quarta-feira, 8 de novembro de 2017

JUDITH BUTLER, O MBL E O FIM DA DEMOCRACIA

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 JUDITH BUTLER

Nada confirma mais os tempos obscuros, a obtusidade e a desinformação de certos setores da direita brasileira que protestaram no último dia 27 contra a presença da filósofa norte-americana Judith Butler no Brasil para participar do seminário Os Fins da Democracia, em novembro, no Sesc Pompéia, em São Paulo. Nem mesmo a própria professora de Berkeley sequer entendeu a reação à sua presença.


A ativista Judith Butler concedeu entrevista à Marcelo Menna Barreto, publicada por ExtraClasse, 07-11-2017.


Em e-mail trocado para acertar essa entrevista com o Extra Classe, Judith diz que até queria ter contato com os autores do manifesto contra a sua presença para pedir aos mesmos que leiam o programa do seminário, expresso no próprio site do Sesc São Paulo. Afinal, ela estará aqui não como palestrante, conforme alegam, mas como a principal pesquisadora de um trabalho que reúne intelectuais que estudam o campo da teoria crítica (International Consortium of Critical Theory – UC Berkeley e Departamento de Filosofia da USP). “Isto está claramente indicado no site do Sesc. Nunca foi suposto eu ser uma palestrante no Sesc e não serei”.
Judith Butler, de fato, é uma espécie de organizadora do evento, tendo convidado vários estudiosos internacionais para discutir o “O fim da democracia”. Por ironia, o ex-ator de filmes pornográficos Alexandre Frota (que briga na Justiça pela marca MBL) e membros do autointitulado Movimento Brasil Livre (MBL) continuam dando sua contribuição ao “fim da democracia”, tema principal do debate que traz Butler ao Brasil.
A pesquisadora aproveitará sua vinda ao Brasil para divulgar seu mais recente livro Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (Ed. Boitempo) em que, ao mesmo tempo que reafirma sua própria cultura judaica, critica as posições do seu país no conflito Israel-Palestina. O que demonstra que o foco sobre as teorias de gênero acerca de sua visita é mais um equívoco causado por desinformação dos que se manifestaram contra sua presença no país.



Eis a entrevista.


Como a senhora vê a manifestação que está pedindo o cancelamento de uma suposta palestra sua porque você promove a Teoria do Gênero?


Eu entendo que meu nome está associado à ideia de “gênero”, mas, na realidade, muitas pessoas em todo o mundo trabalham em estudos de gênero. Eles procuram entender o significado do que é ser um homem ou uma mulher na sociedade, ou viver o gênero de uma maneira que não está em conformidade com nenhuma dessas categorias. A maioria das grandes universidades de pesquisa agora reconhecem estudos de gênero como um campo de estudo legítimo e importante. Eu não sou responsável pela ideia de gênero. E, de fato, o gênero é interpretado de forma muito diferente pelos estudiosos das ciências humanas, das ciências sociais e das ciências naturais.
É um campo vasto e vibrante, buscando entender desigualdades sociais, marginalização, violência infligida contra mulheres, gays e lésbicas e pessoas trans. A teoria mais popular do gênero não é minha. É chamado de “interseccionalidade” e procura entender a condição de mulheres e homens à luz de classe, raça e outras categorias sociais poderosas. Eu acho que as pessoas não entendem que os estudos de gênero são apenas um aspecto do meu trabalho. Trabalho também na ética e na filosofia social e política. Mas, principalmente, parece que as pessoas que se opõem à minha presença não estão realmente abrindo livros e aprendendo sobre a teoria do gênero. A oposição se baseia em um fantasma, que parece ser excitante e assustador. Eles pensam que talvez eu seja um pesadelo vindo para a cidade, mas eles estão no meio de um pesadelo de sua própria criação.


A senhora é vítima de muitos grupos que propagam discursos de ódio (haters) devido a sua teoria de gênero. O que provoca tanta raiva nessas pessoas?


