Por Alenice Baeta, Gilvander Moreira e Thales Viote
Este Artigo busca em linhas gerais traçar alguns momentos históricos
marcantes de perseguição e resistência do povo tradicional cigano, em
específico, visando subsidiar a compreensão do atual contexto que
envolve a luta dessa categoria étnica, as suas relações espaciais,
sócio-políticas e seus direitos constituídos. Desafios contemporâneos
que exigem o estabelecimento de políticas públicas eficazes que combatam
a ciganofobia e o incrustado racismo das instituições e agentes do
Estado brasileiro.
Sobre as suas origens, evidências baseadas em testes de DNA ou
códigos genéticos, bem como na análise de línguas faladas pelo conjunto
de etnias que constituem o que hoje são genericamente denominados
Ciganos, indicam que estes seriam oriundos do noroeste da Índia, sendo
que a sua diáspora forçada, ou melhor, a sua perseguição política,
religiosa e étnica, teria se iniciado por volta do ano 1000 da era
cristã. As perseguições se deram possivelmente a partir das invasões de
muçulmanos e de mongóis em sua terra primitiva, os obrigando a se
deslocar por meio de diversas levas para localidades da Europa Central,
via Balcãs, Oriente Médio e África. (BAÇAN, 1999; MOONEN, 2011).
Durante o século XV, já havia represálias oficiais aos ciganos em
algumas localidades da Europa Central e Reino Unido por meio de normas
oficiais dos Estados que coibiam a sua fixação ou mesmo a sua passagem
por seus domínios. Nos séculos seguintes, a Península Ibérica, por sua
vez, bania e deportava sucessivamente famílias ciganas para as suas
colônias, inclusive para o Brasil. No entanto, o marco histórico mais
cruel de genocídio ocorreu na Europa, durante a Segunda Grande Guerra
pelo governo nazista de Adolfo Hitler, quando o Terceiro Reich
determinou a erradicação das populações ciganas: o Holocausto Cigano.
Este momento trágico e deplorável ficou conhecido como Baro Porrajmos,
na língua cigana, traduzida como “Grande Consumação da Vida Humana”. O
historiador Sybil Milton (1992), do Instituto de Pesquisas de Memórias
do Holocausto[1],
dos Estados Unidos, sugere que o número de pessoas ciganas
exterminadas, inclusive em câmaras de gás dentro de campos de
concentração, pode ter atingido nessa ocasião aproximadamente 1.500.000
(Hum milhão e quinhentas mil) pessoas ciganas. Ciganos, judeus e
comunistas foram os povos que mais sofreram as atrocidades do
totalitarismo nazifascista.
Segundo o antropólogo Frans Moonen (2011), o registro mais antigo que
relata a presença de ciganos no Brasil se deu na fase inicial do
período colonial, como exposto, por volta de 1574, quando ciganos teriam
sido degredados de Portugal, juntamente com outros europeus
considerados “indesejáveis”. Os ciganos foram deportados para o Brasil
com o estereótipo preconceituoso e a criminalização advinda do
colonizador que os associava a hereges, feiticeiros, bárbaros e eternos
peregrinos. (TEIXEIRA, 2008; SIBAR, 2012).
Segundo o historiador Rodrigo Correa Teixeira (2008), que realizou
uma meticulosa pesquisa sobre o tema, o primeiro relato identificado
sobre os ciganos em Minas Gerais se deu em 1718, se referindo a ciganos
migrantes da Bahia, que teriam chegado lá também por terem sido
deportados pela metrópole portuguesa. As autoridades mineiras, por meio
de suas diligências policiais, tentavam, desde então, coibir e controlar
as inúmeras comunidades ciganas que percorriam e se instalavam em seu
território, mas sem muita eficácia. Todavia, o ápice do confronto entre
Estado, por meio de suas forças policiais, e comunidades ciganas ocorreu
no final do século XIX, ainda no período Imperial, tendo sido
denominada “correria de ciganos”, que foram “movimentação destes em
fuga, por estarem sendo perseguidos pela polícia” (TEIXEIRA, 2008, p.
