Política é disputa de poder. Quem pode
circular por onde, com que roupa, fazendo o quê. Lutamos por direitos
básicos, para ter assistência médica, por segurança, por respeito… e
também para saber quem é a melhor diva para ralar a bunda no chão.
Corpos, gírias, beijos, leques, sexo, música, tudo é político! Tudo
comunica o que somos, qual é nosso nome, qual é o nosso lugar. E se
antes a coisa parecia dividir-se apenas entre ozétero e os
“não-hétero”, hoje a disputa é debaixo da nossa bandeira multicor. É a
política de identidade demonstrando os seus limites.
Nesse carnaval, dois assuntos dominaram a minha “bolha gay” do Facebook: a vitória de “MOONLIGHT” – erradamente tratado como o primeiro “filme gay” a vencer na categoria melhor filme – no OSCAR
e a tomada, na folia carioca, de blocos tradicionalmente “purpurinados,
empoderados, tombadores e lacradores” por “Barbies” malhadas que
representam toda a normatividade que o Movimento LGBT precisa combater.
Dois tópicos que falam da mesma coisa, identidade.
Essa briga não é nova porque a
associação misógina entre o comportamento “gay” e a feminilidade está na
base da própria criação dessa identidade. Quando foi criado o conceito
de sexualidade e as práticas hétero e homossexuais passaram a definir
“tipos de gente” diferente, a estrutura machista tratou de hierarquizar
as coisas colocando o desejo homossexual como inferior ao heterossexual,
da mesma forma que a mulher era – e é – inferiorizada na sociedade
patriarcal. Assim, automaticamente, o comportamento considerado
efeminado foi tratado como o MAIS ANORMAL, já que homens assim estariam
mais próximos do desvio da norma – o macho heterossexual. E o produto
óbvio disso foi uma identidade social e política que já nasceu dividida
entre mais isso e menos isso, o que viria a influenciar as estratégias de luta e a aceitação dos indivíduos rotulados como “gays” décadas e décadas depois.
Já disse aqui que “contra padrão não há opressão”
e mantenho essa posição. O que às vezes parece difícil de entender ou
de aceitar é que o poder é sempre relacional. Como pessoas LGBT, podemos
falar em comunidade e em pautas comuns porque temos um oposto – seja
ele visto como inimigo ou não – que é o heterossexual. Não
especificamente as nossas mães ou aquele amiguinho HT maneiro, mas a
ideia de que a heterossexualidade é a norma e que, portanto, tudo que
difere dela é desviante. Nesse contexto, mesmo o mais macho-branco-rico-sarado
dos homens pode ser vítima de opressão, já que basta a homossexualidade
para que ele esteja em relação de inferioridade ao modelo
heterossexual. E isso, obviamente, não impede que ele esteja AO MESMO
TEMPO em posição privilegiada e sendo capaz de oprimir aqueles que são
entendidos socialmente como inferiores a ele: afeminados, negros, pobres
e gordos/não-sarados.
Ah, isso quer dizer então que afeminados conseguem excluir padrõezinhos dos rolês lacrantes?
Não, porque não existe relação social que permita isso. Individualmente
é até possível que alguém se sinta mal por ouvir um “seu lugar não é
aqui” em algum grupo de Facebook, mas na vida real esse
tipo de censura não se sustenta. Os “”””inferiores”””” simplesmente não
tem esse poder. Aliás, o que costuma acontecer é o tal boy padrão ser abraçado e aplaudido como “reizinho desconstruíde” por estar ali socializando com manas e monas.
Por mais inclusivos que sejam a
princípio, grupos sociais sempre terão limites de pertencimento
definidos. O “tombamento” e a “lacração” que vimos crescer nos últimos
anos são inegavelmente importantes como discurso político e afetaram
positivamente a vida de toda uma geração de LGBTs, negros e de negros
LGBT. Entretanto, esses movimentos também são criticados por seus
limites, já que nem todo homossexual negro tem condições ou o desejo de
sair por aí de trança roxa. E essa crítica é importante, até mesmo para
que os grupos possam repensar seus discursos de maneira dinâmica, mas
qualquer identidade vai ter um limite. É inevitável. Quando dizemos EU
SOU ISSO, automaticamente dizemos também EU NÃO SOU AQUILO. E como o
capitalismo tudo devora, agora vemos essas estéticas e esses discursos
políticos serem comercializados e difundidos ou até diluídos. É por isso
que mais cedo ou mais tarde, até o mais underground dos blocos
ou a mais fechativa das boates será ocupada por grupos que não
pertenciam originalmente a esses espaços. E quando esses grupos são
privilegiados – por exemplo, pela raça ou por padrões estéticos – essa
dominação é ainda mais difícil de evitar, já que a estrutura de poder já
os beneficia de saída.
Sobre os blocos, cabe à organização
assumir uma postura clara sobre os comportamentos aceitos ou não durante
o evento. A festa é na rua, é óbvio que ninguém vai conseguir impedir
alguém de ir (e nem é isso que se quer), mas assumir uma postura
política é fundamental para qualquer grupo (ou empreendimento) LGBT. No
mais, esses rachas e tensões são o produto inevitável da política de
identidades. É claro que tem galera escrota, racista, classista e
machista. Só tem! Mas isso é produzido e alimentado dentro da identidade
“gay” porque ela, nos últimos anos, foi descolada da simples orientação
sexual para um PAPEL SOCIAL que é vendido e validado através da cultura
e do consumo. Antes de uma “Barbie” ser escrota, ela é – porque “deu
sorte de nascer assim” ou pagou com o fígado para se adequar a um ideal –
a definição do que é “ser gay” na contemporaneidade. Por que essa
identidade deixou de significar “homossexual” ou o oposto negativado de
heterossexual e passou a significar esse espantalho do macho-cis-branco-rico-sarado
que conseguiu algum trânsito dentro da sociedade “normal” que agora o
tolera. Isso não exime a culpa de ninguém, mas (alguns) gays são
misóginos, machistas e racistas porque essa identidade só conseguiu se
firmar construindo “piores” que não merecem respeito nas figuras do
negro, do afeminado, das mulheres e das pessoas trans.
O futuro parece apontar para dois
caminhos. Ou a fragmentação vai continuar – o que não é automaticamente
ruim, já que todos devem ter o direito de “se encontrar” – e criaremos
palavras e rolês para subgrupos cada vez menores, ou a ideia de um
identidade baseada no desejo sexual vai ruir por completo. Apenas a
segunda opção traria a tal IGUALDADE, mas é improvável que a hegemonia
heterossexual possa ser vencida. Ninguém abre mão de poder facilmente.
É por isso que “MOONLIGHT” não é um filme sobre “ser gay” e sim sobre a dor de não conseguir sê-lo.
Permita-se. Seja livre. Seja fabuloso.
Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/osentendidos/2017/03/01/barbies-e-purpurinados-racha/
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