como, por exemplo, chutar e insultar dois garotos negros rendidos pela polícia apenas porque envolvidos numa briga de colegiais que assustou frequentadores de um shopping de luxo).
A filósofa judia Hannah Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal” quando analisou o julgamento de Eichmann, um dos nazista levados ao tribunal. Com esta expressão, a filósofa se referia ao mal que não é enraizado (que não é “radical”, para usar a expressão de Kant) nem praticado como atitude deliberadamente maligna. A banalização do mal é feita pelo ser humano comum que não se responsabiliza pelo que faz de ruim ou acha que o que faz de ruim não tem consequências para os outros; não reflete, não pensa.
Arendt se referiu a Eichmann como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”; como um imbecil que não pensava; que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência – e que, por tudo isso, banalizava o mal que praticava. A banalidade do mal pode, portanto, ser feita por qualquer pessoa carente de pensamento crítico e, por isso, insensível à dor do outro e às consequências de seus atos.
O fascista é aquele que banaliza o mal. Para Márcia Tiburi, ele é burro na medida em que não acessa o campo do outro porque lhe falta conhecimento e imaginação para tal. A burrice é o cancelamento do processo de conhecimento e de imaginação. Nesse sentido – e para usar as palavras da própria filósofa – “o fascismo é a máscara mortuária do conhecimento”.
Outra aspecto desse mal apontado por Tiburi é o analfabetismo político. O dramaturgo Bertolt Brecht afirmou, num texto memorável, que “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Concordo com esta afirmação desde o momento em que a conheci, já consciente de que eu era um “animal político”, para citar a expressão de Aristóteles. Porém, porque os tempos eram outros (e, naqueles tempos, o dramaturgo alemão sequer sonhava com as transformações sociais, culturais e tecnológicas de que somos testemunhas, promotores e produtos), Brecht definia o analfabeto político como aquele que “não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos”; aquele que “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Dessa definição brechtiana do analfabeto político, a única característica que sobrevive aos dias atuais é o proclamado e contraditório ódio à política, analisado por Tiburi com acuidade e sem condescendências nas páginas seguintes.
“O que leva um indivíduo a reunir-se em um coletivo sem pensar com cuidado crítico nas causas e consequências dos seus atos configura aquilo que chamamos de analfabetismo político. Mas, no caso dos personagens jovens que surgem atualmente, líderes do fascistoide Movimento Brasil Livre, está em jogo a forma mais perversa de analfabetismo político. Aquele de quem foi manipulado desde cedo e não teve chance de pensar de modo autocrítico porque sua formação foi, no sentido político, ‘de-formação’, a interrupção da capacidade de pensar, de refletir e de discernir”, argumenta.
Mas, sem discordar de Tiburi e apenas dando minha modesta contribuição para a sua excelente e necessária reflexão, digo que, por causa das transformações sociais, culturais e tecnológicas que experimentamos, o “analfabeto político” dos dias atuais é bem diferente daquele dos tempos de Brecht. O analfabeto político da atualidade fala e participa dos acontecimentos político mesmo renunciando à tarefa de se informar melhor sobre eles ou partindo de preconceitos, boatos ou mentiras descaradas sobre tais acontecimentos.
O analfabeto político da contemporaneidade – ao contrário daquele dos tempos de Brecht – participa dos acontecimentos políticos “opinando” sobre eles nas redes sociais digitais sem qualquer cuidado crítico. Eu poderia recorrer a muitos exemplos do atual comportamento do “analfabeto político”, mas, para encurtar este prefácio, já que o que interessa é mesmo o texto de Márcia Tiburi, vou me restringir a uma das muitas estupidezes escritas em minha página no Facebook por ocasião da aprovação do Marco Civil da Internet: “O marco servil [sic] vai acaba [sic] com o facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filhodaputa [sic]”. Este comentário é um exemplo do analfabetismo político contemporâneo, mas é também o sintoma de uma ameaça à democracia e à vida com pensamento: a maioria dos “analfabetos políticos” que vociferaram nas redes sociais digitais, principalmente a maioria daqueles que fazem menção ao “comunismo” ou ao “socialismo”, deixaram claro quais as fontes de suas afirmações acerca do acontecimento em questão: os colunistas da revista marrom semanal; o senil reacionário que se diz “filósofo”; e a família de parlamentares (deputado federal, deputado estadual e vereador) que parasita o poder público para difamar adversários e estimular o fascismo. Nesse sentido e apesar da virulência e arrogância com que afirma sua ignorância, o “analfabeto político” é uma vítima daquele que Brecht considera “o pior de todos os bandidos”: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações.
Portanto, é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a educação de qualidade e às artes, em especial às artes vivas, com destaque para o teatro. É preciso insistir no diálogo com o fascista. Mas isso é possível? Como conversar com um fascista? Leia este livro e você terá as repostas.
* De acordo com pesquisa realizada pelos ministérios da Educação e da Cultura para a construção do Plano Nacional do Livro e da Leitura, 38% dos estudantes universitários brasileiros foram avaliados em 2011 apenas como alfabetizados funcionais (níveis rudimentar e básico); este número atingia 23% dos universitários em 2001. O número de universitários plenamente alfabetizados, por outro lado, declinou de 76% em 2001 para 62% em 2011. Certamente a ausência da competência plena de leitura prejudica o desempenho dos estudantes brasileiros em todas as áreas de conhecimento, indicando a necessidade clara da intensificação de medidas que priorizem o acesso à leitura plena em todos os níveis como uma das formas mais consistentes de apoiar a melhoria da qualidade da educação em nosso País.
Marcia Tiburi é filósofa
Marcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles “As Mulheres e a Filosofia” (Ed. Unisinos, 2002), Filosofia Cinza – a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004); “Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero” (EDUNISC, 2008), “Filosofia em Comum” (Ed. Record, 2008), “Filosofia Brincante” (Record, 2010), “Olho de Vidro” (Record 2011), “Filosofia Pop” (Ed. Bregantini, 2011) e Sociedade Fissurada (Record, 2013). Publicou também romances: Magnólia (2005), A Mulher de Costas (2006) e O Manto (2009), Era meu esse Rosto (Record, 2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho, Diálogo/dança, Diálogo/Fotografia e Diálogo/Cinema (ed. SENAC-SP).
É professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie e colunista da revista Cult.
Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/11/este-livro-e-para-o-que-nasce-por-jean-wyllys/
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