“Quanto mais baixo na escala laboral, mais exposto à pasteurização do
seu sofrimento pelos novos regimes de produtividade”, avalia o
psicanalista e professor da Universidade de São Paulo.
"As narrativas de sofrimento têm a ver com decisões políticas de quem queremos reconhecer e como"
"Não mais o medo e a inveja, e sim o ódio e de
certa forma o ressentimento que se tornaram a moeda básica para se falar
nas diferentes gramáticas de sofrimento no Brasil." Essa é uma as
ponderações do psicanalista e professor da Universidade de São
Paulo Christian Dunker sobre o momento atual do país. Ele concedeu
entrevista à RBA e também abordou temas como a
infantilização dos comportamentos no debate público e a passividade de
parte da sociedade diante da retirada de direitos.
"A gente tem vergonha de ser enganado. De ter entrado
em uma 'conversinha' e depois perceber que em nome da redução da
corrupção, um princípio do qual ninguém diverge, fomos levados a
decisões altamente contrárias ao que as pessoas comuns pensam", avalia
Dunker.
Segundo ele, já tivemos um "neoliberalismo mitigado"
em outros períodos, mas a Era Temer inicia uma forma generalizada, onde o
chamado princípio geral não está mais em discussão. "E o princípio
geral é muito interessante porque podemos pensar o neoliberalismo como
uma gestão premeditada do sofrimento", afirma.
Confira abaixo a entrevista.
Queria começar pelo seu livro mais recente, Reinvenção da Intimidade - Políticas do Sofrimento Cotidiano,
que parte da premissa de que o sofrimento, embora vivido no sujeito,
requer e propaga uma política. Como podemos usar esse conceito para
ajudar a explicar, por exemplo, a situação política do Brasil hoje?
Esse trabalho dá continuidade a Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros,
onde tentei usar a noção de sofrimento para pensar um período mais
amplo de formação da subjetividade no Brasil, notadamente a partir do
pós-ditadura. Esse trabalho, Reinvenção da Intimidade, volta à
noção do sofrimento, uma noção dependente dos dispositivos de
reconhecimento, e aí contamos o Estado, aparelho jurídico, imprensa, até
o reconhecimento pela comunidade, e as formas discursivas do
reconhecimento. As narrativas de sofrimento têm a ver com decisões
políticas de quem queremos reconhecer e como, qual tipo de sofrimento
queremos dar visibilidade e qual queremos tornar invisível.
Acho que a questão fundamental desse novo livro é a
ideia de que há formas de sofrimento que geram uma transformação, de si
ou do outro, de si ou do mundo, e há formas de sofrimento que mantêm as
coisas como elas estão. Indo para uma questão mais específica, temos uma
mutação de afetos ligados ao sofrimento, não mais o medo e a inveja, e
sim o ódio e de certa forma o ressentimento que se tornaram a moeda
básica para se falar nas diferentes gramáticas de sofrimento no Brasil.
Quando você fala em duas formas de sofrimento, uma
que transforma e outra que contribui para a estagnação, como é possível
identificar uma e outra?
Vamos pensar na narrativa do romance. O romance
clássico é uma investigação sobre causas, partilhada, coletiva, entre
leitor, escritor e sua época, sobre qual é o regime de causalidade
vigente naquele processo transformativo. A identidade do mundo, da
pessoa, requer um trabalho para se manter, não é estática. Se você parar
de fazer isso o mundo desmonta, a gente desmonta também, e às vezes
acontece. Por exemplo, processos depressivos ou de pânico, angústia
estão marcados por eu não conseguir contar mais a minha história, ela
parece postiça, desatualizada, não chega mais no outro que quero que
reconheça essa história.
Histórias transformativas têm esse sabor de novidade,
tentam trazer uma certa consonância com uma interpretação do nosso
tempo, do tempo em que aquela forma de sofrer está se sucedendo. Não
posso dizer assim “isso está acontecendo porque Deus quis”. Isso é uma
narrativa um pouco antiga. Dessa maneira, se uma coisa acontece porque
Deus ou a natureza ou porque forças ocultas quiseram, qual a chance de
eu interferir nesse processo? Muito pouca. O que vou ter que fazer é
convocar uma narrativa que vai provocar em mim um processo de aceitação.
