Quando quatro jovens negros
estadunidenses sequestram e torturam um colega branco com deficiência
uma pergunta percorre as redes sociais: pessoas negras podem cometer
racismo contra brancas? Os jovens em questão foram imediatamente presos
porque exibiram em vídeo as agressões contra a suposta vítima e uma das possíveis motivações expostas em cena parece ter sido o ódio a Donald Trump. A foto dos jovens rodou a mídia global
sob a acusação explícita – e sensacionalista – de racismo. O que por
sua vez comprova o que muitos militantes negros sempre suspeitaram,
jornalistas simplesmente não sabem o que é racismo ou são cínicos e
racistas demais para se importar ou lembrar de qualquer tipo de
compromisso ético da profissão.
Não coincidentemente, há apenas duas
semanas, seguindo o levante exponencial de crimes racistas e xenófobos
que sucederam a vitória de Trump, um
jovem branco norte-americano que sequestrou, torturou, humilhou usando
xingamentos racistas e estuprou com um cabideiro um colega negro
deficiente mental foi considerado inocente por um juiz – pasmem! –
branco. Esta notícia só gerou repúdio em alguns poucos canais
já comprometidos com a luta antirracismo. E tal qual o aumento dos
crimes de ódio ianques, passou despercebido por aqui.
Para o resto do mundo, essa foi apenas
mais uma decisão judicial na história do universo. Indigna de nota ou
relevância jornalística. O que significa também dizer que o delinquente
jamais fora chamado de racista – e consequentemente culpado – pelas
grandes mídias. Como boa parte dos casos noticiados por aqui, o episódio
foi considerado apenas suspeito de teor racista. Um crime suposto,
ainda a ser julgado. Ainda que palavras como “nigga” – que se aproxima
em peso e história de “macaco” e “crioulo” – tenham sido empregadas. Ou
ainda que um homicida branco entre numa igreja negra com o propósito,
orgulhosamente declarado, de matar pessoas pretas. Até porque nesses casos a culpa sempre recai em algum distúrbio psicológico
a ser sempre confirmado por especialistas e garantido pelo senso comum.
Afinal “todos sabemos” que os piores racistas são os negros.
Como qualquer pessoa ou grupo de pessoas negras podem, individualmente, superar três séculos de escravização, Apartheid,
segregação, marginalização e a violência do “mito da democracia racial”
dificilmente saberemos, mas o que aparece constantemente em manchetes
abordando agressões Racistas é o caráter especulativo.
Demonstrações de racismo cometidas por pessoas brancas geralmente
provocam cautela nos jornalistas responsáveis, mas não quando os
“culpados” são negros. Em caso de dúvidas é só esperar o próximo flagra
filmado de uma idosa branca paulista atacando alguma pessoa negra por
alguma característica culturalmente associada a negritude para
confirmar. Todo semestre aparece uma dessas mas, imparcialmente, elas também acabam sempre sendo inocentadas por juízes brancos sem nunca ter passado um dia sequer na cadeia.
O curioso nisso tudo é que as equipes editorias de jornalismo – assim como a KKK, o nosso senado e judiciário –, também são tradicionalmente compostas por pessoas brancas. E olha que há muito dispensam diploma para selecionar seus colunistas!
Ainda mais curioso nisso tudo é como os mesmos profissionais que alegam
não poderem confirmar categoricamente casos de racismo em nome de uma
pretensa imparcialidade, são os mesmos cidadãos – sempre “de bem – que
noticiam casos como o desses quatro jovens negros como indiscutivelmente
racistas ou pior, que vivem criticando a grande mídia, mas se mantém
confortavelmente cúmplices diante de tal disparate.
Sendo assim, pra não restar mais
ignorância sobre o assunto além de uma honesta investigação teórica
sobre o tema, afirmo que pessoas negras podemos sim ter preconceito
contra pessoas brancas. Atitudes como essas depois de séculos de
hierarquização racial acabam tendo esse efeito mesmo quando se é uma
pessoa negra consciente. Porém, pessoas negras não podemos ser racistas contra pessoas brancas. Porque, diferente do que os mesmos jornalistas parecem acreditar, racismo não é a mesma coisa que preconceito.
Racismo é ter o preconceito e o poder de definir como se vive e se
morre a partir dele. Significa ter opiniões negativas sobre outros
e estabelecer mecanismos que façam essas opiniões tenham impacto
negativo, material e subjetivo, na vida desses outros. Então, enquanto
pessoas negras não tivermos o poder de decidir sobre a trajetória e o
fim de vidas brancas; enquanto não produzirmos leis e mecanismos de
conduta que punam mais frequente e severamente brancos; enquanto
não tivermos o álibi da imparcialidade nos nossos posicionamentos,
jamais poderemos ser racistas.
Pessoas brancas têm tanta noção disso
que, por ato falho, qualificam esse racismo como reverso – às avessas – ,
porque no fundo sabem bastante bem que esse não é o usual, a forma
corriqueira na nossa cultural ao longo dos cinco séculos, mas sim uma
subversão inusitada daquilo que seus avós e bisavós construíram – ativa
ou passivamente –para subjugar os nossos e que causa tanta estranheza
que precisa de um nome “diferenciado”. Afinal, a branquitude agrega valor a tudo.
O amplo compartilhamento que a ação dos
quatro jovens afro-americanos provocou entre as mesmas pessoas que
defendem que racismo não existe e que pessoas negras em movimento estão
de mimimi só confirma o real racismo presente no caso. Ora, se
racismo de fato não existe por que tanto alarde por um evento “reverso”?
Se é tudo “vitimismo” quem são os reais vitimistas quando
choram um caso isolado em sabe-se lá quantos séculos de karma acumulado,
mas se calam diante do extermínio de um jovem negro a cada 23 minutos
apenas aqui no Brasil – onde pena de morte é ilegal?!
Fica evidente nessa polêmica que o que a branquitude sempre mais gosta é de falsa simetria. De
qualquer motivo, aparentemente justo, para legitimar sua posição na
opressão. Aproveitam qualquer brecha para nos culpar dos erros que
aprenderam a cometer com seus antepassados. Bastou um grupo de 4 jovens
negros tratarem uma pessoa branca da mesma maneira que sempre nos
trataram e pronto. Fizemos por merecer tudo que já foi – e pode vir a
ser – feito conosco impunemente! Ou você já viu gente branca,
coletivamente, demonstrar a mesma indignação e repúdio pela nossa dor e
com a mesma veemência que ele revertem essas exceções contra nós e inocentam os seus?
Como disse, pessoas negras podemos sim
ter pré e pós conceito contra pessoas brancas. Tanto porque uma noção
mínima de história deixa mesmo essa pulga atrás da orelha quanto
porque é insustentável nutrir confiança por uma grupo tão unanimemente imparcial omisso
diante maus tratos cometidos contra os nossos. Só sendo um tanto
masoquista ou tendo pouquíssimo amor próprio para permanecer na posição
de esperar respeito e compaixão daqueles que, coletivamente, em 500 anos
de convivência nunca souberam – nem esboçaram – demonstrar.
Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2017/01/09/seus-racistas-reversos-ou-jornalistas-sabem-o-que-e-racismo/
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