Cidadania
é um termo moderno. Diz respeito aos direitos, sociais e políticos de
todas as pessoas que fazem parte da sociedade civil de uma cidade, de um
país e do mundo. No mundo antigo, não se falava em direitos de cidadania,
mas os impérios distinguiam as pessoas livres, consideradas cidadãs e
os estrangeiros que não tinham os mesmos direitos. Havia ainda os
escravos e apátridas, sem nenhum direito social. Infelizmente, algumas
religiões como o Bhramanismo, foram, erroneamente, usadas para explicar a
diferença de classes sociais e a supremacia de uns sobre os outros como
algo sagrado. Acreditava-se que, na terra, príncipes e sacerdotes
representavam a cabeça da divindade (Bhrama) e os servos, os seus pés.
Os Dalits ou pária (impuros) nem faziam parte do corpo divino. Estavam
abaixo de tudo. Essa sacralização da discriminação social veio quase até
nossos dias. No século XX, entre outros, o Mahatma Gandhi, de religião
hinduísta, lutou contra isso. Embora
viesse de classe superior, conviveu com Dalits e Sutras (servos). Na
mesma Índia, cinco séculos antes de Jesus, o príncipe Sidarta Guatama
renunciou à vida no palácio. Inseriu-se no meio dos mendigos e impuros
para encontrar a iluminação. Assim, se tornou o Buda. Na Arábia do
século VII da nossa era, Maomé era um pobre pastor de ovelhas. Alá o
escolheu para, através do anjo Gabriel, receber a revelação do Corão e
iniciar o Islã. Aqui vamos aprofundar mais um pouco como a Bíblia e a
tradição judaico-cristã podem contribuir para o resgate do direito de
todos/as à cidadania social e política.
De hebreus a Israel, reinado divino…
Tanto
quanto outros livros sagrados, a Bíblia surgiu em meio a uma sociedade
tribal, patriarcal e estratificada em classes sociais. No século XIII e
XII antes da nossa era, no Oriente Médio, a terra pertencia aos chamados
reis de Canaã. Os habiru, (hebreus)
eram pobres. Viviam em tribos nas montanhas e serviam como mão de obra
semiescrava para os donos da terra. Até hoje, os dados históricos são
poucos e alguns contraditórios. Segundo a tradição bíblica, foi nesse
contexto social que se deu a revelação divina. Algumas pesquisas
identificam o Êxodo bíblico como uma revolução camponesa (Gotwald,
1979). Independentemente se concordamos ou não com essa hipótese, não
podemos negar que o povo de Israel surgiu de
um movimento social que transformou grupos divididos e pobres em um só
povo, reunido por uma aliança feita em nome de Deus. No entanto, mesmo
tendo sido escravizado e oprimido, os israelitas consideravam normal ter
escravos e manter o estatuto patriarcal da família. Estabeleceram que a
mulher era propriedade do pai e depois do marido. As pessoas
homossexuais deveriam ser excluídas de todos os direitos sociais. Assim,
preservavam as desigualdades sociais entre os proprietários de terra e
os servos. Como a revelação divina se dá gradualmente e de forma
evolutiva, (Torres-Queiruga, 200), pouco a pouco, a Bíblia deixou claro:
Deus não aceita injustiças e não pactua com discriminações sociais. Em
uma sociedade patriarcal, na qual os mais velhos têm mais direitos do
que os novos, Deus aceita que o patriarca Jacó minta e engane a Isaac,
seu pai, para roubar o direito de primogenitura (Gn 27). Parece
concordar que Tamar, nora de Judá, se vista de prostituta, engane o
patriarca, durma com ele para engravidar e, assim, obrigá-lo a cumprir a
lei do levirato (Gn 38). Escolhe Moisés como líder para chefiar o seu
povo na saída do Egito, quando esse (Moisés) era foragido da justiça
egípcia por ter assassinado um homem (Ex 2). É enorme a lista de
marginais que Deus escolhe como instrumentos do projeto de libertação do
povo. A maioria dos profetas e profetizas viviam à margem da sociedade,
consideradas subversivas pelas regras sociais vigentes e se tornaram a
voz viva de Deus para o povo.
O marginal como porta-voz de Deus
“Vejam,
irmãos, entre vocês, não existem muitos poderosos nem pessoas
importantes. No entanto, o que o mundo rejeita e considera vil, Deus
escolheu para confundir os sábios. Deus escolheu o que é fraqueza para o
mundo para confundir os fortes” (1 Cor 1, 26- 27).