O que às vezes é muito importante, ter um ponto que estabelece
politicamente aquilo que a gente pode e quer aceitar.
Um sofrimento que desencadeia processos
transformativos é aquele que envolve um certo enigma em relação à
causalidade, não sabemos porque as coisas estão desse jeito, então
podemos propor novas versões de mundo e novas versões de nós mesmos. E
nesse processo inventamos outros mundos, outros nós mesmos e outras
formas de sofrer.
Esses sofrimentos, desse ponto de vista, se
relacionam com a nossa própria identidade e a forma com que partilhamos
isso. Como hoje, na sociedade brasileira, temos uma parcela da população
tão refratária a compartilhar sofrimentos de segmentos sociais como as
diversas minorias excluídas de direitos?
Temos uma coisa que [Jacques] Lacan chama de tempo
lógico. Em dados momentos percebemos nosso atraso. Como deveríamos ter
feitos coisas lá atrás e não fizemos, e agora a conta chega e chega
duplamente. Como uma atualização, mas também com o passivo que ficou
atrás. Por muito tempo fomos complacentes com retóricas como a de que o
negro ganhar menos não é uma fonte de sofrimento, tem motivos
históricos, sempre foi assim... Ou o fato de nos relacionarmos com o
sofrimento da mulher e dizer tem que ela tem que ficar quieta e calada,
se virar sozinha, aceitar certos modos de violência. Isso foi se
instituindo por tempo demais e agora temos uma espécie de onda retida
que vai dizer: “olha, precisamos ajustar as contas com isso”.
Vale também para o homem, com aquilo de que homem não
chora, é viril, lida com seus problemas sozinho, não admite pedir
ajuda... Isso é uma questão de saúde pública, os homens não procuram o
médico e aderem a um tratamento porque existe uma forma de sofrer
masculina que rejeita, por exemplo, o exame de próstata porque vai
ofender sua virilidade. Coisas ridículas que têm a ver com o atraso nas
modalidades de sofrimento ligadas à condição de raça e de gênero.
E temos ainda um passivo muito forte relacionado ao
sofrimento etário. A sensibilidade que temos com o sofrimento da criança
é muito curiosa no Brasil. Por um lado, somos super sensíveis, “em nome
da criança o Brasil vai se transformar, o berço esplêndido etc”, por
outro lado, objetivamente deixamos crianças em estado de sofrimento por
falta de alimentação, por falta de educação, por falta de cuidados
básicos. Esse discurso não transformativo sobre o sofrimento da criança
tem a ver com inações políticas. Portanto, precisamos escutar o
sofrimento de nossas crianças de maneira diferente, e temos que fazer o
mesmo com as pessoas da terceira idade.
O decisivo para o próximo ano, que vai ser agudo, é o
sofrimento de classe. As interpretações que temos sobre o sofrimento de
classe estão anacrônicas. O Brasil realmente se transformou, teve uma
mobilidade social muito intensa, depois uma regressão violentíssima e
estamos em um momento de anomia porque não sabemos o que fazer com o
sofrimento de classe. Quem melhor está capitaneando isso não são os
partidos, mas as religiões, que estão organizando de uma maneira – para o
bem e para o mal – a insuflar mais ódio ou mais temperança e
reconciliação em torno dessa mobilidade social que ainda foi
incompreendida no Brasil.
Você falou dessa questão dos sofrimentos distintos
e, em relação ao sofrimento da terceira idade, por exemplo, me remeteu a
uma novela da Globo em que a neta tratava mal os avós durante toda a
história. No final, seu pai a agride fisicamente em função disso e as
pessoas vibram. Ou seja, a situação é resolvida com violência. O
brasileiro está acostumado a enxergar a violência, de todos os tipos,
como solução de uma forma geral?
É uma solução prêt-à-porter, que está à mão, quando não sabemos qual a causa do problema, recorremos à violência.
