Paulo Iotti: “não há igualdade verdadeira enquanto há a possibilidade de
se precisar contratar advogado para fazer valer o direito de não ser
discriminado”.
Apesar de já ser uma realidade no Brasil desde 2013, o casamento
igualitário ainda convive com a tênue ameça de sua própria extinção. Em
2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável para
homoafetivos. Dois anos depois, a Resolução 175/2013 do Conselho
Nacional de Justiça definiu que, se casais heterossexuais podiam
converter sua união estável em casamento, não havia por que impedir que
os homossexuais fizessem o mesmo – e, assim, o casamento civil
homoafetivo foi legalizado em nosso país.
Acontece que, pairando sobre esses avanços, ainda há a pequena sombra
da possibilidade de que futuramente essas decisões jurídicas sejam
revistas e esses direitos, revogados. É por isso que tramita no
Congresso o projeto de lei PLS 612/2011, que pretende alterar o Código
Civil Brasileiro para que os termos “entre um homem e uma mulher” dos
artigos 1723 e 1726 sejam alterados para “entre duas pessoas”:
Art. 1723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Art. 1726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Como registramos ontem, a votação do PLS 612/2011 está sendo sabotada
pela bancada evangélica do Congresso. Por que esses conservadores temem
tanto que o Código Civil reflita algo que já acontece no país?
Precisamos mesmo ter medo de perder nossos direitos tão duramente
conquistados? Podemos fazer algo a respeito? Para esclarecer essas
questões, o LADO BI entrevistou o advogado Paulo Iotti, autor do livro Manual da Homoafetividade: Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos e especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo.
LADO BI Juridicamente, qual é o principal problema da
situação atual, em que o casamento civil homoafetivo é uma realidade,
mas não está explicitado no Código Civil?
Paulo Iotti Embora esteja garantido pela Justiça,
uma eventual mudança futura da composição do STF pode gerar posição
diversa, na nefasta hipótese de termos uma Corte de maioria
conservadora. Não é algo que eu vislumbre nos próximos dez anos, mas
algo, em tese, possível. Por outro lado, uma democracia de verdade deve
reconhecer direitos de minorias e grupos vulneráveis na própria letra da
lei (e da Constituição), para deixar clara sua posição
não-discriminatória. Especialmente porque não há igualdade verdadeira
enquanto há a possibilidade de se precisar contratar advogado para fazer
valer o direito de não ser discriminado(a).
Por que uma lei que, na prática, não faz mais que assentar o que já é realidade, incomoda tanto a bancada evangélica?
Essa bancada fundamentalista quer impor seus dogmas religiosos a toda
a sociedade. Não está preocupada com a Constituição, está preocupada
com sua interpretação de seu “livro sagrado”. Ocorre que a liberdade
religiosa é, principalmente, um direito das minorias, para que não
tenham direitos negados por conta da religião da maioria.
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti é advogado, constitucionalista, Mestre em
Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (2010)
Qual é a possibilidade real de que a decisão do CNJ venha a ser revertida no futuro?
Acho improvável que a Resolução CNJ 175/2013 caia. Costumo dizer que
entendo as pessoas estranharem o CNJ impor o casamento civil
igualitário, mas aí entra um forte juridiquês. A decisão do STF de 2011,
por ser de controle concentrado de constitucionalidade, tem “força de
lei”. Ela reconheceu a aplicabilidade do regime jurídico da “união
estável” a casais homoafetivos, com as mesmas “consequências da união
estável heteroafetiva”. Uma dessas consequências é poder converter a
união estável em casamento civil. Então, a força de lei da decisão do
STF já reconheceu o direito ao casamento civil homoafetivo, razão pela
qual é desnecessária uma lei propriamente dita, do Congresso Nacional,
para isto referendar (embora ela seja importante para uma democracia de
verdade, conforme explicado na primeira resposta). Se você pode casar
por conversão de união estável, já teve o direito de casar reconhecido,
sendo contraditório não reconhecer o direito ao casamento civil direto,
sem prévia união estável. Por essas razões, acho improvável que ela
venha a cair, no futuro.
Como os opositores do casamento igualitário poderiam eliminá-lo? O que nós poderíamos fazer em retaliação?
Já agiram, logo em seguida à decisão do CNJ. O PSC entrou com com ação contra ela, no STF, pouco tempo depois da sua aprovação (ADI 4966).
Eu já defendi a Resolução do CNJ nesse processo, em nome do PSOL e da
ARPEN/RJ no citado processo do PSC, apresentando as razões acima. Outras
entidades importantes, como a Conectas Direitos Humanos e o Conselho
Federal da OAB, também se manifestaram em favor da constitucionalidade
da Resolução CNJ 175/2013. O que reforça minha crença na baixa
possibilidade de que futuramente a Resolução venha a ser derrubada pelo
STF.
Além da mudança no Código Civil, há alguma outra ação que
pode ser feita agora para garantir-se a estabilidade das uniões
homoafetivas?
O ideal é mudar, também, a Constituição. STF e STJ já declararam que a
lei e a Constituição falarem em união entre homem e mulher não
significa negativa de proteção a uniões entre pessoas do mesmo gênero.
Mas, para acabar com qualquer discussão jurídica, é preciso mudar tanto o
Código Civil quanto a Constituição. Mas um passo de cada vez. Primeiro
mudemos o Código Civil, que é menos difícil (exige menos votos) e depois
lutamos para mudar a Constituição.
Disponível em: http://ladobi.uol.com.br/2017/12/paulo-iotti-casamento-igualitario/
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