5). Os acampamentos de ciganos nessa ocasião eram preferencialmente
instalados em fazendas ou na periferia das cidades, sendo o seu
nomadismo tradicional e forçado também compreendido como uma estratégia
de fluidez e invisibilidade perante as normas oficiais do Estado, normas
consuetudinárias e cerceamento constante da sociedade hegemônica. “Se
por um lado eram forçados a ocupar as redondezas da cidade, por outro,
nos terrenos que acampavam, havia mais liberdade e espaço para
convivência familiar e comunitária que seria impossível na turbulência
da área central da cidade” (TEIXEIRA, 2008, p. 36).
Como nômades ou sedentarizados perambulavam por caminhos inóspitos e
improváveis, acampando em áreas pouco propícias. Rechaçados
permanentemente, os ciganos se viam forçados a permanecer por pouco
tempo nas cercanias das cidades, pois os seus abarracamentos, a forma
peculiar de circulação pelas ruas e logradouros, além de seu
comportamento e vestes coloridas tradicionais se situavam fora da lógica
reinante nas cidades que combatia a diferença preconizando a
“assimilação” e a homogeneização de sua população. Por isso, as ciganas e
os ciganos deveriam ser permanentemente combatidos e controlados sendo
considerados fortes entraves às intenções e lógicas da vida social
mercantilista/burguesa, tendo em vista que suas tendas se situavam ainda
em áreas estratégicas de ‘expansão’/invasão de fronteiras, reservas da
especulação fundiária – apesar de ocuparem terras baldias em regra
temporariamente, “temia-se que nela se fixassem” (TEIXEIRA, 2008, p.
36). As forças policiais usavam assim vários estratagemas, se baseando
primeiramente nos Códigos de Posturas das municipalidades que previam a
“branda” expulsão de clãs ciganos para alhures ou mesmo para além dos
limites da província. A única “política pública” destinada aos ciganos
pelo braço armado do Estado era mantê-los em permanente movimento
forçado.
“Uma vez burlada a legislação, iniciava-se a segunda via,
explicitamente violenta. Procedia-se as perseguições instrumentais
visando provocar um pânico entre os ciganos. Assim, em um momento de
grande movimentação de ciganos e de forte repressão policial, surgiram
as ‘correrias’ que frequentemente resultaram em sangrentos tiroteios”
(TEIXEIRA, 2008, p. 76).
Se observarmos hoje a realidade das comunidades ciganas, não houve
tantas mudanças estruturais se compararmos o contexto atual das demandas
e das denúncias das comunidades ciganas com as do século XIX, sendo que
as perseguições sofridas hoje, ora veladas, ora explícitas, nada mais
são do que a excrecência arcaica trajada em nova roupagem de condutas
repressivas e discriminatórias feitas pelo poder público em vários de
seus âmbitos. “Quando chegam aos espaços urbanos costumam permanecer em
terrenos na periferia em condições subumanas sem saneamento ou energia
elétrica” (NIQUETTI, 2013, p. 7).
O que parece se diferenciar no cenário atual seriam, sobretudo, as
conquistas das inúmeras entidades ciganas na esfera dos direitos humanos
e dos povos tradicionais, em geral, em nível internacional, o que
obriga os países signatários ao cumprimento interno de suas diretrizes
apesar dos fortes contrastes entre o conteúdo impresso das leis e normas
e a crua e violentadora prática das suas instituições.
Durante o 1º Congresso da União Cigana Internacional, realizado em
Londres em 1971, foi formada uma comissão de trabalho com o dever de
esclarecer e divulgar junto aos Estados- membros crimes e violações
contra os povos ciganos, combatendo ainda o anticiganismo, a ciganofobia
e a xenofobia – medo/preconceito de cigano e medo/preconceito de
estrangeiro, respectivamente. Todavia, grupos e partidos de
extrema-direita na Europa continuam cultuando e incentivando a expulsão
ou exclusão de ciganos, reacendendo a fogueira de injustiças perpetradas
contra este povo e suas tradições milenares (MOONEN, 2011).
