"Indiscutivelmente Gaudete et Exsultate é o documento do Papa
Francisco mais direto e convincente até agora, porque chega diretamente
ao coração do objetivo de seu pontificado de restaurar a centralidade da
graça no convite da Igreja", afirma Austen Ivereigh, jornalista e cientista político, autor da já clássica biografia do Papa Francisco, em artigo publicado por Crux, 09-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Austen Ivereigh participará do XVIII
Simpósio Internacional IHU A Virada Profética de Francisco.
Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, a ser realizado nos dias 21 a 24 de maio de 2018, em Porto Alegre, RS, Campus Unisinos.
Eis o artigo.
Quando um documento magisterial aparentemente inócuo é publicado em Roma – e um papa que nos chama à santidade
se enquadra nessa descrição mais do que a maioria – é sempre importante
perguntar: por que isso e por que agora? Quando você aplica a lente de
contexto, dois eventos recentes ajudam a responder a essa pergunta.
Um foi ontem: a Amoris laetitia – o ensino papal mais disputado desde as controvérsias da Humanae vitae de 1968 – celebrou silenciosamente seu segundo aniversário. Durante o fim de semana, alguns de seus famosos oponentes organizaram um evento em Roma para insistir que a Amoris laetitia é herética, enquanto um grupo de bispos na Lombardia se tornou o mais recente dentre as dezenas de dioceses a aceitá-la e implementá-la.
No coração da Amoris laetitia está uma
tentativa de mudar o foco da Igreja: afastando-se do foco na defesa da
verdade sobre o matrimônio no nível da cultura e da lei, e rumo à
ampliação do acesso à graça que permite que as pessoas vivam essa
verdade (se isso compromete o testemunho dessa verdade durante o
processo, como afirmam seus críticos, é uma questão em discussão).
Francisco acredita que a ênfase da Igreja na verdade e nos preceitos
morais, sem enfatizar a centralidade da graça, tornou o convite cristão
proibitivo, até mesmo ameaçador, e essa é uma das razões pelas quais
muitos pararam de dar ouvidos à Igreja
O parágrafo que melhor revelou a agenda da Amoris laetitia
foi o número 37: “Durante muito tempo pensamos que, com a simples
insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a
abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias,
consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas
vidas compartilhadas”, admoestou Francisco.
Na Evangelii gaudium, em 2013, o papa previu a dificuldade que alguns poderiam ter com esse redirecionamento, que o documento de Aparecida
dos bispos latino-americanos, em 2007, chamava de “conversão pastoral”.
Essa resistência, sugeriu ele, ecoava as batalhas da Igreja primitiva
em torno das antigas heresias do gnosticismo e do pelagianismo, no
coração das quais estava, precisamente, o papel da graça.
Para Francisco, na Gaudete et exsultate, a santidade significa ficar
cada vez mais preocupado diante de toda afronta à dignidade humana
E agora, tendo procurado abrir os canais da graça na Igreja, ele está
se voltando para as pessoas e convidando-as a se abrirem à graça
também.
Daí o segundo evento: algumas semanas atrás, a Congregação para a Doutrina da Fé emitiu um breve tratado “sobre certos aspectos da salvação cristã”. Embora o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Luis Ladaria, tenha falado do documento como uma contribuição aos debates em andamento desde a Dominus Iesus, de João Paulo II, em 2000, o primeiro parágrafo de Placuit Deo deixava claro que se tratava de aprofundar o ensino sobre a salvação “com referência particular aos ensinamentos do Papa Francisco”.
Seu tema também foi a graça e a forma como ela é excluída pelas versões contemporâneas das antigas heresias do gnosticismo e do pelagianismo, que Francisco, desde o início de seu pontificado, advertiu que infectam não apenas a cultura moderna, mas também a Igreja.
Tendo deixado que o documento da Congregação para a Doutrina da Fé
fizesse o levantamento de pesado teológico antes do documento de hoje, o
papa se voltou agora para nós em uma linguagem pastoral muito pessoal
para abraçar a oferta de santidade e evitar as heresias que parecem ser
santas, mas na realidade excluem a graça.
O que é singular na Gaudete et exsultate é como ela é tratada. Francisco
não apenas nos convida a uma relação pessoal com Cristo, mas também nos
mostra o caminho até lá – e inclui (como todos os bons mapas) os becos
sem saídas que, no início, parecem enganosamente promissores. Seu
objetivo, diz, é “fazer ressoar mais uma vez o chamado à santidade,
procurando encarná-la no contexto atual”.
O “chamado universal à santidade” é uma ideia antiga, que foi muito impulsionada pelo Concílio Vaticano II e incentivada nos papados desde então. São João Paulo II, na Novo millennio ineunte, números 30 e 31, pediu que a Igreja incluísse uma “pedagogia da santidade” acima de tudo na arte da oração.
Mas, embora ele tenha clareza de que a Igreja tem tudo o que
precisamos em nossa jornada para sermos santos, e até mesmo liste o menu
das ajudas para a viagem, Francisco está enviando um
convite direto a que pessoas abracem a santidade, em um tom que não é
apenas conhecido, mas também positivamente familiar.
(Isso aparece ainda mais fortemente nas traduções latinas, nas quais
ele emprega o vocativo singular informal “tu” em quase a metade de todos
os parágrafos – uma escolha linguística deliberada por parte do papa
que, naturalmente, se perde em inglês.)