O exemplo é ótimo. Primeiro, porque fala de como as
novelas no Brasil têm um papel fundamental na fixação de nossas
narrativas de sofrimento. Daí a importância, mesmo que a gente vá
criticar e ponderar, quando temos alguém com Síndrome de Down em uma
novela, ou um transgênero, ou a situação da terceira idade, porque isso
exemplifica o meu argumento de que a gente olha para aquilo e pensa:
“nossa, mas essa pessoa sofre, nunca tinha pensado nisso”. Enxerga o que
não se via antes.
Voltando para o ponto crucial, o que acontece quando
nossas narrativas de sofrimento ficam muito simplórias, do tipo
carrascos e vítimas? É a pulverização de nossas modalidades de
sofrimento como se conseguíssemos reconhecer apenas uma por vez, como se
fossem excludentes e concorrendo entre si. E o capitalismo por todos, o
universal devorando a todos.
Essa impossibilidade de a gente se reconciliar e
compor discursos comuns, não só narrativas, mas entroncamentos de
narrativas que se associam, se compõem, é urgente para definir o que vai
ser o Brasil depois de 2018.
Fizemos uma entrevista com o professor de Direito Constitucional Geraldo Prado
que disse, em alusão a alguns atores da Operação Lava-Jato, mas não só a
eles, que "na ficção infantil não existem resultados irreversíveis,
justamente porque é uma ficção; na vida como ela é, em que as
instituições funcionam, em que as pessoas atuam, em que uma decisão de
prisão vai ser cumprida e uma pessoa vai ser encarcerada, não existe
ressuscitar depois da morte como no jogo infantil."
Ou seja, um dia na prisão, que seja, é algo
irreversível e se torna uma mácula, como vimos no caso do reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier. Você vê
uma sociedade brasileira hoje infantilizada, como se as pessoas
encarassem às vezes a realidade como se fosse um filme ou videogame?
O exemplo da Lava-Jato é interessante porque acusa a
ridícula simplicidade, a mediocridade com a qual lemos problemas
complexos como a corrupção no país, a decadência da representatividade,
do registro político. Para lidar com cenários altamente complexos como
esses – e opacos, as pessoas não conseguem entender como funciona o
poder – recorre-se a narrativas do tipo tem mocinhos e bandidos. De que
lado você fica, petralhas ou coxinhas?
É incrível como essas narrativas simplificadoras
pegaram carona na linguagem digital, que agora compreende essa
participação massiva dessas pessoas que estavam excluídas, que não se
sentiam produtoras das narrativas de sofrimento, apenas reprodutoras, e
agora se sentem compartilhando. Quando há um número muito grande e muito
novo de pessoas e questões altamente complexas em que se você fala mais
de três parágrafos vira um “textão”, ninguém vai ler, se torna
invisível, vira um afunilamento para dicotomias, para um emburrecimento,
uma perda de qualidade discursiva que é o próximo desafio que temos
pela frente.
Uma pesquisa recente mostrou que havia uma
diferença grande no percentual de eleitores de Jair Bolsonaro entre
aqueles que tinham acesso à internet, onde ele obtinha maiores índices, e
os que não tinham. É possível inferir também que essas novas linguagens
amplificam um segmento que talvez seja menor do que se imagina ou que
as redes sociais, por exemplo, estimulam todo um discurso em torno do
ódio?
Estimulam, mas, diria assim, sem demonizar essa nova
linguagem, ressaltando que ela é nova, ensina a gente a tomar posição, a
amar, a pensar politicamente, ensina a gente a sofrer. A disputa pela
existência na rede, como lugar de reconhecimento acaba provocando uma
redução do conflito a posições muito simples onde todo mundo pode
reiniciar a conversa e se posicionar. Narrativas muito simples de
sofrimento historicamente tendem ao conservadorismo, à segregação, ao
preconceito, à simplificação dos processos de reconhecimento, narrativos
e de transitivismo.
Aqueles que não estão na rede estão divididos em dois
subgrupos. Os leitores clássicos, bem informados, e os antigos
excluídos, que estavam excluídos de toda informação, e aí o que vale são
as narrativas comunitárias, que em um certo sentido são mais complexas
do que a que temos nas redes, porque são capazes de manter um pouco mais
de estoicidade, de diversidade.
