A Igreja precisa rever suas origens para eliminar o lastro de machismo para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a Igreja de Madalena, mais que a de Paulo, menos autoritária e masculina.
Cena do filme em cartaz, com o batizado de Maria Madalenna.
O recém-estreado filme Maria Madalena, de Garth Davis,
mesmo prescindindo do seu valor cinematográfico, serviu para recordar
que a Igreja Católica continua mantendo o segredo sobre a figura da
mulher mais citada nos evangelhos, mais inclusive que a mãe de Jesus.
Foram necessários 1.400 anos para que Roma acabasse aceitando que Maria
Madalena não foi nem prostituta nem endemoniada. E se tivesse sido a mulher de Jesus?
E se não tivesse sido nem sequer judia, e sim seguidora da filosofia
gnóstica? E se tivesse sido a fundadora do primeiro cristianismo? O medo
da Igreja de ressuscitar a identidade e importância de Madalena em sua
fundação é compreensível, já que isso significaria revisar a história
desde a suas origens, assim como a teologia da sexualidade e o papel da mulher na hierarquia do catolicismo, onde continua relegada a um segundo plano. Teria algum sentido o celibato obrigatório se até Jesus era casado?
É
compreensível o susto que a Igreja levou quando, em 1945, foram
descobertos em Nag Hammadi, no Egito, um punhado de manuscritos de
evangelhos gnósticos do século IV que tinham desaparecido porque a
Igreja os destruíra ao considerá-los apócrifos. Neles fica clara, por
exemplo, a estreita relação sentimental e espiritual entre Jesus e
Madalena. Tão íntima que incomodava os apóstolos homens. Pedro chega a
se zangar e pergunta ao mestre por que lhes oculta “segredos que só a
ela revela”. E sentencia: “Que Maria saia de entre nós, porque as
mulheres não são dignas da vida”.
Aqueles manuscritos gnósticos impressionaram tanto o psicanalista Carl Jung
que ele se empenhou até conseguir comprar um deles. Que Jesus e
Madalena fossem conhecedores das doutrinas gnósticas e as discutissem
entre si é algo revelado num desses manuscritos, quando se diz que Jesus
“a beijava na boca”. Não se tratava, entretanto, só de um gesto de
afeto. Beijar-se na boca era, para os gnósticos, a forma de transmitir
sabedoria.
Hoje sabemos que na aurora do cristianismo houve o choque
entre duas teologias, a dos gnósticos, protagonizada pelo grupo de Maria
Madalena, e a do apóstolo forasteiro, Paulo de Tarso. Na teologia
gnóstica não se fazia distinção hierárquica entre homem e mulher, e se
ensinava que o mal não é fruto do pecado original, como continua
defendendo a Igreja de hoje, mas sim da ignorância. O que salva para os gnósticos é a sabedoria.
O medo da Igreja de ressuscitar a identidade e importância de Madalena
em sua fundação é compreensível, já que isso significaria revisar a
história desde a suas origens
Se tivesse triunfado a corrente gnóstica, que apoiavam não
poucos dos primeiros bispos, a Igreja hoje seria totalmente diferente,
já que nela a mulher teria o papel fundamental que teve no primeiro
século depois da morte de Jesus. A teologia misógina de Paulo e a contaminação com o poder romano fizeram com que a mulher acabasse marginalizada dentro do cristianismo.
Não é preciso, entretanto, ir aos evangelhos gnósticos para
demonstrar a liderança de Madalena já durante a vida de Jesus e depois
da sua morte. Basta uma análise hermenêutica dos quatro evangelhos
oficiais da Igreja para constatar como Jesus, contra toda a tradição
judia, tinha escolhido uma mulher como a depositária da sua mensagem.
Madalena aparece, de fato, nos quatro evangelhos canônicos como sua
confidente, e ela está consciente da sua relação especial com o profeta.