Gaudete et exsultate identifica a estrada real – na verdade, a única
estrada – para a salvação, que é claramente marcada pelo próprio Jesus
nas Bem-aventuranças e em Mateus 25
E como a Placuit Deo lidou com todos os pontos específicos e as definições, o papa, na Gaudete et exsultate,
pode dar o passo incomum de alertar os católicos contra certos tipos de
mentalidades católicas que são um obstáculo para a salvação através de Jesus Cristo.
Embora vestidas com trajes católicos, as formas modernas de gnosticismo e pelagianismo, na prática, negam a Cristo
(à graça) qualquer envolvimento contínuo no processo de conversão e de
jornada rumo à santidade. Deus é reduzido a um distante provedor de
códigos morais, e a salvação é alcançada, com força própria, por parte
de um grupo de cristãos de elite iluminados ou detentores de força de
vontade.
É neopelagiano, por exemplo, falar sobre a graça,
mas depois confiná-la, na prática, a um dom único que vem de fora, na
forma, digamos, de uma doutrina clara ou do perdão àquele que se
arrependeu.
(A declaração anti-Amoris laetitia do sábado
é um exemplo disso. Ela afirma que o perdão se fundamenta “no propósito
do penitente de abandonar um modo de vida contrário aos mandamentos
divinos”, sugerindo que o primeiro é sempre condicional ao segundo.)
A visão sobre a graça na Evangelii gaudium, na Amoris laetitia e, acima de tudo, agora na Gaudete et exsultate, é muito diferente. Francisco
segue a firme visão agostiniana de que a graça é um dom interior
constantemente disponível para nós na oração humilde quando nós
inevitavelmente caímos e na qual Deus toma a iniciativa a fim de mudar
as pessoas.
“Quando alguns deles” – os neopelagianos – se dirigem aos frágeis,
dizendo-lhes que se pode tudo com a graça de Deus, basicamente costumam
transmitir a ideia de que tudo se pode com a vontade humana, como se
esta fosse algo puro, perfeito, onipotente, a que se acrescenta a
graça”, escreve Francisco na Gaudete et exsultate.
De fato, diz ele, citando Santo Agostinho, as
fraquezas humanas não são curadas de uma vez por todas pela graça, e a
nossa santidade cresce em nossa humilde recepção da graça ao longo do
tempo, passo a passo, dentro das restrições das nossas circunstâncias e
forças.
Por outro lado, “a falta de um reconhecimento sincero, pesaroso e
orante dos nossos limites é que impede a graça de atuar melhor em nós”,
porque excluímos aquilo que achamos de que não precisamos.
A razão pela qual isso vai ao coração do programa do pontificado é que Deus salva a humanidade através da Encarnação – na realidade encarnada, concreta, humana – e não através de preceitos, leis e ideias complexas.
Francisco acredita que a ênfase da Igreja na verdade e nos preceitos morais,
sem enfatizar a centralidade da graça, tornou o convite cristão
proibitivo, até mesmo ameaçador, e essa é uma das razões pelas quais
muitos pararam de dar ouvidos à Igreja.
Esse foi um problema que seu antecessor viu. Em uma citação que Francisco, na Evangelii gaudium, diz que nunca se cansa de repetir e que reaparece na Placuit Deo, Bento XVI diz na Deus caritas est que,
“ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande
ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida
um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
O objetivo da Gaudete et exsultate é
mostrar que esse encontro é que salva. A graça está sempre disponível
àqueles que se voltam humildemente a Deus, vendo Sua misericórdia; e a
tarefa da Igreja é prover o acesso a essa Graça, removendo obstáculos
desnecessários.
Trata-se também de mostrar que a santidade envolve um voltar-se, e não um recuar, ao sofrimento, à pobreza e à necessidade.
Gaudete et exsultate identifica a estrada real – na verdade, a única estrada – para a salvação, que é claramente marcada pelo próprio Jesus nas Bem-aventuranças e em Mateus 25.
O primeiro são as atitudes, ou sinais, de santidade em nossas atitudes,
e o segundo são as maneiras pelas quais respondemos concretamente às
necessidades humanas.
Todas estas também dizem respeito à graça. As nossas ações
misericordiosas nos tornam mais receptivos à graça, e a graça nos torna
mais sensíveis à necessidade e misericordiosos em resposta a ela. Assim,
diz Francisco, a
autenticidade da nossa oração pode ser julgada pela forma como ela muda
a forma como agimos em relação aos pobres e como os vemos.
Por isso, um sinal de nossa santidade,
diz ele, é “saudável e permanente insatisfação” em relação às
injustiças do mundo. Ao invés de absolutizar uma área de preocupação
ética e rejeitar outros tipos de engajamento social como algo político –
ser fortemente antiaborto, digamos, mas considerar a preocupação com os
migrantes como algo de esquerdistas, exemplos que o próprio papa cita no documento –, santidade significa ficar cada vez mais preocupado diante de toda afronta à dignidade humana.
Gaudete et exsultate é notavelmente curta: ela tem 177 parágrafos, comparados com os 325 da Amoris laetitia.
Mas é indiscutivelmente seu documento mais direto e convincente até
agora, porque chega diretamente ao coração do objetivo de seu
pontificado de restaurar a centralidade da graça no convite da Igreja.
Por que isso, por que agora? Porque, depois de grandes esforços, não
sem oposição, para abrir as portas da Igreja à graça, chegou a hora de
convidar as pessoas a atravessá-las e de tranquilizá-las no sentido de
que elas não precisam do próprio conhecimento ou da própria força para a
jornada, mas apenas da fé na ajuda de Deus.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/577829-documento-papal-sobre-santidade-por-que-agora-dois-eventos-servem-de-resposta
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