segunda-feira, 13 de março de 2017

“SEUS RACISTAS REVERSOS!” OU JORNALISTAS SABEM O QUE É RACISMO?

Leopoldo Duarte

Foto: Tyler Shields 


Quando quatro jovens negros estadunidenses sequestram e torturam um colega branco com deficiência uma pergunta percorre as redes sociais: pessoas negras podem cometer racismo contra brancas? Os jovens em questão foram imediatamente presos porque exibiram em vídeo as agressões contra a suposta vítima e uma das possíveis motivações expostas em cena parece ter sido o ódio a Donald Trump. A foto dos jovens rodou a mídia global sob a acusação explícita – e sensacionalista – de racismo. O que por sua vez comprova o que muitos militantes negros sempre suspeitaram, jornalistas simplesmente não sabem o que é racismo ou são cínicos e racistas demais para se importar ou lembrar de qualquer tipo de compromisso ético da profissão.
Não coincidentemente, há apenas duas semanas, seguindo o levante exponencial de crimes racistas e xenófobos que sucederam a vitória de Trump, um jovem branco norte-americano que sequestrou, torturou, humilhou usando xingamentos racistas e estuprou com um cabideiro um colega negro deficiente mental foi considerado inocente por um juiz – pasmem! – branco. Esta notícia só gerou repúdio em alguns poucos canais já comprometidos com a luta antirracismo. E tal qual o aumento dos crimes de ódio ianques, passou despercebido por aqui.
Para o resto do mundo, essa foi apenas mais uma decisão judicial na história do universo. Indigna de nota ou relevância jornalística. O que significa também dizer que o delinquente jamais fora chamado de racista – e consequentemente culpado – pelas grandes mídias. Como boa parte dos casos noticiados por aqui, o episódio foi considerado apenas suspeito de teor racista. Um crime suposto, ainda a ser julgado. Ainda que palavras como “nigga” – que se aproxima em peso e história de “macaco” e “crioulo” – tenham sido empregadas. Ou ainda que um homicida branco entre numa igreja negra com o propósito, orgulhosamente declarado, de matar pessoas pretas. Até porque nesses casos a culpa sempre recai em algum distúrbio psicológico a ser sempre confirmado por especialistas e garantido pelo senso comum. Afinal “todos sabemos” que os piores racistas são os negros.
Como qualquer pessoa ou grupo de pessoas negras podem, individualmente, superar três séculos de escravização, Apartheid, segregação, marginalização e a violência do “mito da democracia racial” dificilmente saberemos, mas o que aparece constantemente em manchetes abordando agressões Racistas é o caráter especulativo. Demonstrações de racismo cometidas por pessoas brancas geralmente provocam cautela nos jornalistas responsáveis, mas não quando os “culpados” são negros. Em caso de dúvidas é só esperar o próximo flagra filmado de uma idosa branca paulista atacando alguma pessoa negra por alguma característica culturalmente associada a negritude para confirmar. Todo semestre aparece uma dessas mas, imparcialmente, elas também acabam sempre sendo inocentadas por juízes brancos sem nunca ter passado um dia sequer na cadeia.
O curioso nisso tudo é que as equipes editorias de jornalismo – assim como a KKK, o nosso senado e judiciário –, também são tradicionalmente compostas por pessoas brancas. E olha que há muito dispensam diploma para selecionar seus colunistas! Ainda mais curioso nisso tudo é como os mesmos profissionais que alegam não poderem confirmar categoricamente casos de racismo em nome de uma pretensa imparcialidade, são os mesmos cidadãos – sempre “de bem – que noticiam casos como o desses quatro jovens negros como indiscutivelmente racistas ou pior, que vivem criticando a grande mídia, mas se mantém confortavelmente cúmplices diante de tal disparate.

manchetes-suposto-racismo


Sendo assim, pra não restar mais ignorância sobre o assunto além de uma honesta investigação teórica sobre o tema, afirmo que pessoas negras podemos sim ter preconceito contra pessoas brancas. Atitudes como essas depois de séculos de hierarquização racial acabam tendo esse efeito mesmo quando se é uma pessoa negra consciente. Porém, pessoas negras não podemos ser racistas contra pessoas brancas. Porque, diferente do que os mesmos jornalistas parecem acreditar, racismo não é a mesma coisa que preconceito. Racismo é ter o preconceito e o poder de definir como se vive e se morre a partir dele. Significa ter opiniões negativas sobre outros e estabelecer mecanismos que façam essas opiniões tenham impacto negativo, material e subjetivo, na vida desses outros.  Então, enquanto pessoas negras não tivermos o poder de decidir sobre a trajetória e o fim de vidas brancas; enquanto não produzirmos leis e mecanismos de conduta que punam mais frequente e severamente brancos; enquanto não tivermos o álibi da imparcialidade nos nossos posicionamentos, jamais poderemos ser racistas.
Pessoas brancas têm tanta noção disso que, por ato falho, qualificam esse racismo como reverso – às avessas – , porque no fundo sabem bastante bem que esse não é o usual, a forma corriqueira na nossa cultural ao longo dos cinco séculos, mas sim uma subversão inusitada daquilo que seus avós e bisavós construíram – ativa ou passivamente –para subjugar os nossos e que causa tanta estranheza que precisa de um nome “diferenciado”. Afinal, a branquitude agrega valor a tudo.
O amplo compartilhamento que a ação dos quatro jovens afro-americanos provocou entre as mesmas pessoas que defendem que racismo não existe e que pessoas negras em movimento estão de mimimi só confirma o real racismo presente no caso. Ora, se racismo de fato não existe por que tanto alarde por um evento “reverso”? Se é tudo “vitimismo” quem são os reais vitimistas quando choram um caso isolado em sabe-se lá quantos séculos de karma acumulado, mas se calam diante do extermínio de um jovem negro a cada 23 minutos apenas aqui no Brasil – onde pena de morte é ilegal?!
Fica evidente nessa polêmica que o que a branquitude sempre mais gosta é de falsa simetria. De qualquer motivo, aparentemente justo, para legitimar sua posição na opressão. Aproveitam qualquer brecha para nos culpar dos erros que aprenderam a cometer com seus antepassados. Bastou um grupo de 4 jovens negros tratarem uma pessoa branca da mesma maneira que sempre nos trataram e pronto. Fizemos por merecer tudo que já foi – e pode vir a ser – feito conosco impunemente! Ou você já viu gente branca, coletivamente, demonstrar a mesma indignação e repúdio pela nossa dor e com a mesma veemência que ele revertem essas exceções contra nós e inocentam os seus?
Como disse, pessoas negras podemos sim ter pré e pós conceito contra pessoas brancas. Tanto porque uma noção mínima de história deixa mesmo essa pulga atrás da orelha quanto porque é insustentável nutrir confiança por uma grupo tão unanimemente imparcial omisso diante maus tratos cometidos contra os nossos. Só sendo um tanto masoquista ou tendo pouquíssimo amor próprio para permanecer na posição de esperar respeito e compaixão daqueles que, coletivamente, em 500 anos de convivência nunca souberam – nem esboçaram – demonstrar.

Disponível em:  http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2017/01/09/seus-racistas-reversos-ou-jornalistas-sabem-o-que-e-racismo/

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