O neoliberalismo não só reduz as proteções mas descobre que pode criar premeditadamente sofrimento para aumentar a produtividade das pessoas
E no caso, por exemplo, dos haters
da internet, quando se defrontam pessoalmente com alguém que escolheram
odiar, muitas vezes não conseguem reproduzir o mesmo comportamento
praticado nas redes sociais. Isso não seria, talvez, não por simples
covardia, mas por ser muito mais fácil odiar um perfil ou um personagem
do que alguém de carne e osso, ali na sua frente?
É um fenômeno conhecido, uma relação inversa que a
gente tem entre a paranoia projetiva, de pegar um perfil, um
estereótipo, uma imagem, e depositar ali todos os nossos fantasmas. O
que não consigo admitir em mim, coloco nesse demônio, projeto nesse
outro que representa o grande mal. É o esquema, por exemplo, da
homofobia: não aguento minhas próprias fantasias homossexuais e começo a
inventar, projetar coisas naqueles que acho que são homossexuais.
Essa paranoia trivial, sistêmica, que vemos também
nas instituições, tem um tratamento que é simples, mas não operacional,
que é a pessoalidade. Você chega com aquele seu monstro criado em seu
condomínio privado e coloca para conversar com um petista real, um negro
real, um homossexual real e a pessoa vai dizer: “não, mas não é com
você que estou falando”. Inclusive muitos preconceituosos se defendem do
seu preconceito dizendo exatamente isso, “eu tenho uma empregada
doméstica, que adoro, e ela é negra, não posso ser racista”. Porque não
tem a ver com a relação pessoal, tem a ver com a forma como lidamos com o
outro impessoalmente.
“Ah, mas então é um mundo de ilusões.” É verdade, mas
são ilusões extremamente perigosas porque a partir de determinado
momento elas começam a tornar esse inimigo imaginário real. Se você
tratar um negro que você vê na rua de uma forma segregatória, mesmo que
em silêncio, em pequenos gestos, o que vai acontecer? Ele vai sentir
isso e começar a responder. De forma justa. Daí se fecha um ciclo de
projeção e reação à projeção que gera o caos que vivemos no momento.
E o silêncio em determinados momentos como quando
um coronel da PM de São Paulo diz que trata as pessoas de forma
diferente nos Jardins e na periferia, e as pessoas dos Jardins não se
manifestam em relação a algo que devem julgar como natural, quem mora da
periferia em um motivo concreto para odiar alguém dos Jardins...
Exato. Vai-se dualizando e segmentando nossas
relações de ódio projetivo ao ponto de no final voltar a uma situação de
solidão, de isolamento, de fragmentação, de perda de qualquer relação
de pessoalidade e intimidade com o outro. Isso é extremamente perigoso
do ponto de vista político, mas também do ponto de vista clínico. Depois
de um tempo há uma epidemia de depressão, de pânico, de sofrimento, por
exemplo, que se discute muito hoje na escola e nas universidades, com
índices crescentes de suicídio, de abandono de se estar dentro de uma
sala de aula. Por quê? Por onde está entrando o gás venenoso? É isso que
nos atinge a todos enquanto uma experiência de perda do comum, uma
experiência de, digamos, industrialização e operacionalização do
sofrimento.
O policial que diz isso está dizendo indiretamente:
com o sofrimento da periferia, lido de um jeito; com o do Jardins, de
outro. O cidadão da periferia vai dizer: esse cara dos Jardins é meu
inimigo, porque o meu sofrimento concorre com o dele, para onde vai a
polícia, o dinheiro, a proteção. Armou-se a guerra e depois vão ser
colhidos os frutos da administração dessas modalidades de sofrimento.
Dentro do seu conceito da lógica de condomínio que
impera no Brasil, ela retroalimenta a cultura de ódio das redes
sociais, uma fomenta a outra?
Nesse ponto faria uma revisão do meu livro anterior.