O
Cristianismo surgiu em meio a comunidades de periferia de algumas
cidades da Ásia Menor. Eram grupos marginais do Judaísmo que Paulo e
seus companheiros reuniram e aos quais chamaram de Igreja (ekklesia), assembleias
de cidadãos, não das cidades de cultura helênica onde viviam, mas do
projeto divino de transformação do mundo. Conforme estudiosos (Gerd
Theissen, 1989), Jesus havia reunido como discípulos um grupo de
pessoas, quase todas, marginais à sociedade judaica da época. No grupo
mais íntimo, dois discípulos tinham como apelido Boanerges (filhos do trovão), isso é, homens violentos, provavelmente
ligados a movimentos anti-romanos, Simão Pedro é chamado de Bar-jonas,
comumente traduzido por “filho de Jonas”. Pode ser que, no original
aramaico, o significado era “filho do deserto”, isso é, fugitivo
clandestino. Também Judas Iscariotes tinha esse nome por ser sicário, isso é, especializado em sica,
punhal com o qual os zelotas atacavam furtivamente aos romanos. De todo
modo, não há como negar certa convivência dos primeiros cristãos e das
primeiras comunidades com a marginalidade social e política.
Algumas
parábolas de Jesus parecem ser coniventes com a astúcia dos que burlam
as leis e mesmo com a desonestidade. Jesus compara o reino com um
administrador desonesto. Um dia, ele percebe que o patrão descobriu o
seu desfalque. Então, enquanto não é mandado embora, reúne os devedores
do patrão e perdoa parte da dívida de todos. Assim os torna seus aliados
para, quando for demitido do trabalho, encontrar quem o ajude (Lc 16, 1
ss). Jesus elogia a esperteza desse gerente desonesto. Em outra
ocasião, compara Deus a um ladrão que assalta a casa durante a noite.
Pede, então, às pessoas que fiquem vigilantes para não serem
surpreendidas pelo assalto (Mt, 24 e Mc 13). Não há espaço aqui para uma
interpretação adequada desses textos, mas em uma comunidade eclesial de
base, ao comentar a parábola do administrador infiel, um desempregado
desabafou com o ditado popular: “Quem rouba ladrão, tem cem anos de
perdão”. Não se trata de sacralizar a marginalidade, mas de revelar que o
projeto divino subverte os critérios da sociedade dominante. Como
cantou Maria: “ele derruba os poderosos dos seus tronos e eleva os pequeninos; enche de bens os famintos e deixa os ricos de mãos vazias” (Luc 1, 52- 53).
É nesse contexto cultural que os evangelhos contam que Jesus foi crucificado entre dois bandidos (em grego lestas).
Mateus diz que é para se cumprir a profecia do 2o Isaías, segundo a
qual o Servo sofredor de Deus seria considerado como bandido e malfeitor
(Is 53, 9). De fato, o termo lestas era
usado para os culpados de subversão em relação ao Império. Só esses eram
crucificados. Jesus foi condenado como um bandido, rebelado contra o
império. Conforme Lucas, um dos bandidos crucificados com Jesus o
insultava dizendo: “Se és o Messias, desce da cruz e nos tira daqui”. O outro o censurou: “Nós recebemos o castigo que merecemos, enquanto esse não fez nada de mal”. E diz a Jesus: “Lembra-te de mim quando chegares em teu reino”. E Jesus lhe respondeu: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 39- 43).
A tradição cristã chamou ao ladrão que se arrependeu
de O bom ladrão e lhe deu o nome de São Dimas. O outro ficou no
esquecimento. Comumente, essa narrativa é sempre repetida a partir de
uma leitura moralista do santo ladrão arrependido e do outro,
empedernido que mereceu o que teve. Mas, isso será mesmo a interpretação
correta e justa para quem é cristão?
Não podemos
garantir que, de fato, aquele homem tinha a intenção de insultar Jesus.
Pode ser que, no seu desespero, estivesse apenas apelando para uma
última chance. Queria convencer Jesus a fazer um milagre, descer da cruz
e salvá-los a todos. Em meio às dores terríveis, ele gritava sua
revolta. Como dizia Lutero: “Deus prefere a blasfêmia e o insulto do
pobre sofredor do que o aleluia do injusto”.
