Relembre entrevista concedida pelo economista em 2014. Nela, Singer
conta como o movimento surgiu no Brasil e tornou-se modelo de inclusão
social.
Paul Singer, fundador do PT e referência internacional no tema economia solidária, faleceu nesta segunda -feira
Um dos fundadores do PT e titular da Secretaria Nacional de Economia
Solidária (Senaes) durante os governos Lula e Dilma, pasta extinta por
Michel Temer, o economista e sociólogo Paul Singer - que faleceu na noite da segunda-feira
16, aos 86 anos - era um estudioso da economia solidária e se tornou
uma das referências internacionais no tema, com vários livros
publicados.
Apesar de o nome ter sido criado no Brasil, economia solidária
é um movimento que ocorre no mundo todo e diz respeito a produção,
consumo e distribuição de riqueza com foco na valorização do ser humano.
A sua base são os empreendimentos coletivos (associação, cooperativa,
grupo informal e sociedade mercantil).
Hoje, o Brasil conta com mais de 30 mil empreendimentos solidários, em vários setores da economia, com destaque para a agricultura familiar. Eles geram renda para mais de 2 milhões de pessoas e movimentam anualmente cerca de 12 bilhões de reais.
Nessa entrevista, realizada em dezembro de 2014, Singer contou como o
movimento surgiu no Brasil, inicialmente para combater a miséria e o
desemprego gerados pela crise do petróleo na década de 1970, e se
transformou em um modelo de desenvolvimento que promove não só a
inclusão social, como pode se tornar uma alternativa ao individualismo
competitivo das sociedades capitalistas.
Confira a entrevista concedida aos jornalistas Joel dos Santos Guimarães e Paula Quental:
BrasilDebate: Quando e como surgiu a economia solidária no Brasil?
Paul Singer: Ainda sem esse nome, a economia
solidária surgiu no Brasil no bojo da mais terrível crise pela qual o
País passou desde Pedro Álvares Cabral. Foi a crise dos anos 70, que
atingiu toda a América Latina, resultado do choque do petróleo.
Os países não produtores de petróleo ficaram com dívidas enormes.
Tiveram que comprar petróleo a preços cinco vezes maiores dos que
pagavam antes da crise. E o Brasil foi um dos que mais se endividaram.
Não tinha opção. O País já estava no processo de abertura, mas o regime
estava sem nenhuma preparação para enfrentar o desemprego, que atingia
milhões de brasileiros. Esse era o quadro.
BD: A economia solidária foi uma alternativa para enfrentar o desemprego, a fome e a miséria que atingiram milhões de brasileiros?
PS: Foi isso mesmo. Quem tentou fazer isso de uma
forma correta foi a Igreja, através da Cáritas, que começou a organizar
os desempregados para que eles voltassem a viver, a ganhar. Isso acabou
sendo o impulso inicial para a economia solidária no Brasil.
Portanto, a semente da economia solidária foi plantada nos anos 80
por uma ação extremamente adequada, e no momento certo, da Cáritas.
Alguns anos depois, o esforço da Cáritas foi secundado pelos sindicatos e
pelas universidades. A essa altura eu já estava envolvido.
BD: Qual foi o papel dos sindicatos, nesse início da economia solidária no Brasil?
PS: Os sindicatos viram que os trabalhadores de
empresas que iam falir – e muitas faliram nessa época – poderiam
arrendar a massa falida, preservar a empresa e, portanto, seus próprios
empregos.
Os primeiros casos causaram muita sensação: fábricas sem patrões.
Logo mais, isso se tornou um modelo. Surgiu a Anteag (Associação de
Empresas Recuperadas), que se especializou nisso, a partir do Dieese
(Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).
Então, foi o início da economia solidária no Brasil. Os sindicatos
apoiaram seus trabalhadores na formação de cooperativas de trabalho.
BD: Os trabalhadores assumiram a direção dessas empresas falidas e as recuperaram?
PS: Sim, assumiram a direção das empresas. Eles
passaram a ser trabalhadores sem patrão, ou trabalhadores autoempregados
coletivos ou sociais. Sempre associados.
BD: E qual foi o resultado disso?
PS: Centenas de empresas recuperadas no Brasil pelos
seus próprios trabalhadores, mais de mil. A maior da América Latina
administrada por trabalhadores é a Uniforja (Cooperativa Central de
Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia), que fica em
Diadema.
BD: Isso mostrou, na prática, a capacidade de
gestão do trabalhador, de administrar com sucesso uma fábrica,
coletivamente e sem patrões?
PS: É preciso lembrar que, do ponto de vista
capitalista, o trabalhador é alguém que cumpre tarefas. Ele não tem
nenhuma participação na gestão, muito menos conhece os problemas do
negócio.
Os donos da empresa só divulgam o que lhes parece vantajoso.
Portanto, os trabalhadores não têm aparentemente nenhuma capacidade de
gerir uma empresa. A realidade mostrou o contrário. As empresas
recuperadas pelos trabalhadores levam uma média de 2, 3 meses para
voltar à plena atividade. Não mais que isso. É surpreendente.
