O silêncio e a libertação de Lara que, aos 12 anos, vivencia a transição para o gênero feminino. Nesta entrevista, a menina trans narra como se torna dona da própria história. "É quando você olha no espelho e vê você mesma", afirma-se.
Lara diz que se sente naturalmente mais confortável e encaixada
JULIO CAESAR
Lara gosta de filmes de romance e, às vezes, de animação; por último,
ela destaca, amou It, a Coisa, terror baseado na obra de Stephen King.
Gosta também de livros “que têm um lado mais emocional, mais humano”,
como Os 13 Porquês, de Jay Asher. Adora festas, passear, ir ao cinema
com a mãe. Conversa sobre religião, política, machismo e os assuntos do
sétimo ano. Tem cinco melhores amigas. Guarda segredos, compartilha
sentimentos. Lara tem 12 anos e nasceu, ela mesma demarca, no dia 19 de
agosto de 2017 - quando, em uma festa ao ar livre, a mãe lhe
apresentava: “Essa é a minha filha, a Lara”.
Nesta entrevista,
realizada ao lado da mãe, Lara conta como se torna dona da própria
história. Desde o último agosto, quando conversou com os pais usando um
batom, ela vivencia uma mudança tão complexa quanto a da infância para a
adolescência. “O batom foi uma forma d´eu me expressar melhor, d´eu me
mostrar mais ainda”, retrata, ao tempo em se desfaz da criança e do
menino que foi até os 11 anos.
Lara se afirma uma menina trans.
Ela está em transição para o gênero feminino: escolheu o nome social e
roupas que a definem, lida com olhares e cobranças, aprende a cuidar do
cabelo e a se fazer respeitar. Agora, sorri para as fotos e gosta de se
olhar no espelho porque, ela explica, vê a si mesma. Esta é a melhor
parte de ser mulher, diz. E, para Lara, o dizer, o afirmar-se é também
existir. (Ana Mary C. Cavalcante)
"Eu ficava pensando, refletindo: meu Deus, por que eu estou desse jeito, por que eu estou me sentindo assim?"
O POVO – Como você foi vivendo o seu lado feminino,
foi se descobrindo uma menina? Teve alguma situação que você viveu ainda
na infância?
Lara - Eu tenho um trauma de infância. Porque criança é cruel, é igual a adolescente, às vezes; pode ser maravilhosa, mas pode ser cruel demais. E teve um dia (na escola) que uma menina tinha trazido uma boneca, e eu fiquei insistindo pra brincar com a boneca. Ela disse: eu só vou deixar você brincar com a boneca se você passar o batom. Eu passei o batom, aí, todo mundo da sala correu pra cima de mim, começaram a rir. Eu me tranquei no banheiro. E eu acho que, nessa época, comecei a reprimir mais as minhas coisas.
OP – Quantos anos você tinha?
Lara - Eu tinha cinco anos de idade.
OP – É a sua primeira lembrança?
Lara – É a minha primeira lembrança nesse quesito, assim, eu nunca tive essa restrição. Eu gostava de brincar de coisas de ambos os lados. Mas programas (de TV), nunca preferi os de menino.
OP – Mas isso já dizia o quê, para você?
Lara - Já dizia que eu não conseguia me situar direito. Eu era uma pessoa muito confusa. Eu não sabia o que eu queria pra mim, o que era aquela diferença, por que eu estava me sentindo daquele jeito. Porque todos os meninos eram tão confortáveis, falavam tanto de carro, de bola... Eu tentava me enturmar com as meninas, e algumas meninas não queriam, falavam coisas, eu me distanciava. Eu não sabia onde ficar.
OP – E como você foi resolvendo isso? Você se calou muito, né?
Lara - Eu admito: eu me reprimi. Toda vez que eu sentia alguma coisa, eu tentava reprimir. Por isso que eu comecei a andar com amigos meninos, durante certo tempo. Mesmo assim, eu me sentia desconfortável. Eu não andava porque eu gostava, eu me sentia obrigado a andar. Porque os meninos sempre foram de coisa...
OP – De preconceitos?
Lara – De preconceito, de “viado”, “bicha”, esse tipo de coisa. E eu me reprimi muito, muito, muito.
OP – Até que momento? O que mudou essa situação?
Lara - No sexto ano (em 2016), foi quando eu vi que eu não sentia... Foi mais ou menos assim: os meninos sempre falavam: “Que menina bonita, que menina não sei o quê...”, esse tipo de coisa. E eu nunca conseguia entender o que eles estavam querendo dizer com aquilo (risos).
OP – Porque você não sentia...
Lara – Eu não sentia aquela atração. E eu pensei: pera, por que estou dizendo uma coisa se, pra mim, não é desse jeito? Eu vou continuar dizendo que sou uma coisa se, pra mim, não é assim, de verdade? Será que eu, realmente, estou dizendo que eu sou se eu estou me camuflando numa máscara, que as pessoas querem que eu fique e que eu mesma quis que eu ficasse com medo do que os outros pensam, com medo de mim mesma... Por causa do que as pessoas falam, do modo que as pessoas pensam e agem, de certa maneira. E eu vi que eu não sentia atração por meninas, mas, sim, por meninos. Isso, eu já sabia faz um tempo, só que eu não sabia desse jeito. Eu tentava, o máximo, reprimir qualquer desejo. Eu ficava: não posso, não é nada. Fingia que não era nada. Sempre tentava me esconder, me distanciar desse tipo de coisa.
