Do Agência Patricia Galvão
Na madrugada de 27 de janeiro a violência bateu mais um recorde no
Ceará. Quatorze pessoas morreram e outras ficaram feridas em um ataque
homicida que durou 10 minutos, com tiros disparados a esmo em um salão
de forró na periferia de Fortaleza. Por suas proporções, a Chacina de
Cajazeiras tem ocupado as páginas dos jornais locais e provocou a
atenção da mídia nacional e internacional.
Enquanto o governo do estado e o governo federal discutem de quem é a
responsabilidade pelo crescimento do crime organizado, pesquisadores e
especialistas procuram enquadrar a chacina no conjunto de explicações
para a escalada de violência que vem se espalhando pelo estado. A
expansão das facções criminosas, a alteração no mapa da circulação de
drogas no estado e na região e mudanças no perfil da composição das
facções são alguns dos fatores utilizados para explicar o crescimento da
violência sem precedentes.
Mas a Chacina de Cajazeiras tem uma
característica que é diferencial: entre as 14 vítimas fatais estão oito
mulheres. Há outras quatro entre as vítimas feridas. São mulheres
jovens, com idades entre 15 e 38 anos, pobres e moradoras de bairro
periférico. Nada indica que estariam envolvidas com o crime organizado.
Também
não há indicativos de que este tenha sido um crime baseado no gênero.
Se fosse um crime com motivação de gênero, então as mortes poderiam ser
classificadas como feminicídios por menosprezo e discriminação pela
condição do sexo feminino. Mas o fato de não haver motivação de gênero
não torna esses crimes menos graves e nem diminui a responsabilidade do
Estado em agir com a devida diligência e reparar direitos para as
vítimas indiretas – por exemplo, filhos e filhas sobreviventes desse
crime.
Apesar dessa característica, as explicações correntes entre
especialistas em criminalidade e segurança pública indicam que a
chacina se encaixa no padrão da violência que mata jovens negros do sexo
masculino. Feito esse encaixe, as análises podem seguir os rumos
conhecidos das críticas às políticas de segurança pública e aos
problemas decorrentes da criminalização das drogas. Críticas com as
quais concordo, mas que não oferecem novos ângulos sobre o problema e
não incluem as mulheres nessa análise. Consequentemente, as vítimas
mulheres permanecem invisibilizadas.
Da parte do movimento de
mulheres é triste ver que a comoção que temos a cada mulher morta pelas
mãos dos parceiros afetivos não é estendida às mulheres mortas pela
criminalidade ‘comum’. No movimento que grita por ‘nenhuma a menos’, o
silêncio sobre as mulheres mortas em Cajazeiras é sufocante e mostra
como nossas reações são seletivas também. Estamos tão capturadas por um
discurso homogeneizador sobre a violência contra as mulheres, baseado em
um ‘essencialismo’ que explica a condição de gênero ‘pelo fato de serem
mulheres’, que nos tornamos insensíveis aos crimes que ocorrem nas
bordas externas das fórmulas padronizadas que descrevem a desigualdade
de gênero.
O mais preocupante é que este diferencial na Chacina de
Cajazeiras não é fato isolado. Em 2017 os homicídios bateram recorde no
Ceará, com 5.134 mortes. Um aumento de 50% em relação a 2016. No mesmo
período a violência contra as mulheres também cresceu e chegou a 349
mortes, com crescimento de 71% em relação a 2016. Sessenta vítimas eram
meninas e adolescentes. Sabemos pouco sobre essas mulheres ou as
circunstâncias de suas mortes, mas quando falamos sobre o aumento da
violência contra as mulheres apenas cobramos as autoridades no
enfrentamento da violência doméstica e familiar e não nos sensibilizamos
para pensar que as marcas de gênero estão presentes também no movimento
da criminalidade. Mais uma vez as mulheres e meninas que morrem nesses
contextos permanecem invisibilizadas.
Lendo sobre a Chacina de
Cajazeiras penso na tese de doutorado da pesquisadora Ana Paula Portella
– “Como morre uma mulher? Configurações da violência letal contra
mulheres em Pernambuco” (UFPE, 2014)–, que analisa e descreve esses
movimentos e nos provoca com a necessidade de refletir sobre essa
invisibilidade, deslocando nosso olhar para as brechas entre os estudos
sobre crime e violência e aqueles sobre violência contra as mulheres e
gênero, com coragem para revisar nossos referenciais teóricos e
reconstruir nossas análises trazendo novas contribuições a ambos os
campos de estudos e das políticas públicas.
A socióloga Wânia Pasinato
ARQUIVO PESSOAL
Disponível em: https://www.geledes.org.br/chacina-de-cajazeiras-e-o-silencio-sobre-morte-violenta-de-mulheres-por-wania-pasinato/
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