Esse trabalho no fundo é um estudo sobre a degradação, sobre a
ineficácia e inadequação da cultura do condomínio. Porque quando você
estava no condomínio, você acreditava no muro, o muro o defende, se tem
dinheiro, está tranquilo, tem suas câmeras, seus sistemas de
segurança... Agora, as pessoas do condomínio não estão tranquilas, seja
pelo universo virtual, pela convulsão que tomou conta das famílias, por
outras modalidades de identidade que estão em jogo nessa nova conversa,
que não é mais sobre quem está fora ou dentro do condomínio. O
condomínio se tornou uma estrutura arcaica, que não dá mais conta da
nossa realidade social.
Não adianta mais, com seu inimigo ou com aquele que
você projeta sua impotência e irrelevância, colocar um muro entre você e
ele. A coisa chega pelo ar, pela rua...
Essas diversas formas de violência física, simbólica, que temos hoje mostram a ineficácia dos muros.
Não dão conta, mas as pessoas constroem muros.
Estivemos em uma intervenção clínica em Belo Monte, com os refugiados da
construção da barragem, os ribeirinhos, e foi muito impactante. A
pessoa que sai de uma ilha, dentro do rio Xingu, que tinha um modo de
vida de coleta, de pesca, é desalojada brutalmente pelo Estado e vai
para um assentamento urbano e não sabe mais quem é seu vizinho da
frente. O que ela faz? Constrói um muro. Investe nesse negócio apesar de
ele não estar funcionando.
E o fato de não haver mais o sentido de comunidade piora essa situação.
Piora. Mas o sentido de comunidade pode ter uma
inflexão meio conservadora. Então qual é a solução? Vamos voltar à noção
de família, de bairro...
Se você não faz o luto pode cair na melancolia, na depressão, na indiferença, no “eu não quero mais saber”. O que é o nosso suicídio fundamental
E é nisso que as igrejas investem fortemente hoje.
E prosperam porque isso se mostra eficaz de alguma
maneira. Precisamos inclusive reinventar a interpretação do que é
religiosidade no Brasil. Não é mais o esquema clássico de religiões
afrodescendentes, espiritismo para a classe média, catolicismo com suas
diferentes variedades como ponto de unificação... Não funciona mais.
Entre outras coisas porque estamos às voltas com outro tipo de
comunidade, de comunitarismo, outro tipo de experiência do comum.
E, para contrabalançar o que tinha dito antes, aí a
linguagem digital é extremamente potente. Porque ela cria realmente
comunidades virtuais que têm efeitos reais nunca antes vistos. Só que
isso implica a gente pensar outra maneira de possuir coisas,
especialmente simbólicas, de partilhar essas mesmas coisas, que estão
sendo pesquisadas, inventadas, não apenas pelas religiões, mas também
por outras formas de estar junto.
Entrevistei há alguns anos o falecido psicanalista José Ângelo Gaiarsa
e ele dizia que por cinquenta dos, àquela altura, 82 anos dele, de 6 a 8
horas por dia só ouviu queixas familiares em seu consultório, falando
que a família era muito falada, mas muito mal cuidada. Hoje, com essas
novas tecnologias, o trabalho também não ocupa um lugar, se não
semelhante, próximo também como causador de sofrimento e males
psíquicos?
Temos uma hipótese com a qual estamos trabalhando há
dois, três anos no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise
da USP, de que há uma mutação de política de sofrimento ligada ao
neoliberalismo, pensando o neoliberalismo como um momento específico do
nosso modo de trabalhar, de gerir a produção e o consumo, que nasceu nos
anos 1970 e 1980 e está chegando e se estabelecendo mais amplamente no
Brasil agora. Já tivemos “namoros”, impasses, um neoliberalismo
mitigado, mas a Era Temer inicia um neoliberalismo generalizado, onde o
princípio geral não está mais em discussão.
E o princípio geral é muito interessante porque
podemos pensar o neoliberalismo como uma gestão premedita do sofrimento.
É o caso do Jack Welch,
10% dos funcionários de uma empresa vão ser demitidos. O que você cria
com isso? Medo. Sofrimento dentro do trabalho, porque com esse
sofrimento você faz as pessoas produzirem mais. Isso as leva para um
estado de impotência a longo prazo, mas a curto prazo faz tirarem de si
mais do que conseguiriam em estado normal de pressão e temperatura, em
um Estado de Bem Estar Social.