O momento-chave que revela a importância de Madalena para Jesus é o da cena da crucificação e ressurreição.
É narrada pelos quatro evangelistas, mas o que oferece detalhes que só
ela podia conhecer é o Evangelho de João, considerado, curiosamente, o
mais gnóstico e do qual se chegou a pensar que poderia ter sido escrito
por Madalena.
Aparecem nesse quarto evangelho, por exemplo, detalhes como
que Maria Madalena foi ao local da crucificação “na alvorada” e que
“ainda estava escuro”. “Jesus”, chama ela, demonstrando intimidade, e o
abraça e o chama pelo nome carinhoso de Rabbuni, que em hebraico quer
dizer “meu bom mestre”. Jesus aparece a ela antes que aos apóstolos
homens e antes que à sua própria mãe. Tomás de Aquino,
doutor da Igreja, torturava-se por não entender que Jesus aparecesse a
Madalena, uma mulher, e não a Pedro, considerado o cabeça dos apóstolos.
Ainda mais que na época as mulheres não eram nem levadas em conta nos
processos judiciais.
Lembro que o Nobel de Literatura, ateu, José Saramago, depois da leitura do meu livro Madalena: o Último Tabu do Cristianismo, traduzido no Brasil pela editora Objetiva, comentou com sua mulher, Pilar,
que o aparecimento de Jesus a Madalena antes que a qualquer outra
pessoa era a prova de que ela era sua mulher. “Se eu, depois de morrer,
pudesse ressuscitar, é evidente que apareceria para você antes do que
para qualquer um”, disse-lhe, meio de brincadeira, meio sério.
A Igreja, como em parte está fazendo o papa Francisco, precisa rever
suas origens para eliminar o lastro de machismo com o qual foi
contaminada, para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a Igreja de
Madalena
A Igreja, como em parte está fazendo o papa Francisco,
precisa rever suas origens para eliminar o lastro de machismo com o
qual foi contaminada, para voltar a ser o que foi em seus primórdios: a
Igreja de Madalena, mais que a de Paulo, menos autoritária e masculina,
em que a mulher tinha um papel institucional do qual foi sendo despojada
até que se transformasse numa Igreja de homens com medo da mulher.
Os gnósticos, mais que a teologia de Paulo, do pecado e da cruz, davam grande importância ao conhecimento intuitivo e à poesia, à força da sabedoria. Uma força poética que pode ser apreciada no lindo poema que aparece no livro gnóstico O Trovão: a Mente Perfeita, que curiosamente evoca o começo do evangelho de João:
Porque sou a primeira e a última
Eu sou a honrada e a rejeitada.
Eu sou a prostituta e a sagrada.
Eu sou a esposa e a virgem. [...]
Eu sou a estéril,
e muitos são os filhos dela. [...]
Sou o silêncio que é incompreensível. [...]
Sou a pronúncia do meu nome.
Em seguida a Igreja acabou adquirindo o medo da sexualidade,
o desprezo pela mulher, o pecado, a cruz e o inferno. Quando visitei
pela primeira vez em Roma algumas catacumbas cristãs, me chocou observar
que nas primeiras pinturas que conhecemos do cristianismo primitivo, do
final do século II, não aparece nem uma vez Jesus crucificado. O
cristianismo de Madalena não gostava do símbolo da cruz. As figuras
representavam Jesus como o bom pastor ou jantando com seus apóstolos. Em
algumas figuras, mostradas apenas a especialistas bíblicos, já aparecem
mulheres vestidas de bispas.
Aquela igreja da alegria, da fraternidade, da ternura, do
perdão e da esperança, sem distinção entre homens e mulheres, pobres e
ricos, ainda está à espera de uma nova ressurreição cristã. O papa
Francisco acaba de chamar Madalena de “a apóstolo dos apóstolos”. Será o primeiro gesto de reconhecimento do primeiro cristianismo feminino?
Diusponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/politica/1522100322_287998.html
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