Foi
baseado nesse modo mundano e pouco crítico de ler a história, seja a
narrativa sobre os dois ladrões na cruz, seja toda a história, que, no
decorrer dos tempos, as Igrejas cristãs passaram a conviver com a pena
de morte como se fosse normal. Abençoaram guerras e, muitas vezes,
canonizaram como sendo santas a lei dos impérios e as normas sociais
vigentes. Ao fazerem isso,
essas nossas Igrejas esvaziaram totalmente o escândalo da Cruz de Cristo
se identificou com todos os filhos e filhas de Deus, condenados pela
lei dos homens, inocentes ou mesmo, de acordo com a lei, culpados. Ao
morrer na cruz, Jesus assumiu para si essa identificação com os
malfeitores. A lei afirmava: “Maldito seja quem for suspenso no madeiro” (Dt 21, 23). Como escreveu Paulo: “o Cristo tornou-se, ele mesmo, pecado por nós” (2 Cor 5, 21).
Algumas conclusões
No
mundo dominado pelas grandes corporações, não são os Estados, nem as
leis civis e nem mesmo as organizações internacionais como a ONU que
podem salvaguardar os direitos e defender a dignidade de todas as
pessoas. Atualmente, ao ver no Cinema e ler nos livros as atrocidades
cometidas pelos nazistas contra os judeus, comunistas, homossexuais e
outras minorias, podemos nos perguntar como a sociedade civil alemã e
toda a humanidade conviveu com isso. Durante certo tempo, a desculpa era
afirmar que as pessoas não sabiam o que estava acontecendo. Atualmente,
cada vez mais fica claro que a imensa maioria da sociedade sabia sim.
Ao menos os que queriam saber, tinham pleno conhecimento do que ocorria.
E, entretanto, permitiram o racismo, as torturas, as mortes sumárias,
os campos de concentração e o holocausto de seis milhões de judeus. Os
países que entraram na guerra contra Hittler não fizeram isso para
proteger os judeus e vítimas do nazismo e sim para reverter as invasões
do exército alemão em países da Europa, como a França e a Inglaterra. Se
Hittler tivesse apenas invadido países da África, os tais aliados não
se teriam movido.
Sem dúvida, disso tudo, o mais grave e
escandaloso foi que a maioria dessas pessoas que diante do holocausto
se omitiram ou fingiram não ver e não saber iam todos os domingos à sua
missa dominical ou ao culto luterano e anglicano. Salvo brilhantes
exceções, como a Igreja Confessante Luterana na Alemanha, muitos
pastores, padres, bispos e até o papa (Pio XII) são acusados de terem
sido coniventes ou ao menos omissos diante do holocausto.
Não
sei o que as gerações futuras pensarão de nós que, nesses tempos
atuais, convivemos com a existência de campos de refugiados nas
fronteiras da Europa. Ignoramos tranquilamente que, na África, países
inteiros estão subjugados pela fome e por guerras manipuladas pelas
potências europeias que se dizem cristãs. O que pensarão nossos netos ao
saberem que a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos votaram em Trump,
a maioria dos cidadãos de São Paulo e do Rio de Janeiro votaram em
Dória, em Crivela e muitos estão dispostos a votar em Bolsonaro nas
eleições de 2018? O que significa o fato de que os presidentes dos
Estados Unidos e da Coreia do Norte ameaçam lançar bombas nucleares
sobre toda a humanidade e isso não cria nenhuma reação imediata nos
cidadãos de todo o mundo?
Nesse
contexto, todas as religiões têm uma missão urgente e prioritária:
testemunhar que a fé se baseia em um movimento divino de valorização do
humano (Deus se revela ao ser humano). Todo caminho espiritual tem como
base a salvaguarda e a defesa da dignidade humana. Não se pode crer em
Deus, ou em um Mistério de Amor Maior presente no universo, se não se
percebe o valor insubstituível de cada pessoa humana e de todo ser vivo.
No século II, Irineu de Lyon afirmava: “Se nem crês na dignidade do ser humano como imagem divina, como podes pensar que crês em Deus?”. “A glória de Deus é a vida do ser humano”. Oscar Romero, bispo-mártir de El Salvador traduziu isso para a América Latina: “A glória de Deus é ver respeitada a dignidade do pobre”.
É
preciso tirar as consequências disso. Quem divide a sociedade em
cidadãos de bem e indivíduos (pessoas consideradas desqualificadas),
assume posição contrária a qualquer caminho espiritual. Achar que
direitos humanos servem para quem respeita as leis sociais mas não devem
se aplicar a bandidos é uma forma de continuar, hoje, condenando à cruz
uma multidão de pessoas desfiguradas de sua dignidade humana. Como no
tempo de Jesus, os crucificados não são apenas as vítimas inocentes e
puras condenadas pelo mundo mau. São também os marginais, culpados de
algum delito social condenados à morte social e mesmo física por uma
sociedade sem coração.
