'Pela Janela' retrata a melancolia de quem dedicou parte da vida a uma empresa e descobre não ser nada além de força de trabalho.
Demitida após quase três décadas de serviço, a operária tenta assimilar o golpe
É uma trama simples, aparentemente, a de Pela Janela,
primeiro longa da cineasta Caroline Leone. O filme conta a história de
uma operária, perto dos 70 anos, que dedicou quase a metade da vida
trabalhando em uma fábrica de reatores.
Demitida após quase três décadas de serviço, ela tenta assimilar o
golpe, mas não evita o quadro depressivo que se desenha na sequência. É
quando, para tentar animá-la, o irmão a convida para viajar com ele até
Buenos Aires.
É um contraste e tanto com um outro filme que retratou, recentemente, a vida operária em São Paulo: Corpo Elétrico.
Na trama de Marcelo Caetano, os jovens que trabalham nas fábricas de
confecções da capital não são exatamente absorvidos pelo ofício; pelo
contrário, eles driblam o caráter opressivo de uma rotina robotizada
colocando os corpos numa espécie de experimentação dionisíaca, longe dos
centros de prestigio, mas também fora do alcance de julgamentos,
moralidades e aprisionamento a um plano de metas meramente formal. São,
antes de tudo, jovens querendo se jogar de cabeça em um mundo de
possibilidades que se abre nas franjas de uma rotina aparentemente sem
perspectiva. A postura libertária nas ruas e festas são quase uma bomba
antimonotonia dos quartos e repartições enxutos.
Em Pela Janela, a protagonista interpretada por Magali Biff
parece plenamente assimilada àquele trajeto sem cores. Não há vida
naqueles corpos além da força de trabalho. Naquela rotina robotizada,
que inclui as tarefas domésticas após o expediente, ela parece estar
protegida, de certa forma, à enxurrada de transformações do mundo
contemporâneo até que a empresa anuncia um processo de fusão a um outro
grupo. A fagocitose, destino comum do capital global, é o fim da linha
para ela.
Quando esta rotina se quebra, Rosália se depara com o vazio. Sem a
força de trabalho, torna-se improdutiva; é como morrer estando viva. Ela
experimenta, assim, o luto por algo que tem corpo e se perdeu.
Desorientada, é Rosália quem se prontifica a visitar a fábrica para
saber se “estão precisando de alguma ajuda”. A inversão de papeis não
precisa gritar na tela para apontar onde pesa o desamparo.
Em casa, descobrimos, então, que o parceiro com quem divide a mesa de
jantar não é o marido, mas seu irmão. Zé (Cacá Amaral) é o motorista de
uma família rica encarregado de levar o carrão para a filha dos patrões
na capital argentina. A ideia de levar a irmã na viagem só toma forma
quando o filho, abarrotado de trabalho, se nega a passar uns dias com a
tia.
Sem cair nas arapucas comuns dos filmes de denúncia social, o filme
desenha de maneira delicada a desarticulação dos tecidos sociais naquele
lado esquecido da história. O motorista que dirige o carro do patrão,
por exemplo, terá de voltar para casa de ônibus.
No banco do passageiro, é possível intuir que Rosália, pela primeira
vez, se permite se deixa levar por um caminho ainda a ser desbravado.
Nesse caminho, o irmão tem seus pontos de contato. Amizades, lugares
conhecidos, pequenos prazeres, como tocar violão.
No caminho, uma discussão aparentemente banal e inconclusiva entre os
irmãos sobre as plantações no estado do Paraná – aquilo tudo é milho?
ou é soja? – parece soar como reflexo de um mundo alheio, pelo qual se
atravessa mas não se tem acesso, conhecimento ou controle. O que
importa?
Um dos poucos momentos de interesse aparente de Rosália é quando ela
avalia o preço de um conjunto de panelas de ferro, vendidas a preços em
conta numa loja à beira da estrada. O irmão avisa que não é bom carregar
peso porque a volta será de ônibus. Na cena seguinte ela alisa o
utensilio, como quem acaba de promover uma rebelião.
Já na Argentina, Rosália, uma mãe sem filhos, demonstra dificuldade
para se comunicar com os novos (e temporários) vizinhos, mas se afeiçoa
com uma jovem mãe cujo companheiro está o tempo todo fora da cena. De
alguma forma elas parecem compartilhar um outro sistema de linguagem. A
alegoria é uma música popular nos dois países.
Nos pontos de intersecção entre culturas aparentemente estranhas
parece brotar um respiro de vitalidade. A diferença é que o movimento de
Rosalina é ao encontro do desconhecido, e não o contrário.
O que faremos na volta?, ela questiona o tempo todo. Nem ela nem o
público sabe se aquele movimento será a força-motriz para quebrar o
circuito da melancolia sobre qual todos estão de alguma forma
aprisionados.
Há um ponto de saída, porém, na janela que se apresenta ao público
pela tela: o espanto dela ao ver a força das cataratas da Foz do Iguaçu,
na tríplice fronteira. A câmera posicionada naquela passarela
aparentemente frágil lança o espectador como para dentro de um
redemoinho; dali ele não sairá sem se molhar até a alma.
Pela Janela I Trailer Oficial
https://www.youtube.com/watch?v=8ILOzEY7P2g
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cultura/descartada-do-jogo-a-classe-operaria-apos-aos-60-nao-vai-ao-paraiso
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