Desunida, sem um presidenciável competitivo e com o peso de Temer, a casa-grande tenta vender-se como centro.
O reacionário acima faz a velha direita comer poeira nas pesquisas, para aflição de Fernando Henrique Cardoso
O establishment
político e econômico, reino da velha direita brasileira, curtiu as
festas de fim de ano na boa vida, como em geral são os dias desses
endinheirados, mas começa 2018 ressabiado. Nenhum de seus cavalinhos no
páreo para concorrer à Presidência empolga a massa até agora, motivo de
umas caneladas entre uns e outros.
Geraldo Alckmin, Rodrigo Maia,
Henrique Meirelles, todos veem de binóculo o líder nas pesquisas, Lula.
Pior: comem poeira também do reacionário Jair Bolsonaro, grande
beneficiário do radicalismo cultivado pelo próprio establishment na
cruzada antipetista. Fruto dessa cruzada, o governo é outro abacaxi.
Detestado pelo povão, Michel Temer tornou-se uma erva daninha eleitoral.
Ficar perto dele é desastroso, mas como esconder as ligações?
Em maus bocados, a chamada
(erradamente) direita resolveu apelar para o humor. Não importam suas
credenciais históricas, seu currículo: agora quer ser chamada de
“centro”. É nesse traje que pretende se apresentar aos 144 milhões de
eleitores e convencê-los de ser a melhor escolha diante de uma dupla de
“extremistas”, Lula pela esquerda, Bolsonaro pela direita.
Plano digno das páginas de 1984,
do britânico George Orwell. “Só no reino do Grande Irmão as palavras
têm o significado oposto ao comum, mas o objetivo desta alteração é o de
enganar os destinatários da mensagem e, portanto, o de impossibilitar a
compreensão do que ocorre realmente e a comunicação recíproca entre os
súditos”, diz o livro Direita e Esquerda, clássico de 1994 do filósofo e historiador italiano Norberto Bobbio, já morto.
A exploração do centrismo, escreve Bobbio, costuma ser mais comum em tempos de crise. É o caso do establishment, vitorioso na chegada ao poder via impeachment e, após tanto esforço, arriscado a levar uma surra nas urnas.
O plano de partir para a
novilíngua orwelliana pode ser o passaporte para o segundo turno na
eleição. O centro representa hoje 20% do eleitorado, proporção igual à
da eleição de 2014, segundo uma pesquisa Datafolha de 2017.
O
levantamento apresentou a 2.771 entrevistados um questionário com
perguntas sobre economia e costumes, e as respostas foram catalogadas
conforme critérios do instituto. Por esses critérios, da última campanha
para cá, esquerda e centro-esquerda encorparam (de 35% para 41%),
enquanto direita e centro-direita encolheram (de 45% para 40%). Quando
se pediu às pessoas uma autodefinição ideológica, o resultado mudou. O
centro tem 26% de adeptos, a direita, 32%, e a esquerda, 28%.
O avanço do progressismo desde a
última eleição deve-se a assuntos econômicos. Se dependesse somente de
temas comportamentais, o conservadorismo deitava e rolava. A liberação da maconha é rejeitada por 66%, informa o Datafolha.
A do aborto, por 57%, mesmo
tamanho do apoio à pena de morte. De outro lado, 70% repudiam as
privatizações, 76% acham que o governo deve ser o maior responsável por
investir e fazer o PIB crescer, 63% defendem ajuda oficial a empresas
nacionais à beira da falência.
Estatísticas à parte, os
postulantes a presidenciável “centrista” estão em campo e na luta.
Alckmin assumiu o comando do PSDB no fim de 2017 para pavimentar sua
candidatura, mas entrou em 2018 sob pressão.
Sua situação nas pesquisas
aflige alguns tucanos e partidos governistas dispostos a negociar apoio.
Não alcança dois dígitos em nenhuma, apesar de administrar há anos o
maior colégio eleitoral do País, berço de 20% dos votantes. Aliados
potenciais cobram que chegue a 10% no máximo até abril.
Meirelles posa de bispo em igreja evangélica
(Pedro Ladeira/Folhapress)
Do contrário, adeus. Fernando Henrique Cardoso é um dos aflitos e trocou
alfinetadas públicas com Alckmin ao opinar que os cavalos do centro
(Meirelles, Marina Silva e Joaquim Barbosa seriam outros, para FHC) deveriam unir-se em uma única candidatura.
E nem precisa ser em torno de
Alckmin. “Se as forças não extremadas se engalfinharem para ver quem
entre vários será o novo líder e não forem capazes de criar consensos em
favor do País e do povo, o pior acontecerá.”
O governador tenta não mostrar
preocupação com números. Acha que o povo só vai pensar em eleição mais
para o meio do ano. Ele “recordou” a FHC de que foi por incentivo dele
que se tornou comandante do PSDB há pouco.