O sofrimento faz mal para o trabalho. O
neoliberalismo não só reduz as proteções mas descobre que pode criar
premeditadamente sofrimento para aumentar a produtividade das pessoas.
Isso tem a ver com trabalho intermitente, desregulamentado, inclusive
com ideais sociais de conseguir trabalhar e se engajar em profissões,
empresas, que tenham políticas alternativas para isso. Os nossos garotos
estão ponderando muito entre se querem trabalhar em um regime de
sofrimento gerenciado ou em um trabalho em que vão ganhar menos, mas
conseguir ter mais realização pessoal, falar, serem reconhecidos, e isso
está atingindo o neoliberalismo por dentro.
O sistema em que você faz a pessoa sofrer para
vinculá-la ao trabalho tem limites e se aplica melhor a quem está fora,
está excluído, despossuído, que no Brasil é o trabalhador de call center,
do Uber, em um segundo sentido, que é quem vai ser explorado ao máximo,
porque vai entregar sua força de trabalho, sua força de sofrimento, e
vai ser explorado até o fim e depois trocado por outro grupo de pessoas.
Quanto mais baixo você está na escala laboral, mais exposto vai ficar à
pasteurização do seu sofrimento pelos novos regimes de produtividade.
Isso é uma loucura, é autodestrutivo e gera aumento
de sofrimento sintomático, transtornos mentais e tudo o que Lacan chamou
e analisou a partir da ideia do “mais de gozar”, produzindo uma
civilização de adictos.
Tivemos a reforma trabalhista, antes a lei da
terceirização, uma série de direitos retirados ou ameaçados e a
discussão em torno de uma reforma da Previdência. Todas essas medidas
altamente rejeitadas pela população, como mostram as pesquisas, e vindas
de um governo, segundo os mesmos levantamentos, tido como o mais
impopular da história. Como explicar a passividade das pessoas diante
disso?
Boa pergunta. Vergonha. A gente tem vergonha de ser
enganado. De ter entrado em uma “conversinha” e depois perceber que em
nome da redução da corrupção, um princípio do qual ninguém diverge,
fomos levados a decisões altamente contrárias ao que as pessoas comuns
pensam.
O que acontece quando a gente é enganado? A gente
sente vergonha. E a vergonha é um afeto extremamente transformativo,
potente, muito mais potente que a culpa porque a culpa você faz a
penitência e pode pecar de novo. A vergonha paralisa. Inibe. Diz assim:
“não vou voltar mais lá, não quero saber desse assunto, não quero opinar
sobre esse ponto, não quero mais saber de política”... É o que está
acontecendo. Você entrega a coisa para a barbárie. Há um sentimento – e a
gente escuta isso no divã, na cultura – de uma coisa impronunciável. O
que a pessoa vai dizer? Vestiu a camisa da seleção, bateu panelas... E
não são idiotas. Não são pessoas de má-fé, mas estavam acreditando no
que estavam fazendo e no momento seguinte percebem que seu tio perdeu o
emprego, sua filha não tem mais educação, que não vai mais se aposentar,
e o que a pessoa vai dizer? “Ah, fui enganado, estou com vergonha
disso.”
Muito difícil, especialmente no Brasil praticar este
ato simbólico. A gente passa anos para tentar fazer uma pessoa aprender
isso, que é voltar atrás. “Olha, eu pensava de um jeito e agora penso de
outro, e sim, me deixei levar”. Você não é um idiota porque volta
atrás, porque pede desculpas, mas no Brasil inventamos esse jeito e a
vergonha, em vez de me reposicionar, fazer com que me reinvente, produz
inibição, silenciamento, passividade, faz com que as pessoas se retirem
da conversa e não que permaneçam com outra posição.
Isso vale tanto para a direita como para a esquerda, e
durante anos boa parte dela olhava para o que estava acontecendo e
dizia que não estava, mas vamos apoiar. Essa vergonha acumulada implica
em descrença, dificuldade de implicação...
E uma das piores atitudes, até do ponto de vista
psicanalítico provavelmente, é um outro chegar para essa pessoa,
envergonhada, apontar o dedo e dizer “eu não falei?”
