Tenho me sentido incapaz de refletir sobre qualquer tema, sem que a
política atravesse gravemente o pensamento. E escrever fica mais difícil
nessa conjuntura em que a polarização surda já não faz mais caso de
argumentos.
Não considero que o consultório de psicanálise seja espaço para o
debate político, como de resto não acho que o consultório seja espaço
para o debate de nada. Debates são fundamentais para o aprimoramento do
pensamento, seja sobre política, religião, ou futebol. Mas isso exige
disposições e condições específicas. No consultório, analista e
analisando estão em outra coisa. Comunistas, proto-fascistas, liberais
de direita ou de esquerda – na poltrona do analista, ou no divã – lidam
conjuntamente com sofrimentos psíquicos que exigem cuidados terapêuticos
e é disso que se trata. Ao menos é o que se espera de quem opera nesse
campo.
Por outro lado, me parece uma tremenda fantasia infantil acreditar
que as concepções políticas de cada um estão completamente ausentes
nesse processo. E mais do que isso, que elas não interfiram fortemente,
tanto nos sofrimentos de quem sofre, quanto na capacidade de escuta de
quem presta socorro, lidando simultaneamente com seus próprios
sofrimentos.
Para avançar no raciocínio, tomemos por exemplo um pilar da teoria
psicanalítica: o Complexo de Édipo. Dentre outras tantas coisas que
derivam dessa tragédia, um dos quase consensos é o de que, no processo
de dissolução dele, as figuras de autoridade da infância acabam sendo
introjetadas constituindo o tal do nosso superego, que seguirá
internamente, daí para frente, tesourando e dando bronca na gente mesmo.
Já não precisa mais do pai e da mãe dizendo que a gente não pode, não
deve, não consegue, não merece… Nós mesmos cuidaremos de nos lembrar
isso.
Ou seja, além de termos aprendido o valor social para os nossos pais
de cada palavra do idioma com que eles nos ensinaram a falar, absorvemos
também o significado de cada levantada de sobrancelha, ou de cada
sorriso aprovador. É pouco provável que, junto com isso, não tenha vindo
uma porção de outros aportes ligados ao fato concreto da nossa mãe ser
negra e doméstica, ou do nosso pai ser branco e próspero empreendedor.
Papeis sociais que não são nada naturais, mas sim contingências
históricas consequentes de lutas políticas.
Isso sem contar que, depois do Édipo, mesmo que Freud não tenha
avançado muito nessa questão, todo mundo seguiu em sua socialização
secundária. Absorvendo ensinamentos, construindo visão de mundo e
consolidando posições políticas. Professores, padres e pastores,
mentores e inspiradores de todas as áreas, quase todos brancos e machos,
que foram se somando às nossas instâncias internas de autoridade.
Reforçando social e politicamente o que não podemos, não devemos, não
conseguimos, não merecemos… e o contrário de tudo isso, por exclusão.
Mais adultos, nos vemos diante das instituições do trabalho, da
cultura, da ciência, da arte, ou do governo… todas elas imersas na
grande instituição do mercado, que finge ser o alfa e o ômega… a causa
de si. E garante estar acima do bem, do mal e obviamente da política.
Assunto esse impertinente a sua magnitude, uma vez que a subserviência
acrítica é sua única e inegociável proposta de convivência.
Na luta pela sobrevivência e pela prosperidade nesse mundo do
mercado, que já era assim desde os nossos bisavós, seguimos vendo suas
televisões e lendo seus jornais para tentar entender o mundo que nos
cerca. Como se o que nos mostrassem fosse a verdade e não a política em
uma única perspectiva.
Como então desprezar a dimensão política dos nossos sofrimentos?
Quantas interdições e frustrações sofremos por conta de nossas origens
de classe? Quanto somos inibidos em nossas potências para a criação e
para o amor, em função da cor da nossa pele, ou do jeito que gostamos de
transar? Quanto custa no lombo de cada grupo social encarar o chamado
princípio de realidade? Com que fantasias de futuro vamos deitar em meio
à guerra, ou ao desmantelamento de certezas mínimas sobre a nossa
organização social?
No Brasil de hoje, como na Europa de quando Freud pensava e escrevia,
o contexto histórico e político não são detalhes periféricos do
padecimento psíquico das pessoas. Só nas últimas semanas, sofremos o
feminicídio político de Marielle Franco; assistimos à sucumbência das
instituições judiciárias; vivemos a prisão arbitrária da mais expressiva
liderança popular do país; observamos silenciosos o saque de nossas
construções e de nossas riquezas e fomos definitivamente atados a um
processo eleitoral maculado e duvidoso. Estamos novamente acossados por
fardas e bombas e tudo isso com a conivência perversa dos meios de
comunicação, que seguem catalisando a maldade individual e fomentando a
saída pelo fascismo.
São tempos em que o mercado toca suas trombetas, ressuscitando
teorias decrépitas do início do século XX sobre o racismo e a eugenia.
Galton e Spencer reinvocados em uma cruzada contra pobres e pretos. Só
os mais fortes sobreviverão!
De minha parte, ao contrário disso, considero que sem alguma
responsabilização individual e sem alguma culpa pessoal pela fome, pelo
desamparo, pela violência, pela escravidão e humilhação do outro… não
haverá civilização possível. Sem empatia, somos todos psicopatas.
Por Newton Molon
Disponível em: http://umacascadenoz.cartacapital.com.br/psicanalise-e-politica/
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