BD: E quando surgiu o conceito e o nome economia solidária?
PS: A história é mais o menos o seguinte: quem não
se lembra do Betinho (Herbert José de Sousa)? Sociólogo e ativista
social, militante político que liderou o “Natal sem Fome”, mobilizou
milhões e milhões de pessoas no Brasil. Isso também está na história da
economia solidária.
BD: De que forma?
PS: Começou-se a perceber que era preciso fazer
alguma coisa direta contra o desemprego. Como a campanha do Betinho
avançou bem, tomamos a decisão de nos reunirmos nos anos 1990 (92 e 93)
para lutar diretamente contra o desemprego, fomentando a economia
solidária, que ainda não tinha esse nome. Incentivando a autoiniciativa
econômica de trabalhadores associados.
Inclusive a campanha do Betinho foi muito apoiada pela Igreja. Ele
mesmo era um católico, um cristão socialista. Militante da AP (Ação
Popular, organização da esquerda cristã). Bem, esse foi o passo decisivo
para a criação das incubadoras e cooperativas populares. Não surgiram
imediatamente, mas não demorou muito. A primeira cooperativa foi criada
no Rio de Janeiro, creio que em 1994, e agiu especificamente na Maré
(Complexo da Maré). As incubadoras tecnológicas e cooperativas populares
foram decisivas para o desenvolvimento da economia solidária no Brasil.
A origem dessa primeira incubadora vem da situação trágica dos
trabalhadores daquelas favelas, que ficam ao redor do Instituto Oswaldo
Cruz (Fiocruz). E junto ao Instituto Oswaldo Cruz existe a Faculdade
Nacional de Saúde Pública. Basicamente, as pessoas nas favelas viviam do
tráfico e das lutas contra os traficantes… As balas passaram a voar e
atingir os prédios da faculdade. Chegaram a cogitar de tirar o Oswaldo
do Cruz de lá, mas os próprios professores tomaram a iniciativa
maravilhosa: “Vamos pensar um pouco antes de fazer essa transferência”.
Eles foram às favelas ver o que estava acontecendo e descobriram que 80%
dos favelados, dos chefes de família, não tinham trabalho. Uma situação
desesperadora e o tráfico era a única alternativa que lhes restava.
Os professores se reuniram e discutiram então o que fazer. O fato é
que eles acharam que cooperativa seria a solução. Então entraram em
contato com os vizinhos e sugeriram que formassem uma cooperativa de
trabalho na própria instituição. E até hoje, eu acho, é assim. Os homens
passaram a ter uma atividade e as mulheres também, em função daquele
acordo.
BD: E como o senhor entra nessa história?
PS: Havia professores de Campinas, eu pela USP, mas
não éramos muitos. Nós começamos a estudar o assunto. Em 1995, fizemos a
primeira reunião brasileira do que viria a ser economia solidária, na
PUC de São Paulo. A imprensa não dava nada disso, como até hoje. O MST
fazia economia solidária sem dar esse nome. O Gonçalo Guimarães que até
hoje dirige a mais antiga incubadora do Brasil, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro, também. Vieram umas 30 pessoas e fui surpreendente.
O MST já havia conseguido assentar muita gente e em 1983 já havia
decidido que em todo assentamento haveria cooperativas. Eles foram a
essa reunião na PUC contar essa história. O MST tinha apoio da Cáritas,
que o ajudou a desenvolver a agroindústria nos assentamentos.
A Cáritas brasileira faz parte de uma rede de Cáritas no mundo
inteiro e ela recolheu muitas contribuições das Cáritas europeias, dos
Estados Unidos, porque a crise lá já estava superada, mas aqui não. Eles
tinham recursos e os usaram para promover a economia solidária, que não
tinha esse nome ainda.
O nome surgiu durante a campanha eleitoral de 1996 para a prefeitura de São Paulo. A candidata do PT foi a Luiza Erundina,
que acabou perdendo para o candidato do Paulo Maluf, o Celso Pitta. Fui
secretário de planejamento do governo dela quando o desemprego atingiu o
auge, naquele complicada política do (ex-presidente Fernando) Collor.
Havia 1,6 milhão de desempregados em São Paulo. Sem o apoio dos
empresários, o que sobrou dos nossos esforços foi uma importante
cooperativa de catadores de lixo, que até hoje existe. Vieram as
incubadoras, o MST, a CUT, ONGs. Eram movimentos sociais se organizando
em torno de um objetivo comum.
Fizemos essa proposta de organizar os desempregados em cooperativas
ao comitê do programa da campanha da Luiza Erundina, dirigido pelo
Aloizio Mercadante. Ele acatou e perguntou: Singer como é você chama
esse treco aí que você está propondo? Respondi: nem pensei nisso. Aí ele
me perguntou se não queria chamar de economia solidária. Na hora
percebi que era o melhor nome possível.
BD: Até então ninguém havia usado esse nome?
PS: Quem começou a escrever sobre economia
solidária, mas com nome semelhante, economia de solidariedade, foi o
chileno Luis Razeto, professor de economia aposentado. Mas só o conheci
em 2008.
