"No momento, predominam os violentos, mas eles passarão, pois das
trevas da injustiça está sendo gestada uma nova aurora, sob a inspiração
de Marielle Franco, Margarida Alves, Irmã Dorothy, Chico Mendes e milhares de outros/as lutadores/ras do povo. Enfim, justiça da Casa Grande não
é justiça, pois para ser justiça precisa ser a partir da ética e da
alteridade muitas vezes violentada. Preparemos um futuro justo, pois as
próximas gerações têm direito", escreve frei Gilvander Moreira,
padre da Ordem dos carmelitas, professor de “Direitos Humanos e
Movimentos Populares” em curso de pós-graduação do IDH, em Belo
Horizonte (MG), e assessor da Comissão Pastoral da Terra – CPT -, do
Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos – CEBI -, do Serviço de Animação
Bíblica - SAB - e da Via Campesina em Minas Gerais.
Eis o artigo.
A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
dia 7 de abril de 2018, é um acontecimento histórico diante do qual não
há espaço para omissão ou pretensa neutralidade. Quem não se posicionar
será arguido pela história como cúmplice. Mesmo sendo crítico da
política de conciliação de classes, da inclusão pelo consumo, da
manutenção da política econômica concentradora de riqueza e renda, sem
fazer as reformas de base e de outras contradições que Lula, o PT e Dilma
praticaram ao longo de 13 anos no governo federal (2013 a 2016), uno-me
a todas as pessoas que têm senso de justiça para discordar da
condenação e da prisão de Lula, sobretudo da prisão em
segunda instância, antes do trânsito em julgado, o que ameaça a
presunção de inocência e o direito à ampla defesa de toda pessoa.
Caso a barbárie que é o capitalismo não provoque um apocalipse final
para a humanidade e para grande parte de todas as espécies vivas, ao
estudar história, as futuras gerações perguntarão a nós, seus pais ou
avós: “O que estava acontecendo no Brasil quando o ex-presidente Lula
foi preso?” Se não tiverem sido cúmplices, os pais e avós terão que
dizer aos filhos/as e netas/os que o contexto
socio-econômico-político-cultural e religioso no qual se deu a prisão de Lula era de um país tremendamente desigual e há 518 anos reproduzindo relações sociais escravocratas do tipo Casa Grande versus senzala, dirão que se tratava da continuidade da colonização, agora sob a hipócrita argumentação de Estado Democrático de Direito.
Dirão que em 2018, no Brasil, quem estava sendo preso e injustiçado não era apenas o Lula, pois o Brasil
era uma sociedade capitalista não apenas exploradora da dignidade
humana, mas superexploradora da dignidade humana e, pior, devastadora de
todas as fontes de vida: envenenadora da mãe terra pelo uso
indiscriminado de agrotóxico na agricultura empresarial, a do agronegócio;
dizimadora das nascentes de água, dos córregos, rios e lençóis
freáticos; devastadora de todos os biomas, que estão sendo tratorados
para invadir os territórios das comunidades originárias e tradicionais –
indígenas, quilombolas e camponeses dos mais diversos matizes. O
capitalismo e os capitalistas, no Brasil – país que
deveria ser do povo brasileiro -, reproduzindo uma das maiores
concentrações fundiárias do mundo e, pior, crescente. Uma política
econômica inviabilizando a realização de uma reforma agrária popular e
deixando “a ver navios” 14 milhões de desempregados, com trabalho
intermitente análogo à situação de escravidão. Sem controle do tráfico de drogas, mais de 70 mil jovens sendo assassinados anualmente (700 mil em 10 anos).
Após o impeachment da presidenta Dilma, consumado em 31 de agosto de 2016, aconteceu sucessivamente um desmonte de direitos sociais das classes trabalhadora e camponesas, direitos conquistados à custa de muita organização e luta popular. Os direitos trabalhistas foram aniquilados por meio da chamada reforma trabalhista, que, na prática, foi aniquilamento da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT).
Cerca de 50% do orçamento do governo sendo sequestrado para reproduzir e
ampliar uma dívida pública que apenas em 2017 cresceu 14,3%,
ultrapassando 3,5 trilhões de reais e podendo chegar a 100% do PIB em 2022, dívida que já devia, segundo a Constituição de 1988, ter sido auditada e demonstrada como “as veias abertas do Brasil”. Direito à saúde e à educação indo para os ares por meio do congelamento
– melhor dizendo, amputação gradativa - de investimentos governamentais
nas áreas sociais por 20 anos. A maioria do poder judiciário
nitidamente demonstrando disparidade de tratamento ao lidar com crimes
de empresários e políticos, os que sustentam o status quo das desigualdades sociais, muitos sendo abonados pelo braço jurídico do Estado.