“O que o presidente Fernando
Henrique falou e eu concordo é que o Brasil está cansado de divisão e
nós precisamos ter união para retomar uma agenda de reformas,
competitividade e desenvolvimento”, disse numa entrevista. Eis a visão
de Alckmin sobre o papel do centro.
Parece sonhar em ser uma opção
ao menos palatável ao eleitor que pode ficar órfão de Lula, sobretudo os
mais pobres, daí ter criticado outro dia o laissez-faire, “porque é o grande comer o pequeno”. Mas será que seu corpinho cabe na roupagem centrista? Humm...
Para chefiar
seu programa econômico, Alckmin escolheu um banqueiro, Pérsio Arida, um
dos pais do Plano Real. O governador foi (é?) do Opus Dei, ala
reacionária do catolicismo. Perfeito seu apelido de “Santo” entre os
corruptores confessos da Odebrecht, não? Em 2013 e 2014, teve como
secretário particular um sujeito, Ricardo Salles, que elogiava a
ditadura e chamava a Comissão da Verdade de “comissão da vingança”.
Salles fundou o movimento
Endireita Brasil, aliás. Na segurança pública, Alckmin é adepto da
porrada. Nomeou secretários trogloditas, caso de Saulo de Castro Abreu, e
coleciona assassinatos por policiais em um patamar que a Anistia
Internacional considera “escandaloso”.
De janeiro e setembro de 2017,
foram 687 mortos, um recorde. A reforma da Previdência, intenção de
impor uma idade mínima à aposentadoria de brasileiros que trabalham
desde cedo para ajudar em casa, é defendida por ele. A trabalhista,
facilitadora do emprego precário e da redução da renda, um animado
Alckmin tachou de “histórica”.
No PSDB, o presidente da França, Emmanuel Macron,
costuma ser citado como muso inspirador do que seria um desejável
centro. FHC acha isso. Líder de um movimento de renovação política,
Macron é lobo direitista em pele de cordeiro centrista, igual a seus
admiradores daqui, se a comparação for possível.
Apesar de Macron, a França é
ainda um país democrático. Macron pareceu moderado na campanha somente
por ter enfrentado a fascista Marine Le Pen no turno final e precisar do
voto da esquerda. Um dia após assumir, em maio de 2017, pinçou seu
premier nas fileiras do partido da direita tradicional.
No mês seguinte, propôs uma lei
antiterrorismo a estabelecer quase um estado de sítio permanente,
situação adotada em caráter provisório depois dos ataques terroristas em
Paris em 2015. Em agosto, apresentou uma reforma trabalhista ainda mais
radical do que a do antecessor, o socialista François Hollande.
O tema trabalhista é um assunto
adorado por um competidor do “centro” brasileiro, o presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, do DEM. Para ele, a Justiça do Trabalho “não
deveria nem existir” e os direitos da finada CLT atrapalham os patrões. Opiniões compreensíveis.
O deputado é um amante do
“mercado”, essa entidade etérea a juntar bancos, fundos, corretoras, e
não se envergonha de declarar seu amor. “A agenda da Câmara é a do
‘mercado’”, disse uma vez. Começou a carreira privada em um banco, o
BMG, depois passou por outro, o Icatu.
Hoje reúne-se às vezes a portas
fechadas em instituições financeiras, caso do BTG. Em 2014, recebeu 600
mil reais em grana de banco para sua campanha, 25% de sua arrecadação
total.
O ano novo de “Botafogo”,
alcunha de Maia entre os subornadores da Odebrecht, anda a toda. Ele
distribui entrevistas e planeja viagens para os Estados Unidos e México
em um esforço para emplacar sua candidatura.
Em uma das entrevistas, ao Globo da
terça-feira 9, deu uma pista de como a velha direita, ôps!, o
“neocentro” pretende distinguir-se de Bolsonaro. Este, afirmou, teria
“um discurso mais radicalizado na questão dos valores e da segurança”.
Ou seja, nada de defender posições xenófobas,
racistas ou machistas. Não seria fácil buscar distinguir-se do capitão
do Exército em matéria econômica agora que Bolsonaro deu para beber da
fonte do sistema financeiro.
A tentativa da direita de usar
questões comportamentais para parecer moderada perante o eleitor lembra
um fenômeno apontado pela professora de filosofia e política Nancy
Frasier, da universidade nova-iorquina New School for Social Research,
em uma análise da última eleição presidencial nos EUA.
“A vitória de (Donald)
Trump não é unicamente uma revolta contra a finança global”, escreveu
ela em janeiro de 2017. “O que seus eleitores rejeitaram não foi apenas o
neoliberalismo, mas o neoliberalismo progressista.” Este último seria
uma aliança malandra em que o neoliberalismo econômico, representado
pela alta finança, utilizou o “carisma” de correntes de movimentos
tradicionais defensores de causas feministas e raciais, por exemplo,
para tornar-se palatável ao eleitor.