Eu soube dele depois que a gente já tinha posto isso aí em marcha.
Quem me apresentou a ele foi o Cláudio Nascimento, militante na época da
ditadura, que foi exilado na Europa, e teve contato por lá com um
movimento como o da economia solidária, mas não com esse nome.
Descobrimos mais tarde que a economia solidária era praticada nos
Estados Unidos, a partir do microcrédito, e as universidades americanas
tiveram um papel importante nisso.
BD: Como a economia solidária foi adotada de
forma ampla pelo PT, a ponto de ganhar uma secretaria própria, a
Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes)?
PS: Em 1991, com o desaparecimento da URSS, houve o
desaparecimento do chamado socialismo existente – mas que de socialismo
não tinha mais nada. Acabou a ideia de comunismo, e isso repercutiu no
PT.
O partido tinha de mudar e o socialismo
era a proposta do PT desde a sua fundação. Isso causou uma reação forte
nas bases operárias, camponesas etc. Elas não queriam nem ouvir falar
em jogar fora o socialismo. Tinham toda razão, esse socialismo
fracassou, mas não quer dizer que outras tentativas não possam ter
sucesso.
Em meio à chamada crise mundial do socialismo, o Lula deu mais uma
vez prova do seu gênio. Procurou o intelectual mais importante do PT, o
professor Antonio Candido de Souza, e pediu que ele organizasse uma
discussão em profundidade sobre o socialismo, porque a discussão poderia
levar a uma divisão do PT. Isso foi por volta de 93.
Vários intelectuais participaram. A economia solidária não era muito
conhecida na época, mas organizamos debates inclusive sobre esse tema.
Depois, em debates sobre desemprego, o PT entendeu que a economia
solidária poderia trazer respostas para a questão e o partido assumiu o
tema. Foi depois de todos esses debates que Lula colocou a economia
solidária no programa dele.
BD: Por que a Senaes faz parte do Ministério do Trabalho e Emprego?
PS: A Senaes foi criada em 2003, quando o Lula tomou
posse pela primeira vez. A Senaes faz parte do Ministério do Trabalho e
Emprego porque a economia solidária se reconhecia como parte do
movimento operário.
O MTE é um ministério de proteção ao trabalhador, portanto parceiro
dos sindicatos e de todas as formas de organização da classe
trabalhadora. Nós somos uma secretaria dos movimentos sociais. Uma das
coisas que me deixam orgulhoso é que os principais movimentos sociais do
Brasil hoje estão na economia solidária. Não é que apoiem de fora,
fazem economia solidária. E as mulheres são a vanguarda da economia
solidária, no Brasil e em outros países.
BD: A criação da Senaes foi fundamental para que o País tivesse uma política pública de economia solidária?
PS: A economia solidária só existe no Brasil todo,
acredito, por causa da secretaria. E do Fórum Brasileiro de Economia
Solidária, nosso grande parceiro. Sem o Fórum não tínhamos avançado. Ele
foi criado junto com a secretaria, somos irmãos gêmeos.
Uma grande parte das políticas em economia solidária surgiu por meio
do Fórum. O próprio Fórum foi fomentando a criação de fóruns estaduais e
hoje há ainda centenas de fóruns municipais. Mais da metade dos estados
têm hoje leis de economia solidária, nós temos convênios com eles e com
centenas de municípios.
BD: O senhor vê a economia solidária como solução para a miséria e também alternativa real à economia capitalista?
PS: Sim, é uma alternativa. As raízes da economia
solidária estão lá atrás, com Robert Owen, considerado o pai do
socialismo e um dos fundadores do cooperativismo, que foi administrador
de uma grande tecelagem.
Ele reduziu as jornadas de trabalho (no século 18), tirou as crianças
das fábricas. Foi realmente um humanista e mestre de Marx e Engels. Ele
criou toda uma organização para defender o socialismo e foi o primeiro
grande líder da CUT da Grã-Bretanha, a primeira grande central sindical
do mundo.
Os trabalhadores partidários de Owen inventaram a autogestão. O
princípio fundamental era a democracia, ninguém mandava em ninguém. Todo
mundo, homem, mulher, jovem, velho. Isso vale para as cooperativas até
hoje.
No mundo, 1 bilhão de pessoas participam de cooperativas, segundo
dados da Aliança Cooperativa Internacional. E cooperativa não é só
cooperativa de trabalho. As cooperativas que têm mais sócios chamam-se
cooperativas de crédito e são bancos cooperativos. Nós temos mais de mil
no Brasil hoje.
BD: A economia solidária é uma volta às origens
do socialismo? Uma outra economia, sem patrões nem empregados, mas com
trabalhadores solidários?
PS: Sim, essa é a minha tese e não é utopia. Está
sendo praticada. Em pelo menos 200 países. No Brasil, a característica
da economia solidária é a presença de muitas cooperativas. Na prática,
nós somos um exemplo de que a economia solidária é aplicação do
cooperativismo.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/Paul-Singer-Economia-solidaria-se-aproxima-da-origens-socialismo
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