Em 2001 foi elaborado pelos representantes de delegações,
organizações e clãs ciganos a “Declaração dos Direitos Ciganos” durante o
Conclave Continental dos Povos Ciganos das Américas em Quito, no
Equador, quando foi lembrada a preexistência de comunidades ciganas em
relação à conformação de muitas repúblicas atuais no continente
americano, sendo que a população cigana deve ultrapassar nas Américas a
cifra de três milhões de pessoas, exigindo o reconhecimento dos Estados e
Governos dos seus direitos coletivos. Dentre os inúmeros itens
importantes deste documento vale a pena ressaltar aqui um deles: “3 –
Defender, recuperar e valorizar a história e as tradições étnicas do
nosso povo, assim como proteger os direitos patrimoniais
consuetudinários e o patrimônio cultural e intelectual do povo cigano”.
Apesar da inexistência de dados precisos acerca da população cigana
no território brasileiro, estimativas não oficiais sugerem que existam
de 500 mil a um milhão de ciganos no país, dos quais a grande maioria
estaria em situação de miserabilidade, pobreza e exclusão social
(Moonen, 2013). Estima-se que o estado de Minas Gerais abriga o maior
número de ciganos no país.
Aqui no Brasil, o necessário e legítimo Projeto de Lei denominado
“Estatuto dos Povos Ciganos”, sob patrocínio do senador Paulo Paim (PT),
que está tramitando no Congresso Nacional, – já deveria ter sido
aprovado -, vem se somar a uma série de iniciativas que visam buscar a
dignidade e visibilidade dos povos ciganos e o entendimento de suas
peculiares demandas com relação ao acesso e o usufruto de territórios,
que pode ser de forma itinerante ou fixa, além de medidas adotadas, a
partir de 2013, pelas Secretarias Especiais de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) e dos Direitos Humanos (SEDH) por parte do
governo federal. Tudo isso por luta e pressão das comunidades ciganas.
Em Belo Horizonte, durante o Maio Cigano, de 2018, realizado dia 30
de maio, organizado pelo Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva
(CEDEFES) em parceria com a Comissão Pastoral da TERRA (CPT) no último
mês, que contou também com a presença do Procurador Dr. Edmundo Antônio
Dias Netto, da Procuradoria da República – Ministério Público Federal
(MPF) e da antropóloga Beatriz Aciolly, da Procuradoria da República em
Minas Gerais (MPF), as lideranças ciganas reafirmaram as discriminações
que os povos ciganos têm sofrido por parte do poder público municipal,
inclusive, mencionando situações de outros acampamentos ciganos da
Região Metropolitana de Belo Horizonte e do restante do estado de Minas
de Minas Gerais.
Segundo a liderança cigana Valdinalva Caldas, do Acampamento Cigano
de São Pedro, em Ibirité/MG: “Na cidade há lugar para deixar o lixo…,
mas não arrumam um lugar para nós ciganos…” Itamar Soares, também líder
cigano, reforça ainda: “Estamos, SIM, sendo encurralados… O cerco está
se fechando para o povo cigano…”.
Os relatos de integrantes dos povos ciganos tradicionalmente ágrafos
(sem escrita) deveriam ser muito bem considerados por todos e refletidos
em busca de ações afirmativas no combate ao racismo, à pobreza e à
desigualdade. De fato, parafraseando Teixeira (2008), a “SOBREVIVÊNCIA”
foi, sem dúvida, a realização mais duradoura e o grande evento da
história das etnias ciganas.