Aí o que acontece é a realização da fantasia do
envergonhado. O outro está gozando da sua vergonha, daquilo que você
mesmo não faria de novo hoje. Como vai se fazer uma reconciliação sem
que isso seja tipicamente vivido como o Brasil faz, com o apagamento de
conflitos?
Para fazer as pazes vamos ter que negar o conflito e
aí não vai acontecer nada de novo, o que é um pouco a história do
Brasil, desde a redemocratização.
Quando conversamos anteriormente, em 2015, você
disse que parte dos fatores que explicava o início da crise política foi
o fato de não se fazer o luto da derrota. E uma das maneiras de não
fazer o trabalho do luto é suprimir os afetos, que resultaram nessa onda
de ódio. Depois do impeachment, você acha que isso pode se repetir em
2018?
Acho que essa hipótese é ainda mais pertinente, mas o
luto é de outro lado. A esquerda tem que fazer o luto. O luto de não
ter se posicionado, ter corroborado com certas coisas, estamos unidos
por uma espécie de perda dos dois lados que no fundo é a perda do
Brasil, do que tínhamos em mente, seja de um lado, seja de outro.
Freud descrevia o luto em três tempos. Primeiro, você
tem que admitir que perdeu. Segundo, é preciso pesquisar o que se foi
com a perda, o que foi embora com essa pessoa que me deixou, quais os
traços, experiências, memória. Depois desse trabalho, você vai
comprimindo, reduzindo a coisa, até que um pedacinho daquilo que foi
perdido se integra dentro de você. E então segue a vida com aquela
lembrança daquilo que você deixou para trás.
O que acontece quando a gente, primeiro, não admite
que perdeu, não se dá ao trabalho ao que chamamos na teoria social do
trabalho da crítica? Perdi porque não amei o suficiente, porque o outro
não me amou, perdi e vivo isso como culpa ou como vergonha. Quando não
fazemos isso, surgem respostas maníacas. “Opa, agora posso pular esse
processo doloroso e vou para o último capítulo, inventar um estado total
de felicidade, um início do zero, glorioso, eufórico.”
Esse é o perigo representado pelo populismo de
direita, conservador. Parece que a nossa tolerância com o Temer
imaginariamente tem a ver com isso. Mais um motivo para entender nossa
vergonha, era uma euforia com um negócio que era péssimo. Mas quando não
fazemos um luto, vem a mania. Esse é um quadro em que venceria alguém
que conseguisse capitalizar melhor a mania, mas acho que não vai vir.
Não teremos uma eleição maníaca, é mais possível que tenhamos uma
eleição depressiva, que é a segunda patologia do luto. Se você não faz o
luto pode cair na melancolia, na depressão, na indiferença, no “eu não
quero mais saber”. O que é o nosso suicídio fundamental, você e seu
amigo dizem isso, mas o pilantra vai dizer “vão embora, seus deprimidos,
porque vou continuar aqui empreitando o Estado a meu favor, fazendo o
que sempre fiz com menos gente enchendo a paciência”. Esse seria um
cenário péssimo, de desistência, mas que está de certa forma se
anunciando.
A saída mais interessante seria se conseguíssemos ter
um candidato que não é o novo, que é o maníaco, e que não é o velho,
que está na depressão e não saiu disso, mas alguém que fizesse uma
espécie de síntese das duas coisas. O que sobrou das nossas desilusões? O
que aprendemos com essa guerra? O que sobrou nas ruínas? Ninguém está
olhando pra isso, nossa política é esquecer a história e aí vamos
repetindo.
E o que tem nas ruínas, pra você?
Tem o “fora do condomínio”, as bicicletas, a
reocupação do espaço público... Esquecemos, mas tivemos a ocupação das
escolas. Que tal olhar para o ensino de qualidade, para fazer acontecer?
Tem o SUS, um projeto mundial, sem precedentes, uma aventura gigante do
Brasil. É algo que está nas ruínas. Se não levarmos os pedaços das
ruínas e reconstituirmos como um bom luto deve fazer, vamos ficar entre a
mania e a depressão.
Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/135/o-neoliberalismo-nao-so-reduz-as-protecoes-mas-cria-sofrimento-para-aumentar-produtividade
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