A pesquisadora Letícia precisa importar livros da França para terminar
seu doutorado em psicologia, pois não existem traduções das obras para o
português. Mas ela conta que nos últimos meses teve preocupações mais
urgentes e básicas: como conseguir comida?
Já Angélica Samer, doutoranda em biologia, está evitando ir à
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde estuda, para
economizar R$ 16 da passagem de ônibus.
Elas estão entre os 7 mil
bolsistas de iniciação científica e pós-graduação da Fapemig (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais). Recebem R$ 2,2 mil
mensais para produzir suas pesquisas, mas os constantes atrasos de
pagamento do auxílio estão criando dificuldades que elas não imaginavam
passar nessa fase da vida acadêmica.
"Em fevereiro a fome bateu, cara. Passei fome, sim. Olhei o
armário e não tinha carne, não tinha arroz, farinha", conta Letícia, de
40 anos. A seu pedido, seu nome verdadeiro foi trocado nesta reportagem
pois ela teme sofrer represálias.
A acadêmica começou a receber o
auxílio da Fapemig em 2016, quando iniciou o doutorado em psicologia na
UFMG. Ela e outros estudantes de universidades públicas de Minas contam
histórias semelhantes: até meados de 2016, as bolsas de iniciação
científica, mestrado e doutorado eram pagas em dia.
Então elas
começaram a chegar poucos dias após o prazo - a data oficial de
pagamento chegou a ser postergada para evitar atrasos. A partir de
outubro do ano passado, a situação piorou: as bolsas passaram a atrasar
por mais de um mês.
As de janeiro de 2018 só foram pagas em meados
de março e os auxílios de fevereiro ainda não caíram. Após o contato da
reportagem, na sexta-feira, a Fapemig afirmou que a verba começará a
ser paga nos próximos dias.
Essas bolsas são do tipo "dedicação exclusiva". Para consegui-la, o
estudante assina um contrato se comprometendo a não ter outra atividade
remunerada que não seja a pesquisa - ele deve dedicar 40 horas por
semanas à academia.
Caso descumpra e consiga um trabalho, por
exemplo, o bolsista perde automaticamente o benefício e pode ter de
devolver toda a verba que recebeu, por meio de processo. Ele também
precisa publicar artigos acadêmicos em revistas científicas e participar
de congressos.
Letícia é um desses casos. Não pode trabalhar até
terminar seu doutorado. O problema é que a bolsa tem atrasado cada vez
mais - ela parou de comprar os livros de que precisa. "Sou uma pessoa
pobre. Tenho de comprar comida, pagar aluguel, comprar os livros. Como
vou fazer isso se a bolsa não é paga?", diz ela, que se mudou para Belo
Horizonte para trilhar carreira acadêmica.
Sem o pagamento, as contas se acumularam e o cheque especial passou a cobrar os juros.
Em
fevereiro, quando viu seu armário vazio e a conta bancária negativa,
ela pediu ajuda a colegas. Pesquisadores de outras universidades
arrecadaram dinheiro e alimentos para ajudá-la . "A Fapemig diz que você
não pode trabalhar, que precisa se dedicar, escrever artigos. Mas não
te paga a bolsa. Eles são muito rígidos em tudo, menos em pagar o nosso
dinheiro", conta.
'Tinha o sonho de ser cientista'
Também
doutoranda na UFMG, a bióloga Angélica Samer, de 26 anos, estuda a
incidência de dengue e zika em Minas Gerais, mas não consegue ir à
universidade por falta de dinheiro - também desistiu das aulas de inglês
e do plano de saúde. Os constantes atrasos da bolsa desanimaram a
estudante.
"Sempre tive o sonho de ser uma cientista: fiz
graduação, mestrado e, agora, doutorado. Mas o que faço agora? Estou
perdida. Me sinto qualificada para trabalhar, mas não posso por causa da
bolsa", diz.
Ela cita o cientista britânico Stephen Hawking, que morreu na semana
passada. "As pessoas ficaram comovidas com a morte dele. Infelizmente,
elas não sabem das dificuldades que os pesquisadores brasileiros passam
para produzir ciência."
Renata (nome fictício), doutoranda em
agronomia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), tem sentimento
parecido. "Não desisto porque quero muito terminar, mas me sinto
completamente desestimulada. Eu poderia ganhar muito mais atuando no
mercado", diz ela.
A agrônoma conta que, durante sua pesquisa de
campo, acabou sem dinheiro para coletar o material que precisava para
finalizar seu estudo. Ela também evita se deslocar à universidade, a 23
km de sua casa. "É humilhante você estar no doutorado e ter de pedir
dinheiro a sua mãe para comprar produtos básicos de higiene", conta
Renata, de 30 anos. Ela tem uma filha de um ano e quatro meses.
Estudante
de geografia, Gustavo também tem dificuldades para se manter no campus
da UFU em Ituiutaba, no interior de Minas, cidade para onde ele se mudou
por causa da graduação. Ele recebe uma bolsa de R$ 400 para realizar
uma pesquisa de iniciação científica - usa parte do dinheiro para pagar o
aluguel.
"Sonho em fazer mestrado e doutorado, mas já na
graduação enfrento essas dificuldades. É muito frustrante. Quando eu me
formar, talvez eu vá trabalhar no mercado", diz.
Crise financeira
A Fapemig é
mantida pelo Estado de Minas Gerais, hoje governado pelo petista
Fernando Pimentel. A fundação foi criada há 32 anos para apoiar
"projetos de natureza científica, tecnológica e de inovação considerados
estratégicos para o desenvolvimento do Estado", diz a descrição em seu
site.
Segundo a fundação, as bolsas de iniciação científica,
mestrado e doutorado custaram R$ 58,6 milhões aos cofres públicos em
2017, apesar dos atrasos. O orçamento total do órgão foi de R$ 295
milhões.
A instituição diz que sua verba é passada pelo governo estadual, que "está em crise financeira."
"A
Fapemig tem como prioridade manter em dia o pagamento das bolsas
concedidas pela Fundação. A direção da Fapemig tem efetuado diversas
ações junto ao tesouro estadual, fonte dos recursos para pagamento das
bolsas, a fim de assegurar esse pagamento", afirmou a instituição, em
nota.
Membro Associação Nacional de Pós-Graduandos, Laís Moreira
faz uma crítica à forma como os governos estaduais e federal tratam a
produção científica no Brasil. Ela aponta, por exemplo, o fato de o
presidente Michel Temer (PMDB) ter fundido o antigo Ministério da
Ciência e Tecnologia com o de Comunicações, em 2016, e, no ano seguinte,
anunciado um corte de verbas na pasta.
"A desvalorização da
pós-graduação ocorre no Brasil inteiro. Nossa luta não é corporativista,
a bolsa não é um salário. Não existe saída para a crise por meio de
desenvolvimento econômico e inovação sem passar pela pós-graduação ",
diz Laís.
Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43408852?ocid=socialflow_facebook
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