Ana Vládia Holanda Cruz
Na primeira quinzena de 2017, o número de mortes dentro do sistema
prisional do Brasil já superava o massacre do Carandiru: 133. O
secretário Nacional de Juventude do governo Temer, à época Bruno Júlio
(PMDB), declarou que era pouco. Queria “uma chacina por semana”. Uma
delas ocorreu no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), operado
por uma parceria público-privada. Tinha capacidade para 454 detentos,
mas eram 1.224 no dia da matança. O governo optou pela renovação do
contrato, por 60 milhões ao ano, com a empresa que robustece seu lucro
quanto mais numerosos forem os encarcerados. “O sistema não é ruim, ele
precisa só ser aprimorado”, afirmou José Melo (PROS), governador do
Estado. Alexandre de Moraes, então ministro da Justiça, falou pouco
sobre o caso, que chamou de “crise”. Estava ocupado apresentando um
“novo” plano de segurança, tirado dos anos 1970, que tinha como centro a
“Guerra às Drogas” e as medidas de militarização da Segurança.
Bruno Julio foi exonerado. Essas coisas não podem ser ditas em
público nem por um governo que convoca o exército e usa armas de fogo
contra uma manifestação política. José Melo teve o mandato cassado pelo
STF por compra de votos. O STF, por sua vez, agora tem Alexandre de
Moraes como ministro. Trocam-se as peças para preservar o jogo.
O outro front invisível da guerra está no campo. Sequências de
chacinas foram realizadas, sobretudo no norte e centro-oeste do Brasil,
contra campesinos/as e indígenas que lutam por reforma agraria e
demarcação de terras para os povos originários. A mais recente ocorreu
em de 24 de maio: nove homens e uma mulher ligados à Liga dos Camponeses
Pobres (LCP)
foram mortos na fazenda Santa Lúcia, localizada no município de Pau
D’Arco, sudeste do Pará, durante ação das Polícias Civil e Militar.
Outras 14 pessoas foram baleadas e ficaram feridas. É o maior
morticínio, em uma única investida, desde Eldorado dos Carajás.
De 2007 para cá, os assassinatos motivados por disputas de terras
mais que dobraram, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O
Brasil, considerado um dos países mais perigosos do mundo para
ambientalistas, teve 58 assassinatos registrados pela CPT em 2016 – um
crescimento de 23% com relação aos casos registrados em 2015. Neste ano,
já foram contabilizadas 36 mortes por conflitos agrários.
A superlotação dos presídios e o crescimento de mortes por ações
policiais no campo e na cidade são manifestações do mesmo fenômeno: a
militarização da Questão Social. Multifacetada, ela também se expressa
no caveirão que tudo arrasta na Maré; na abordagem criminalizante de
jovens negros/as; no aumento de tiroteios em áreas com UPPs na ordem de
13.746%, passando de 13 em 2011 para 1.555 em 2016; no canto de guerra
da PM do Paraná (Eu miro na cabeça, atiro sem errar / Se munição eu
já não tiver, pancadaria vai rolar / Bate na cara, espanca até matar /
Arranca a cabeça e explode ela no ar / Arranca a pele e esmaga os seus ossos / Joga ele na vala e reza um Pai Nosso);
na Chacina de Messejana, com 11 mortos, em Fortaleza; na condenação de
Rafael Braga; na perseguição à Mirian França; no Velório sem corpo de
Amarildo; na pergunta lancinante do jovem Douglas, executado: “- Porque o
senhor atirou em mim?”; na política higienista e manicomial na
Cracolândia.
O Estado-Centauro, guiado por uma cabeça (neo)liberal e um corpo autoritário, destitui direitos e aplica a doutrina do laissez-faire em
relação às desigualdades sociais e aos mecanismos que as geram, mas
mostra-se brutalmente punitivo quando se trata de administrar suas
consequências no nível cotidiano. Essa violência inscreve-se em uma
tradição multissecular de controle pela força, tradição oriunda do
colonialismo, fortalecida por conflitos agrários e por duas décadas de
ditadura empresarial-militar. Mais recentemente, ganha força no
trampolim político da bancada da bala em programas policialescos e com a
pressão de ruralistas e do agronegócio, fortalecido na gestão petista.
Apoiados em uma concepção hierárquica de cidadania, geram constantemente
um clima de terror entre as classes populares, para as quais são
exclusividade as práticas de tortura, de execução sumária extrajudicial e
de “desaparecimentos” inexplicados. A estratégia segregacionista da
Política Criminal é parte estruturante da preservação do Capital e
revela, no rio de lama de Mariana e no rio de sangue da carne mais
barata do mercado, o que significa a Garantia da Lei e da Ordem no
acirramento do conflito de classes do Brasil atual.
* Ana Vládia Holanda Cruz é militante da Insurgência no Ceará.
Disponível em: http://www.insurgencia.org/mais-uma-chacina-no-campo-o-massacre-permanente-e-a-militarizacao-da-questao-social/
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