Donald Trump, pré-candidato repulicano à Presidência dos Estados Unidos, fala as aberrações que fala porque sabe que muita gente irá aplaudi-lo por isso. Em verdade, ocupou um espaço de porta-voz de um grupo grande de pessoas, dando espaço a setores insatisfeitos que se sentem excluídos e estão fora do radar captado pela mídia.
Sabe conversar com um público que foi educado sob um manual 1.0 das relações humanas e, de repente, se viu acuado diante do discurso de que muito do que lhes foi ensinado no que diz respeito aos seus direitos, deveres e limites estava errado. Acreditam que o mundo passou por uma revisão recentemente e, agora, ações comuns do seu cotidiano são consideradas preconceito e deveriam ser motivo de vergonha.
(A luta pela igualdade de direitos, é claro, é tão antiga quando a história da raça humana. Mas tem gente que defende que o estudo da História é inútil e contamina a alma. Na sequência, aparecem pessoas defendendo queimar livros em praça pública, no Brasil, como na Alemanha pré-segunda guerra. Vai entender…)
Ou seja, a visão de mundo sobre a qual eles fundamentaram sua vida agora, sob um novo paradigma, precisa ser revista para acomodar outros atores antes excluídos. Mas nem todos aceitam ou conseguem adotar o manual 2.0 facilmente.
O problema é que a sociedade civil e a mídia não foram competentes de trazer esse público para a arena de discussão e construir com eles o conhecimento de que a inclusão social e o respeito à diferença não são coisas que tolhem a liberdade mas, pelo contrário, reafirmam-na.
Ao mesmo tempo, Trumps da vida contam com recursos para se fazerem conhecidos e ventilarem suas ideias. Possuem o aparente frescor da novidade em suas figuras, outsiders do jogo político partidário tradicional, apesar do discurso que empunham defender a permanência do mundo de sempre.
Não precisam ganhar nada, a bem da verdade. São azarões e, portanto, franco-atiradores para fazerem o que for preciso para ganhar.
Como disse o blog norte-americano Politico, cobrir um candidato como Trump (ou alguma futura versão tupiniquim) deve ser algo divertido para a imprensa. Cada dia, uma loucura nova, demandando cobertura.
Mas como já tratei diversas vezes neste blog, parte da elite intelectual seja de esquerda, de centro e de direita, é vítima da arrogância de sua análise de conjuntura enviesada. Em quantas conversas nós, jornalistas, não rimos de Trump, acreditando que a sua campanha seria fogo de palha? Não raro, tratamos como piada ou folclore figuras que sabem muito bem o que fazer e que entendem como parcelas do eleitorado estão divididas, utilizando essa percepção a seu favor. Há alguns meses, vi subir a bandeira amarela com a percepção de que era para valer mesmo. Depois, os candidatos republicanos mais racionais foram perdendo força. É claro que os Estados Unidos não são um grande Tea Party, então há muita água para rolar – e muito cabelo para cair antes de ser decidido quem vai substituir Obama.
Por conta da extrema polarização, algumas figuras tornam-se importantes para um grupo significativo que os vê como “aliado'' diante de um “inimigo'' comum. Uma simplificação perigosa que tende a cobrar seu preço no futuro, quando constata-se – tarde demais – que a serpente que brotou do ovo morde a mão daquele que o chocou com carinho.
A democracia representativa é cheia de defeitos mas, com seus freios e contrapesos, ainda é melhor do que a tirania que pode ser imposta por pessoas que cheguem ao poder desprezando os direitos fundamentais. Porque a garantia do pacote mínimo de dignidade a minorias de direitos não deve ser feita com base em consultas de marqueteiros junto à opinião pública – que pode ser tão violenta quanto os piores ditadores e fundamentalistas religiosos.
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a polarização política e a violência contra as minorias segue bem, obrigado. Em ambos os países, a polícia mata mais negros do que brancos, as bolhas sociais físicas e digitais se multiplicam, garantindo que você não conviva com o terrível contraditório, a questão ambiental é preocupação da boca para fora dos governantes.
Enquanto isso, o conhecimento superficial, suficiente para uma conversa de bar, segue sendo o mais difundido. Se o debate público fosse mais qualificado, a pessoa se sentiria motivada a ler determinados textos até para não ser humilhada coletivamente no Facebook ou no Twitter ao expor argumentos ruins, preconceituosos e superficiais.
O que temos contudo, é que o discurso violento e opressor – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido. Em um debate qualificado quem usa esses argumentos toscos nem seria ouvido. Contudo, fazem sucesso na rede. Dão respostas fáceis e rápidas. Ajudam a eleger presidentes.
Cabe à mídia e a pessoas que fazem parte do debate público, a ajudar a qualificar o debate o melhor possível e não esperar para a iminência de uma catástrofe para fazer isso.
Somos nós que semeamos muito do que será, posteriormente, colhido, consumido e usado nesse debate. Se usarmos agrotóxico de forma tresloucada, os frutos da nossa produção virão contaminados.
E, às vezes, no melhor dos desejos de alimentar uma população inteira, mataremos plantas, terra e tudo ao nosso redor.
Sobre
o autor
Leonardo
Sakamoto
É
jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São
Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito
aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP e
pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em
Nova York, é diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo
das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/02/28/como-piadas-transformam-se-em-tragedias-sob-nossa-arrogancia/
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