Quase todo mundo conhece a lenda urbana
sobre um nazista brasileiro que enviou apoio e solidariedade
a seguidores de Hitler que, por sua vez, se negaram a se “misturar com
gentalha”. Porém, o que muitos desconhecem é que o Brasil teve o maior partido nazista fora da Alemanha durante a Segunda Guerra. Ou seja, cinco décadas depois da falsa abolição
o ideal da superioridade branca continuava vivo e politicamente
articulado. É aquele ditado: velhos hábitos são difíceis de largar!
Principalmente um que consumiu a maior parte da nossa história. E se
você se acha que já superamos isso, favor responda honestamente quando e
como exatamente esse país transformou “mercadorias” em cidadãos de
direitos plenos. Quais medidas governamentais possibilitaram que
ex-escravizados e “aborígenes” participassem igualitariamente das
decisões sobre o rumo dessa terra e seus compatriotas?
Ser branco é (ter) “poder”
Todo ser humano tem possibilidades
infinitas, mas a vida em sociedade inevitavelmente nos leva a nos
encaixar. Sempre que uma nova categoria para definir pessoas é criada,
acatando ou não, somos sujeitados nelas. Ainda que essa categoria tenha
surgido há poucos dias ou séculos atrás. É assim com signo,
gênero, orientação sexual, peso, altura e outros critérios de distinção.
Um bom exemplo disso é quando uma nova doença é “descoberta” e todo
mundo começa a suspeitar que a tem. Frequentemente porque esse
diagnóstico nos inocenta de alguma falha no bom funcionamento social.
Egoísmo demais, ambição demais, apatia demais etc.
Desde que os portugueses aqui
desembarcaram para tirar a paz, as culturas e milhões de vidas do povos
que aqui já habitavam em nome do seu “projeto civilizatório”, ser
branco/europeu significa poder de um tudo. Sobretudo desapropriar,
matar, estuprar e escravizar. Nessa terra “sem lei” o que mandava era
– e ainda é – a vontade e a ganância de mandantes brancos. O “selvagem
mundo novo” carecia de ordem e controle e os europeus acharam por bem que não havia ninguém mais indicado que eles mesmos para suportar o “encargo” de polir esse diamante bruto chamado América.
Durante o processo de colonização os
povos ameríndios foram roubados de suas terras – e o poder de transitar e
viver delas –; e povos africanos perderam suas raízes e a própria liberdade – o direito de ir e vir e de ser qualquer outra coisa que não “escravos” – para que pessoas brancas pudessem acumular terras, ouro e direitos.
Contudo, apesar de passados 5 séculos e de todo reforço do mito da
“democracia racial” não é difícil perceber quem são os que vivem em
maior harmonia nas esferas de poder dentre as “três raças”. Tenha sido através de herança, tradição
ou “velado” racismo pessoas brancas nesse país sempre detiveram poder.
Nem sempre de maneira igual, mas todos dispuseram de livre acesso, oportunidades e voz. Sempre tiveram meios para construir, enriquecer e sonhar enquanto que as outras raças se preocupavam em sobreviver e fugir.
Ser branco é uma (“poderosa”) invenção
Da mesma forma que tupis, kayapós,
pataxós etc. foram encaixados arbitrariamente na categoria “indígenas” e
angolas, iorubas, mandigas etc. no rótulo de “negros”, alemães,
espanhóis e portugueses se reuniram como “brancos”. Essas classes, como
todas, são invenções. Essas identidades foram criadas com o propósito de
estabelecer distinção. Mais especificamente para ordenar os habitantes do mundo colocando a branquitude no topo e consequentemente, no domínio de tudo. E de todos.