E o que o sistema financeiro
envernizado pelo progressismo deu em troca? “Políticas vistosas que
devastaram a manufatura e ameaçam a classe média”, diz Nancy, a ver no
ex-presidente Bill Clinton (1993-2000) o grande símbolo do
neoliberalismo progressista nos EUA.
Ao Globo, Maia comentou o
que para ele seria o tal centro no Brasil. “Não é um ponto entre
direita e esquerda, ou seja, um meio do caminho entre o Bolsonaro e o
Lula. O centro tem que representar um ponto em que se tenha um espaço de
diálogo com todas as correntes e que represente essa capacidade de
transformação que o Brasil precisa.”
A julgar por estas palavras, vai pela cabeça do deputado um dos dois tipos de centro descritos por Bobbio em Direita e Esquerda,
o “inclusivo”. Este tenta se situar entre esquerda e direita, a formar
uma “tríade”. Já o do tipo “incluído” procura anular os dois polos ao
incorporar parte deles em uma “síntese superior”.
Contudo, escreve o filósofo, “enquanto existirem conflitos (nas sociedades), a visão dicotômica (direita-esquerda)
não poderá desaparecer”. O principal conflito se daria quanto à ideia
de igualdade. Para a esquerda, a distância entre ricos e pobres deve ser
combatida, todo mundo tem direito a uma vida digna. Para a direita,
deve ser deixada em paz, é um fato da natureza, as pessoas que se virem
sozinhas.
Desigualdade é um vocábulo que entrou de uns tempos para cá na gramática do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles,
do PSD, outro a almejar o poder. Dia desses, ele comentou no Twitter
existir um estudo da FGV revelador de queda recente na disparidade entre
ricos e pobres, a primeira desde 2014. Puro humorismo, ele sair-se com
essa.
Sua política econômica causa o
inverso. Quem diz é o FMI, dono de credenciais em nada “extremistas”. No
estudo “Neoliberalismo: superestimado?”, de junho de 2016, três
economistas do Fundo Monetário Internacional afirmam que a austeridade
fiscal aumenta a distância de renda. Com Meirelles na Fazenda, abundam
cortes de gastos.
É, mas quando se acalentam desejos de poder, vale
tudo. Meirelles cultiva um romance com a igreja evangélica desde 2017.
Viajou a Belém para os 106 anos da Assembleia de Deus no Brasil, foi à
convenção geral da mesma Assembleia e ao aniversário do presidente
vitalício da convenção, bispo Manoel Ferreira.
No último dia 5, baixou na igreja Sara Nossa
Terra em Brasília, onde anunciou boas-novas econômicas e pregou
reformas. Em um vídeo enviado a evangélicos do Rio em agosto, disse: “Eu
me sinto muito à vontade para conversar com vocês, porque nós temos os
mesmos valores, que são valores da lei de Deus e dos homens visando
crescer, visando colaborar com o País”. Mesmos valores, é?
Meirelles é casado com uma psiquiatra filha de alemães e, em
Brasília e no “mercado”, não falta quem garanta ser um matrimônio de
fachada, motivado por, digamos, certas preferências do ministro na hora
da diversão. E guardar dinheiro em paraíso fiscal, seria um valor dos crentes?
Meirelles tem uma offshore nas
Bahamas, a “The sabedoria trust”, revelada em novembro no escândalo
Paradise Papers. Será que manteve também em paraíso fiscal uma bolada de
167 milhões de reais recebida no exterior, em 2017, por serviços
privados prestados em 2016? Ao dar guarida a milionários que não querem
pagar impostos, ou querem pagar pouquinho, paraíso fiscal provoca
desigualdade, diz uma ONG britânica, a Oxfam.
O ministro talvez seja o
único pretenso presidenciável centrista capaz de não negar Temer três
vezes. Não pode se envergonhar, pois sua ambição se ancora na presença
na Fazenda e na hipótese de volta do crescimento econômico.
O governo é tóxico, não há condições de um
postulante apoiado pelo presidente triunfar, conforme uma pesquisa
qualitativa feita em dezembro com pessoas das classes C e D de São Paulo
e Recife. Para os entrevistados no levantamento da Ideia Big Data
encomendado pelo jornal Valor, Temer não pensa nos pobres, é
corrupto e tomador de medidas impopulares. Um indesejável cabo
eleitoral. Distanciar-se dele vai exigir um bocado de ginástica de
Rodrigo Maia, que anda em guerra fria com Meirelles, e o PSDB. Mas a
novilíngua está aí para isso.
A propósito, a aparição do global Luciano Huck
no programa do Faustão do domingo 7 e seus comentários políticos
causaram dúvida no “neocentro”. O apresentador estará no jogo
sucessório? A entrevista foi gravada antes de Huck anunciar que não será
candidato. Não estará mesmo?
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/revista/986/em-apuros-e-piadista
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