Terreiros de candomblé e umbanda afirmam suas heranças em oposição a intolerância religiosa no Brasil.
Erisvaldo P. dos Santos* e Iris Pacheco**
No Brasil, o racismo funciona como sistema estruturante das relações
de poder, atua pelos traços fenotípicos, de modo que a cor da pele da
pessoa define se a sua experiência social será menos ou mais violenta.
Este tipo de racismo é resultante do ideal de branqueamento que a partir
da segunda metade do século XIX se desenvolveu entre nós. Aliados a
este ideal, os comportamentos racistas buscaram não apenas eliminar a
presença física de negros e negros em nosso território, através do
incentivo e favorecimento da imigração europeia, mas também apagar
quaisquer heranças civilizatórias africanas.
Os jornais do final do século XIX, os boletins de ocorrência
policiais e até mesmo a produção literária da época registram os atos de
violência e perseguição aos territórios sagrados de resistência negra.
Daquele período até os dias de hoje, os terreiros de candomblés e de
umbandas vêm tendo apenas alguns momentos de paz, em razão do combate
travado pelas forças que emanam de uma ação combinada entre sujeitos de
culto e crenças ancestrais e a centralidade dos valores da vida
comunitária africana, que estão presentes nestes territórios sagrados.
Em outro artigo
publicado aqui falamos sobre a história da perseguição às religiões
brasileiras de matrizes africanas, marcada pelo racismo estrutural que
conforma o processo de formação da sociedade brasileira. Pontuamos
também os interesses do Estado com segmentos religiosos que defendem um
projeto político religioso que impacta diretamente os direitos humanos
e, por consequência, a própria democracia, aprofundado pelo golpe de
2016.
Neste sentido, a reflexão para o 21 de janeiro, Dia Nacional de
Combate à Intolerância Religiosa, diz respeito à maneira como as
comunidades religiosas de matrizes africanas são duramente atacadas por
preservar em seus territórios sagrados a força da ancestralidade. Com
esta finalidade, elas articulam a história de uma cultura de resistência
que por sua essência é combativa, não defensiva. Combatem o racismo e a
intolerância, afirmando heranças que têm sido negadas na educação
escolar, mesmo após o advento da Lei 10.639/03 que modificou a Lei de
Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN) para estabelecer a
obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e africana no
currículo escolar. Dessa maneira, os terreiros de candomblé e umbanda
mantêm em seus territórios saberes e práticas socioculturais que
desafiam não apenas o currículo eurocêntrico e eugenista da escola
brasileira, mas também a violência física e simbólica, que atingem seus
adeptos e seus espaços, em forma de incêndios, apedrejamentos,
destruição de objetos sagrados, exposição a vexatória e até
assassinatos.
O último levantamento do Ministério dos Direitos Humanos afirma que,
entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre 2017, o Brasil registrou uma
denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas. Estados de São
Paulo, Rio e Minas Gerais lideram casos de intolerância, colocando as
religiões de matriz africana no ranking das vítimas. O disque 100, canal
que reúne denúncias, recebeu 1.486 relatos de discriminação religiosa
no período. Destes, 39% são denúncias de intolerância contra religiões
de matriz africana. Porém, se considerarmos o cenário nacional, são
dados subnotificados por diversos fatores. Sobretudo, em razão da
descrença de que o Estado possa de fato utilizar o seu aparato jurídico e
policial em defesa desse segmento religioso.
Ao apresentarmos estes números, querermos evidenciar que nenhum outro
segmento religioso sofre tamanha agressão e encontra tanta resistência
em nossa sociedade. Logo, se faz urgente e necessária a compreensão de
que o que motiva essas violências é o fato delas serem religiões
constituídas por pessoas negras que mantém um legado de cultura e
resistência dos seus antepassados, mulheres e homens africanos, que aqui
foram escravizados. Salientamos, pois, que atualmente quando se trata
dessas religiões, o termo “intolerância religiosa” tem se mostrado
insuficiente para nomear a complexidade do sistema de opressão sobre
essas crenças religiosas de origens negras em nosso país.
A intolerância religiosa se caracteriza assim como a expressão do
racismo. Um crime sutilmente acomodado historicamente à sociedade
brasileira, que inferiorizou e marginalizou as expressões de crença de
africanos e seus descendentes. Os nossos terreiros queimados, igbás
quebrados, a agressão a pessoas que vestem uma roupa e insígnias
sagradas da sua religião em locais públicos, os linchamentos verbais na
internet e redes sociais de praticantes da fé, traficantes expulsando
sacerdotes das suas casas ou assassinados, crianças proibidas de
assistirem aulas na escola, Mães e Pais de Santo que têm a saúde
agravada ao serem expostas às situações violentas, constituem-se como a
materialização violenta desse processo.
O racismo religioso quando não mata, deixa marcas profundas na luta
do povo preto pela sobrevivência e contra a exclusão social, política e
econômica. Vivemos em um país onde a liberdade de crença religiosa está
cerceada, e um golpe político midiático acentuou a crise estrutural do
capital e aprofundou a barbarização das relações sociais, impactando
diretamente as chamadas minorias. Como Guimarães Rosa, o Povo de Axé
sempre soube que “o que a vida quer da gente é coragem” para buscar
formas de unidade na luta por direitos e ampliar a construção de uma
cultura política anticapitalista e combativa de todas as formas de
racismo.
Nesse contexto, compreendemos os territórios onde as comunidades de
terreiros estão alocadas, não apenas como espaços de manutenção do
sagrado ancestral, mas também de disputas políticas e ideológicas.
Assim, a formação cultural e social dos seus componentes torna-se alvo
das ações desenvolvidas e ali floresce tudo aquilo que a história e o
Estado brasileiro negaram à população negra durante séculos. É um espaço
com uma estrutura coletiva que pensa, articula e constrói. Esses
territórios têm um enorme potencial de organização social em prol da
manutenção de um legado histórico de luta e resistência ancestral pelos
direitos sociais. Em diversas ações cotidianas, seus adeptos afirmam
uma cultura intransigente, que não se molda ao ideal de branqueamento e
às formas de opressão do capital.
*Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e Babalorixá do Ilê Axé Ogunfunmilayo em Contagem-MG
**Jornalista, Umbandista e Especialista em Teologia das Religiões Afro-Brasileiras
Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/01/19/o-combate-ao-racismo-religioso-como-luta-politica-das-religioes-de-matrizes-africanas/
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