Quando Jesus proclama
bem-aventurados os pobres, não determina que se trata dos pobres
honestos, íntegros e cumpridores da lei. Quando diz: bem-aventurados os
que choram, não explica que seriam os que choram sem merecer e assim por
diante.
A Pastoral Carcerária é uma das mais
importantes pastorais sociais da Igreja. Ela tem uma dimensão ecumênica.
Dela participam católicos, luteranos, anglicanos e outros. Sua missão
não é apenas confortar e tentar converter à fé cristã os prisioneiros.
Seu objetivo é lutar por um mundo em que a justiça não seja mais
entendida como punição exemplar e menos ainda como vingança. A justiça
divina é libertadora e tem como meta recriar e renovar a vida, onde essa
é ameaçada e aviltada. Lutamos por uma “justiça restaurativa”.
Isso significa levar quem cometeu uma falta a trabalhar para, na medida
do possível, refazer o bem e corrigir o mal cometido. Isso é um
trabalho feito a partir da restauração da dignidade humana de quem
comete a infração e das vítimas. É uma restauração dos laços sociais e
da potencialidade humana de amar e ser amado/a.
Quem,
por qualquer que seja o motivo, é a favor da pena de morte, ou acha
menos grave o extermínio de jovens pobres nas periferias urbanas das
cidades brasileiras não somente assume que é contra a fé de todas as
tradições espirituais, mas vai na direção oposta a toda perspectiva de
educação da sociedade.
Quando Jesus propõe o perdão
como caminho de construção de uma nova sociedade não é de forma mágica e
alienada. O perdão supõe recriar condições de justiça. Embora deva ser
gratuito e total, inicia um caminho trilhado a partir da verdade e da
exigência de conversão. Para a Bíblia, todo ser humano foi criado à
imagem e à semelhança de Deus. Por isso, mesmo se erra e envereda por um
caminho equivocado, a pessoa continua sempre sendo imagem divina e as
religiões devem revelar isso. Em todo ser humano, seja quem for e seja
qual for sua situação, podemos ver nela a imagem divina. Mas, mesmo se
todos/as são imagens de Deus, algumas imagens são fieis e outras estão
mais ou menos desbotadas. É tarefa de uma educação espiritual e
libertadora ajudar as pessoas a recuperar no mais profundo de si mesmas
essa imagem divina. Assim, além de ser imagem divina, cada criatura
humana pode também se tornar semelhante a Deus, isso é, parecido/a com
Deus que é Amor. Trata-se de um trabalho interior e permanente ao qual
todos nós nos propomos. No entanto, cremos que a energia fundamental e
primeira vem do próprio Deus. Por isso, judeus e cristãos oram: “Quando tu, Senhor, teu Espírito envias, todo mundo renasce, é grande a alegria” (Sl 104).
Referências
Andres Torres-Queiruga, Repensar la revelación, La revelación divina en la realización humana, Madrid, Trotta, 2007.
Francisco de Aquino Júnior, Nas periferias do mundo: Fé, Igreja e Sociedade, São Paulo, Paulinas, 2017.
Gerd Theissen, Sociologia do Movimento de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1989.
James Alison, Una fe más allá del resentimiento, (um olhar gay sobre a teologia da redenção), Barcelona, Herder, 2003.
Leonardo Boff, Direitos do Coração, São Paulo, Paulus, 2014.
Norman Gottwald, Tribes of Yahweh, A sociology of the Religion of Liberated Israel, N. York, Orbis Book, 1979, traduzido no Brasil: As Tribos de Yahveh, Uma sociologia da Religião do Israel Libertado, Ed. Paulus, (várias edições. A última, 2007).
Francisco de Aquino Júnior, Nas periferias do mundo: Fé, Igreja e Sociedade, São Paulo, Paulinas, 2017.
Gerd Theissen, Sociologia do Movimento de Jesus, Petrópolis, Vozes, 1989.
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Leonardo Boff, Direitos do Coração, São Paulo, Paulus, 2014.
Norman Gottwald, Tribes of Yahweh, A sociology of the Religion of Liberated Israel, N. York, Orbis Book, 1979, traduzido no Brasil: As Tribos de Yahveh, Uma sociologia da Religião do Israel Libertado, Ed. Paulus, (várias edições. A última, 2007).
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