Entretanto, a resistência continua e os povos ciganos estão se
organizando e contando com uma crescente rede de apoio: Ministério
Público Federal (MPF), Defensorias Pública Estadual (DPE) e da União
(DPU), CEDEFES, CPT, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas
(MLB), DEUMIH (Dra. Carine Silva), professoras/res de várias faculdades,
universidades e muitas outras forças vivas. A Comunidade Cigana do
bairro São Gabriel, em Belo Horizonte, por exemplo, já conquistou a
Concessão de Uso do Território em que está instalada a Comunidade,
garantindo-se, assim, a segurança de sua posse coletiva sobre a terra
onde se instalaram. Dia 08 de junho de 2018, a Comunidade Cigana de São
Pedro, em Ibirité, MG, onde existem mais de 80 famílias ciganas,
conquistou, por meio da Defensoria Pública de Minas Gerais da área de
Direitos Humanos (defensoras públicas Cleide Nepomuceno e Ana Cláudia da
Silva, e o defensor Aylton Magalhães), a suspensão da Liminar de
Reintegração de Posse que exigia a expulsão de doze famílias da área que
ocupam há mais de sete anos (decisão tomada em plantão pelo
Desembargador Audebert Delage nos autos de agravo de instrumento número
1.0000.18.059043-2/001). A luta pelos direitos dos povos ciganos
continua e se fortalece. Feliz quem reconhece as belezas milenares da
cultura cigana e se compromete na luta em defesa destes povos que
dignificam a plural cultura brasileira!
Debate no Maio Cigano em Belo Horizonte/MG, na sede do CEDEFES, dia
30/5/2018, com a presença de lideranças ciganas do Acampamento São
Pedro, em Ibirité, MG, e representantes de outros povos tradicionais,
como Merong Kamakã Mongoió, líder indígena da “Retomada” em Esmeraldas –
Minas Gerais.
Bibliografia Consultada
BAETA, A. O que comemorar no Dia Nacional do Cigano? Resistência e Luta na Região Metropolitana de BH. In: Racismo Ambiental em 22 de Maio de 2018. https://racismoambiental.net.br/2018/05/22/o-que-comemorar-no-dia-nacional-do-cigano-resistencia-e-luta-na-regiao-metropolitana-de-bh/
BAÇAN, L. P. Ciganos, os filhos do Vento. São Paulo: Ed. A Casa do Mago das Letras, 1999.
MOONEN, F. Anticiganismo – os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: 3ª Edição, 2011.
MOREIRA, G. L. Acampamento Cigano São Pedro: clamor dos ciganos por terra e direitos, em Ibirité, MG. Disponível em http://freigilvander.blogspot.com/2018/05/acampamento-cigano-sao-pedro-clamor-por.html
NIQUETTI, G. F. P. Segregação Racial e os Povos Ciganos. In: Anais do II Encontro da PIBDI Diversidade, 2013.
MILTON, Sybil. In Fitting Memory: The Art and Politics of Holocaust Memorials. Detroit: Wayne State University Press, 1992.
SIBAR, L. M. L. Alteridade e Resistência dos Ciganos no Brasil (Dissertação de Mestrado) UNESP, São Paulo, 2012.
TEIXEIRA, R. C. História dos Ciganos no Brasil. Núcleo de Estudos Ciganos-NEC. Recife, 2008.
Declaração dos Direitos Ciganos – SOS Cidadania / Equador, 2001. http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/declaracao.htm
Brasil Cigano- Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos / SEPPIR, Brasília, 2013.
file:///C:/Users/Frei%20Gilvander/Downloads/GuiaCiganoFinal.pdf
Ibirité, MG, 10 de junho de 2018.
Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.
Acampamento Cigano de São Pedro, em Ibirité/MG: A Voz da Mulher por respeito e direitos. 26/5/2018.
Acampamento Cigano São Pedro: clamor por terra e direitos, em Ibirité/MG. 25/5/2018.
[1] Holocaust Memorial Research Institute.
[1] Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado
Arqueologia/Antropologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG;
Historiadora e Membro do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira
da Silva – www.cedefes.org.br – : e-mail: alenicebaeta@yahoo.com.br
[1] Doutor em Educação pela FAE/UFMG; Mestre em Ciências Bíblicas;
Bacharel e Licenciado em Filosofia; Bacharel em Teologia; frei e padre
da Ordem dos Carmelitas; e Agente de Pastoral da CPT (Comissão Pastoral
da Terra – www.cptmg.org.br ); e-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br
[1] Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC, Advogado Popular da RENAP (Rede de Advogadas e Advogados Populares – www.renap.org.bor ) e Membro da MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – www.mlbbrasil.org) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG; e-mail: thalesdireitopopular@gmail.com
Vivas aos povos ciganos, sempre na resistência! Optchá ��
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