Para Marcelo Medeiros, quase metade das mulheres terá dificuldades em se aposentar.
Marcelo Medeiros|
Professor de Economia da UnB - Pesquisador do IPEA e de YALE
Marcelo Medeiros, professor da Universidade de
Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea), além de pesquisador visitante da Universidade de Yale, está
muito atento ao debate sobre a reforma da Previdência.
Para ele, a reforma é necessária, mas não pode ser feita às pressas,
nem deixar de lado as pessoas mais vulneráveis. Ele acredita que o
Governo precisa rever algumas concessões, pensar em longo prazo e
corrigir medidas como excluir estados e municípios da reforma.
Pergunta. A reforma da Previdência é necessária?
Resposta. Esta reforma não vai ser definitiva. O Brasil precisa de uma reforma da Previdência
agora e, provavelmente, de outra em um futuro não muito distante. Mas
ser a favor de reforma não significa aceitar qualquer reforma. Não dá para ignorar que o país é muito desigual
e que a Previdência reflete isso. Uma fatia pequena das aposentadorias e
pensões é responsável pela maior parte do gasto previdenciário. Se é
para fazer economia, é nessas aposentadorias mais altas que a economia
precisa ser feita. Tratar todo mundo da mesma maneira é injusto. Os mais
pobres, que entram e saem do setor informal,
têm que ter mecanismos de proteção dentro da reforma, senão a carga em
cima deles é excessiva. A responsabilidade fiscal tem que andar de mãos
dadas com a responsabilidade social.
P. Este é o momento ideal para fazer a reforma?
R. Seria melhor se FHC ou Lula
tivessem feito. Os dois tinham muito apoio popular, tentaram e
avançaram, mas muito pouco. Este é um momento político ruim para
discutir a Previdência. O governo está fragilizado porque, na prática,
não foi eleito para isso e o Congresso está sob acusações graves,
tem pouca legitimidade para mudanças constitucionais. O risco de tomar
decisões sem legitimidade é que elas podem ser mais facilmente
revertidas no futuro. Veja a PEC que limitou os gastos públicos,
por exemplo. É o Congresso fragilizado de hoje tentando mandar no
orçamento de um Congresso que ainda vai ser eleito daqui a quinze anos. É
difícil políticos aceitarem isso, é provável é que a PEC seja
desmontada por governos futuros.
Mas o pior não é isso. Decisões apressadas e sem convencimento generalizado criam condições para que surjam governos populistas.
Na próxima década teremos um país saindo de uma recessão, com restrição
a gastos públicos, pressões de natureza econômica e social, e as duas
forças políticas de equilíbrio, PT e PSDB,
extremamente fragilizadas internamente e externamente. Em política é
difícil prever o futuro, mas o caldo de cultura para o populismo está
criado. Não é o caso de um embate entre direita e esquerda, é outra
coisa. Populistas não têm ideologia.
P. Por que você diz que a reforma não é definitiva?
R. Em política e economia não
existe isso de tudo ou nada. Não existe reforma definitiva, porque o
mundo muda e as políticas têm que acompanhar a mudança. Nosso modelo de
Previdência se encaixa bem em uma sociedade em que todo mundo tem emprego estável e de carteira assinada. Funcionaria bem na Europa
de antigamente. Mas o trabalho no mundo inteiro está passando por uma
transição, cada vez menos gente trabalha como empregado estável. Estão
crescendo os trabalhos temporários por conta própria, como se a pessoa
fosse uma empresa e não um empregado. Isso tem implicações para a
Previdência, pois quem faz as contribuições para financiar a Previdência
são os empregados formais. Advogados e médicos são exemplos da mudança,
eles trabalham como empresas individuais ou coletivas e por isso pagam
bem menos à Previdência. Isso também acontece com pessoas de renda mais
baixa, a empregada doméstica regular vai sendo substituída pela diarista.
Se isso continuar a forma de financiamento [da Previdência] terá que
ser outra, algo como o Imposto de Renda, por exemplo. Como as mudanças
já estão ocorrendo, é melhor começar a pensar nelas agora.
P: Mas e o trabalho hoje?
R: O mercado de trabalho no Brasil hoje tem três características que são importantes para a Previdência: muita informalidade, muita gente com renda baixa e uma diferenciação entre homens e mulheres.
Muita informalidade significa que as pessoas não têm carteira assinada
e, por isso, é difícil para elas contribuir para Previdência durante
anos seguidos até atingir o mínimo de 25 anos para se aposentar. Renda
baixa agrava o problema, pois é difícil para quem ganha pouco deixar de
gastar com a família para contribuir como autônomo. Para cuidar de filhos e netos mulheres caem na informalidade ou saem do emprego
durante um certo tempo e isso reduz seu tempo de contribuição, tornando
mais difícil sua aposentadoria. Não se trata exatamente de uma escolha,
mulheres não têm alternativas como creches e escolas em tempo integral.
Combine essas coisas e a conclusão é uma só: existe uma parte grande da
população brasileira que trabalha muito, mas terá grande dificuldade
para cumprir 25 anos de contribuição e se aposentar. Os cálculos são de
que para mais de um terço da população, esses 25 anos são tempo demais.