Pesquisas científicas nos informam que o agronegócio está fazendo
mais de 600 mil pessoas contraírem câncer a cada ano. Encarceramento de
massas, em presídios superlotados: mais de 700 mil presos quase todos
empobrecidos, negros e de periferia, entre os quais 40% são presos
preventivamente, sem terem sido julgados ainda. Vários ministros do Governo Federal golpista, mais de 200 deputados federais e dezenas de senadores arrolados em crimes de corrupção
sendo livrados das barras da justiça por meio de foro privilegiado,
algo nojento que coloca mais de 30 mil pessoas inatingíveis pela
justiça.
Ah! Os pais e avós não poderão esquecer que no Brasil,
em 2018, o povo brasileiro – 206 milhões de pessoas – estava
anestesiado pela imprensa midiática, grande latifúndio de poucas
famílias oligárquicas. Essa mídia com imenso poder econômico e
tecnológico disseminava a mentira, a criminalização dos movimentos
populares e de quem aguerridamente defendia os direitos humanos. A ideologia dominante imperava sempre invertendo as relações sociais: afirmando os oprimidos como opressores e apresentando os opressores como se fossem oprimidos.
Enfim, em uma sociedade capitalista com classes antagônicas, com uma
elite controlando o Estado – poderes executivo, legislativo, judiciário –
as terras, o capital financeiro e a mídia. Caso não tenham sido mortos
antes do tempo, os pais e avós das próximas gerações deverão ainda
dizer, por fidelidade à verdade, que vários políticos profissionais
sobre os quais existem fartas provas de crimes – malas de dinheiro,
áudios comprometedores etc. – continuam intocáveis e protegidos pelo
poder judiciário. Uns, embora com provas contundentes, não foram punidos
e nada recaíram sobre eles, mas outros, condenados sem provas. Nesse
meio, muitas decisões judiciais foram tomadas para fortalecer o status
quo capitalista, tal como o impeachment de Dilma Rousseff, sem prova de crime de responsabilidade. O congresso brasileiro destituiu Dilma como se no Brasil houvesse parlamentarismo por voto de desconfiança. Era apenas o começo de um golpe que se desdobrou na prisão de Lula e que seguirá até a classe trabalhadora e camponesa se rebelar massivamente.
Nesse contexto, para seguir fortalecendo o poderio da Casa Grande sobre as novas senzalas, tornou-se necessário, segundo a elite que comanda o Estado brasileiro, condenar sem prova e prender Lula. Cumpria-se, assim, justiça dos doutores da lei e de certos tipos de fariseus. Porém, o Evangelho de Mateus
alerta: “Se a justiça de vocês não superar a justiça dos doutores da
lei e dos fariseus, vocês não entrarão no reino dos céus” (Mateus 5,
20). Dom Angélico Sândalo, ao lado do Lula, poucas horas antes de ele se entregar para ser preso, pôs o dedo em uma das feridas: “No Brasil, a maior parte da imprensa está a serviço dos poderosos. Os pobres clamam por direitos e por respeito”.
Entretanto, a história demonstra que os vencedores não terão a última
palavra e serão varridos da história. Segundo o livro de I Reis 21, na Bíblia, o rei Acab e a primeira dama Jezabel, em meados do século IX antes da era cristã, para roubar as pequenas propriedades dos camponeses da época, tal como Nabot, tiveram que difamar, criminalizar, mentir e engendrar falso julgamento e até matar camponeses, como Nabot, um pequeno agricultor. Mas surgiu, possuído pela ira santa, o profeta Elias para desmascarar a violência
que tinha sido cometida. Os que mandaram prender e assassinar Jesus de
Nazaré comemoraram, mas, após três dias, a partir de uma mulher, Maria Madalena,
que muito amava Jesus, irradiou-se por todo o mundo a mensagem de
ressurreição do projeto de fraternidade, justiça e paz para todos e, e
entre todos e tudo. Não podemos nos curvar diante da injustiça. Assim
como há o direito de legítima defesa, também há o direito fundamental e o
dever à desobediência civil até que triunfe a construção de uma
sociedade justa, solidária, sem preconceitos, amorosa e sustentável
ecologicamente. No momento, predominam os violentos, mas eles passarão,
pois das trevas da injustiça está sendo gestada uma nova aurora, sob a
inspiração de Marielle Franco, Margarida Alves, Irmã Dorothy, Chico Mendes e milhares de outros/as lutadores/ras do povo. Enfim, justiça da Casa Grande
não é justiça, pois para ser justiça precisa ser a partir da ética e da
alteridade muitas vezes violentada. Preparemos um futuro justo, pois as
próximas gerações têm direito.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577810-justica-da-casa-grande-nao-e-justica
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