Na natureza por si só não existem
branco – nem preto, nem amarelo ou o que for –, existem pessoas. Porém, é
através da cultura, no caso de origem europeia, que se determinou o que
seria branco – logo belo, bom e capaz. Com o intuito de
justificar sua superioridade, europeus hierarquizaram racialmente os
outros que pretendiam explorar. E como o Brasil não foi colonizado por
suecos, a nossa noção de branquidade é totalmente diferente da de
um estadunidense ou de finlandês. Os nossos referenciais da raça “exemplar”
nunca foram exatamente arianos. O nosso entendimento do que é branco
sempre foi mais amplo – pra não dizer “impuro”. A leitura brasileira de
quem é branco ou não está inserida num contexto totalmente muito
específico, diferente da de norte-americanos, que por sua vez não é
semelhante a concepção de gregos ou dinamarqueses. Contudo, o racismo
que deu origem a tudo isso pode não se manifestar de maneira idêntica em
todos os lugares, mas a crença de que ser branco tem o mesmo sentido
que ser melhor deu frutos por todo o planeta. E o Brasil não é exceção.
Ser pardo é (ter) a intenção de tornar branco
Diferente do que se acredita, a suástica
não é a mãe da supremacia branca, mas apenas o símbolo de suas últimas
consequências. Por aqui mapa genético/genealógico pode não ter o mesmo
peso que o que pode ser visto ao olho nu na hora de definir quem pode
ser a nova loira do Tchan, mas isso não quer dizer que no Brasil não prevaleça a branquidade como protótipo ideal.
Brasileiros somos tomos ensinados que
ter um fenótipo mais puxado pro branco – pele e olhos claros, cabelo
liso, nariz e boca finos etc. – é suficiente. A Xuxa e o Rodrigo Hilbert
podem ser brancos mais Brancos que os demais, mas no final das contas a
identidade negra é tão menosprezada que as pessoas se apegam a qualquer
coisa para tentar se livrar desse estigma. Até porque, podendo
forçar uma barra e estranhos chamando de moreno(a), quem não vai
preferir entrar no “clube de vantagens” que é a branquitude num país
forjado pelo racismo? Tendo a possibilidade de escolha, quem vai querer
ser tratado e associado com um grupo tão marginalizado e depreciado
quanto o negro numa cultura que nos ensina que o nosso ponto de partida
na história mundial são os navios tumbeiros?
Como disse, ser branco em terra brasilis
não é propriamente se identificar como ariano, mas sim parte
integrante, efetiva ou pretensamente, do grupo que sempre mandou e
desmandou. Se a identidade branca não passa de uma fábula para
“inspirar” conforto e superioridade, não é de se espantar que pardos se
apropriem dessa cultura a ponto de a ponto de participarem de grupos
neonazistas. Ainda que a KKK os rejeite por considerá-los “latinos” e a
extrema direita europeia por considerá-los abomináveis, defender uma
soberania branca no Brasil tem o sentido tanto de resguardar todo o
“legado” racista quanto fielmente acreditar que cor da pele – e não
genética – determina quem pode deve ser autoridade para conduzir o futuro de seus cidadãos
habitantes. Ou seja, reivindicar a primazia branca é nutrir admiração
pelo papel desempenhado pela branquitude na fundação desse país e apoiar
a permanência das coisas como elas sempre foram.
O Brasil, como toda colônia europeia,
foi feito para que seus colonos europeus e seus descendentes se
sentissem em casa – fora de casa. Posto isso, sentir-se
racialmente neutro nesse território construído através de séculos de
violência significa encontrar comodidade numa nação erguida com base
numa forte confiança na supremacia branca – na ideia de que pessoas
brancas são “naturalmente” superiores às negras (da terra e africanas).
Não contestar o papel da branquitude ao longo de todo o processo – até
os dias de hoje – não deixa de ser uma forma de compactuar com tudo que
foi feito em nome dessa crença. Esse conto da carochinha pálida pode ser
antigo, mas permanece entranhado em nossa cultura. Esse faz de conta
europeu pode não ser proclamado como o mesmo orgulho de antes, mas ainda
exercer uma influência perversa em nossas estatísticas e ruas. Esse
mito pode não ter o mesmo apelo de antes, mas nem por isso cessou de
servir de argumento para convencer pessoas que não-brancas “fizeram por
merecer” posições piores em nossa sociedade. Prova disso é a resistência
que ainda se tem para se debater representatividade política, reparação histórica e outras “pós-modernidades”.
Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2017/01/16/qual-a-relacao-entre-supremacia-branca-e-o-brasil/
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