Para as mulheres, aliás, é bem pior, quase metade terá grande
dificuldade. É errado tratar todos da mesma forma, aposentadorias de
baixa renda têm que ser mais acessíveis. Não é uma questão de mexer nas
idades e sim nos tempos de contribuição para aposentadorias no valor
mínimo.
P. Em um artigo escrito para a Folha de S. Paulo,
economistas do governo afirmam que a reforma da Previdência tem que
incluir o BPC (Benefício de Prestação Continuada) por conta de
“distorções” no programa. Qual sua opinião à respeito?
R. Distorções no BPC não
justificam reduzir seu valor. Se o BPC tem problemas administrativos,
eles não vão ser resolvidos pela reforma da Previdência, tem que ser
resolvido na esfera administrativa. Coisa, aliás, sobre a qual o governo
não tem que reclamar, afinal ele tem o dever de administrar direito o
BPC. Toda política precisa de ajustes contínuos, o BPC não é diferente. O
governo se queixa de concessão por juízes, mas é preciso saber melhor o
que está acontecendo. As linhas de pobreza do BPC são mais baixas que
as do Bolsa Família, parte do problema pode ser que os juízes estão entendendo que isso é duro demais com idosos
pobres. Não há nada de errado em levantar um debate público sobre quem
merece proteção social no país e criar leis que reflitam escolhas sobre o
que fazer com os idosos. Não precisa mudar a Constituição para isso. O
que não pode haver é antipatia em relação à assistência social.
P. Então a reforma vai acabar sendo paga só pelos pobres?
R. Isso não é verdade. Há regras
na proposta de reforma que são muito positivas e não afetam tanto os
mais pobres. Um exemplo é o fim da aposentadoria por tempo de serviço.
Essa medida afeta todo mundo, mas afeta mais os trabalhadores de renda
mais alta. Mas existem trabalhadores de renda mais alta que estão sendo
poupados sem nenhuma justificativa econômica para isso, só pelo receio
de seu poder político. É muito ruim ter uma reforma dura com as mulheres e com os trabalhadores do setor informal
enquanto militares e funcionários públicos de Estados e Municípios são
deixados de fora. Não tem problema ter desigualdade se ela for criada
para proteger os mais pobres. Mas então você cria a mesma regra para
ricos e pobres e o primeiro gesto é dizer “é igual para todo mundo
exceto certos grupos onde estão os mais ricos”? Não dá para começar uma
reforma de forma ambígua e esperar que todo mundo confie na promessa de
que esse problema vai ser enfrentado depois. Tem que haver um prazo
limite para que Estados e Municípios façam suas reformas e a lei para mudar a aposentadoria dos militares tem que ser apresentada dentro do pacote político que discute a reforma geral.
P. A reforma da Previdência pode ter um impacto negativo na economia?
R. Tem impacto na economia, mas
não dá para especular. As mudanças não têm grande impacto agora, vão
começar a ser sentidas daqui a uma década. É difícil porque a gente não
sabe como o Brasil será daqui a dez, vinte anos, principalmente no cenário atual onde a instabilidade é forte.
P. Como a reforma da Previdência pode impactar na vida das mulheres?
R. Na proposta inicial não havia preocupação alguma com as mulheres. O Congresso
quer mudar isso. Se a proposta inicial não for alterada, o impacto
negativo na vida das mulheres vai ser forte e não está claro que a
economia feita compense. Por exemplo, há a ideia de impedir o acúmulo de
aposentadorias e pensões. Isso por um lado tem que ser feito, para
controlar aposentadorias muito altas. Mas precisa ser mais bem calibrado
para aposentadorias de valor baixo, usando, por exemplo, um teto para o
que pode ser acumulado, podendo até mesmo haver um certo desconto no
valor final. Isso está sendo discutido agora e é mais sensato do que
simplesmente proibir qualquer tipo de acumulação.
Tem muita gente falando de idades mínimas, mas
para as mulheres mais importante que as idades são os tempos de
contribuição obrigatórios, porque as mulheres saem do emprego formal
para cuidar das crianças e demoram um pouco para voltar. Como isso não
vai mudar facilmente, precisa ser levado em conta pela Previdência, os
tempos de contribuição mínimos das mulheres têm que ser menores que os
dos homens, ao menos para as aposentadorias de valor mais baixo.
Tudo isso tem um custo, portanto é preciso
discutir as alternativas levando os gastos em consideração. Aliás, tem
que discutir os custos dessas e das outras alternativas. A pergunta tem
que ser “com custo do benefício que vamos dar para determinada categoria
profissional, o que nós poderíamos fazer pelas mulheres ou pelos
trabalhadores do setor informal”? A reforma foi feita correndo e não se discutiu alternativas.
Não teve um debate muito claro. E é evidente que o Governo está
tentando apressar o Congresso. Mas nós precisamos de uma reforma que
seja socialmente e fiscalmente responsável. Uma coisa não pode existir
sem a outra.
Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/18/politica/1492540951_986998.html?id_externo_rsoc=FB_BR_CM
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