Meu senso é que as pessoas associam a ideia de gênero à negação de diferenças biológicas entre os sexos. Isso, a propósito, não é a minha opinião. A biologia e a cultura se cruzam de maneiras muito interessantes e todos vivemos nossas vidas no que Beauvoir (Simone de Beauvoir – 1908/1986 – escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa) chamou de “uma situação biológica”, bem como um conjunto de normas culturais. O sexo é o nome desse cruzamento, na minha opinião. De qualquer forma, a ideia fantasmática de gênero é: não há diferença entre homens e mulheres, não existe um fundamento biológico para a heterossexualidade e nem o casamento nem o parentesco devem ser baseados na heterossexualidade.
De certa forma, a ideia de gênero levanta a questão do casamento gay ou desejo não heterossexual, de direitos de gays e lésbicas ou direitos de trans. Muitas pessoas querem que a diferença sexual, a heterossexualidade e o casamento sejam naturais e eles querem isso, não só porque dá à sua própria vida estabilidade (e suposta superioridade sobre os outros), mas porque confirma alguns ensinamentos religiosos que são importantes para eles. Na verdade, foi a Igreja Católica que proclamou inicialmente que “o gênero é uma ideologia diabólica” – o que significa que vem do diabo. Mas o cristianismo também ensina o amor e alguns dos mais importantes ativistas homossexuais também vêm da Igreja.


O protesto contra a sua vinda ao Sesc partiu de pessoas que pregam a moral e os bons costumes, em especial um ex-ator pornografico e setores fundamentalistas neopentecostais (evangélicos); com o a senhora vê isso?


Para aqueles que acreditam que gênero vem do diabo e que eu trarei a Teoria de Gênero para o Brasil, então aparentemente “eu sou o diabo”. O problema com este modo de ver as coisas é que a Teoria de Gênero vai muito bem no Brasil, com muitos estudiosos e ativistas. O estudo das desigualdades sociais para a emancipação social é uma parte importante do movimento das mulheres, das travestis, da cultura queer e do movimento trans. Pode ser que precisemos entender como o gênero funciona para explicar e opor, por exemplo, a terrível epidemia de matança de mulheres e pessoas queer e trans. O Brasil será uma sociedade menos facciosa e mais democrática quando enfrentar as altas taxas de feminicídio e der fim a esta terrível prática. Se perguntarmos o que legitima estas mortes, veremos que a misoginia, a homofobia e a transfobia estão em pauta. É a mensagem do feminicídio a de que “homens deveriam poder usar todo seu poder para dominar as mulheres mesmo que isso represente mata-las?”. Quais os significados que “homem” e “mulher” têm dentro da cena do feminicídio? Estas são algumas das questões colocadas no estudo de gênero.


Recentemente Camille Paglia (Camille Anna Paglia, Ph.D pela Universidade de Yale, professora da University of the Arts em Philadelphia, Pennsylvania, é ensaísta, crítica de arte e crítica social americana) afirmou que sem dúvida nós vivemos em um período em que os gêneros são fluidos e ninguém se identifica com os papeis de cada um dos gêneros no passado. Mas a ideia de que isso é um sintoma de saúde social em sua opinião estaria errada e lhe preocupa muito a tendência cirúrgica para mudança do corpo. Qual a sua opinião?


Eu acho que muitas pessoas estão firmemente fundamentadas em seus gêneros e não querem ser fluidas. Outros apreciam a fluidez e os alivia de uma restrição. Então, o que é habitável para algumas pessoas não é habitável para outras. Talvez nossa tarefa seja aceitar a grande diversidade na vida de gênero e não prescrever aos outros como devem ser. Sou a favor da liberdade, incluindo a liberdade de expressão de gênero, mas também penso que ninguém tem a liberdade de prejudicar ou matar outra. Esse é o meu compromisso ético.


No seu último livro, a senhora afirma que as atuais políticas israelenses vão contra princípios éticos do próprio judaísmo. A senhora poderia citar alguns exemplos?


Minha própria formação religiosa me ensinou a importância de ser emancipada da opressão. Foi ensinado sobre a emancipação do povo judeu do Egito há muito tempo, mas também aprendi muito sobre o antissemitismo europeu (que continua até hoje). Claro que entendi por que o Estado de Israel parecia tão importante para os judeus que fugiam do genocídio nazista ou que chegaram nos anos imediatamente após sua derrota. Mas, como muitos outros judeus, acredito que todos no Estado de Israel devem gozar de direitos iguais, sejam ou não judeus. A ocupação da Cisjordânia nega aos palestinos seus direitos a autodeterminação. E os direitos de todos os palestinos que foram despojados de suas terras e de seus lares nos últimos 65 anos também devem ser reparados de alguma maneira. Se alguém é contra a opressão das minorias, então deve ser contra a opressão de todas as minorias. Espero um futuro de igualdade e de convivência nas terras de Israel e da Palestina.

Disponível em:  http://www.ihu.unisinos.br/573415-judith-butler-o-mbl-e-o-fim-da-democracia 

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