OP – Mas isso te fazia sofrer...
Lara – Fazia. Era uma luta diária porque eu tinha que manter aquela aparência, toda hora. E eu não podia chegar na escola sem manter aquela aparência e me dirigindo pros meninos.
OP – Você fala da escola, mas, em casa, você se sentia mais à vontade?
Lara - Em casa, não tem esse negócio das pessoas. Em casa, era só eu chegar, contava do dia e ia pro meu quarto. Eu ficava lá tempo, tempo, tempo, sozinha, pensando. Eu nunca fui uma pessoa muito extrovertida, na verdade. Sempre fui uma pessoa muito introvertida. Eu não sei se isso se deve ao fato de eu ter me reprimido tanto a esse ponto, ou da exclusão das meninas e os meninos sempre fazendo aquela coisa que você já tem medo por causa do que eles falam.
OP – As meninas te excluíam por quê? Por que, visualmente, você era menino?
Lara – É, porque eu era menino visualmente. “Por que você não vai brincar com os outros meninos?”. Esse tipo de coisa. E, quando eu tentava me enturmar com os meninos, e era coisa de futebol, nunca dava certo. Depois que eu me toquei: que coisa besta que eu tava fazendo da minha vida; não tava nem chutando uma bola porque nem a bola conseguia parar nos meus pés, na verdade (risos).
OP – E quando você decidiu contar, primeiro, decidiu contar para a família, para um melhor amigo?
Lara - Eu contei primeiro pra uma melhor amiga, da mesma idade. Geralmente, as pessoas acham que a religião é um fator tão importante pra pessoa ser aberta ou não; e nem sempre é desse jeito. Às vezes, as pessoas podem surpreender. E a religião pode ser uma coisa muito bonita, até. (Lara tem duas melhores amigas que são evangélicas). E eu falei pra ela sem nenhum medo: “Eu acho que eu não gosto de menina, eu acho que eu gosto de menino”. E ela foi bem receptiva, foi muito legal a atitude dela.
OP – Ela escutou tudo o que você tinha pra dizer?
Lara - Ela escutou tudo o que eu tinha pra dizer. Ela disse que estava tudo bem, que não tinha nada de errado nisso. Que era pra eu, realmente, ser quem eu sou de verdade. Que eu parasse de agir daquela forma se me incomodava tanto.
OP – E o que você sentiu nesse momento?
Lara - Eu senti um grande alívio dentro de mim, uma grande libertação. Porque eu sentia como se todos aqueles anos que eu tentava, eu vi que, realmente, tudo aquilo que eu sentia não era verdade. Porque, na verdade, eu nem sentia aquilo, eu tentava fazer aquilo mais por causa das aparências. E eu comecei a sentir um pouco mais eu.
OP – Depois, você decidiu falar com sua mãe e seu pai. Você tinha algum medo de falar?
Lara - Tinha. Mesmo quando eu sei que as pessoas aceitam, eu fico com nervosismo, não sei por que. É uma coisa dentro de mim, que sempre há essas possibilidades de algo dar errado. A maneira que eu falar, entendeu? Nem sempre as coisas podem dar certo como a gente espera.
OP – O que você pensava antes de contar?
Lara - Eu pensava que eu ia ser debochada, justamente, por causa desses traumas e das coisas que eu via acontecendo – não comigo, mas com outras pessoas.
OP – E como foi esse dia de contar pra sua mãe? Você confiava nela, se sentiu à vontade?
Lara - Confiava, me senti (à vontade). Existiu mais uma questão de libertação.
OP – E por que usar o batom?
Lara - O batom foi uma forma d´eu me expressar melhor, d´eu mostrar mais ainda.
OP – Foi fácil ou difícil, para você, essa conversa?
Lara – Foi difícil.
OP – Mas foi libertadora...
Lara - Foi muito libertadora.
OP – O que mudou a partir desse dia que conversaram?
Lara - O que mudou que eu me senti, cada vez mais, confortável no ambiente que eu, realmente, queria estar.
OP – E você buscou informações sobre o que estava acontecendo com você? Na Internet, por exemplo...
Lara - Eu já conhecia essa questão transexual faz tempo... A gente já debatia sobre tudo (em casa). Porém, teve uma época que eu comecei a pensar, quando começou a cair a ficha... Porque, quando você entra na puberdade, tudo vem num choque. Você começa a enxergar como as coisas são mesmo, o tempo começa a passar mais rápido. Eu comecei a ver que aquilo não me descrevia. Eu me sentia presa num corpo que não diz ao meu respeito. Eu não me encaixava naquele universo masculino que as pessoas queriam tanto que eu participasse.
OP – O que você gosta em você, hoje?
Lara - Gosto de mim porque eu me acho uma pessoa... eu não sinto aquela coisa de eu ser horrível. Uma coisa que era um sentimento constante na época que eu me parecia com menino. Quando eu me parecia com menino, eu sentia aquela inquietação. Eu era uma pessoa mais ansiosa ainda do que eu já sou hoje em dia. Eu não conseguia me aquietar. Eu não conseguia dormir, eu ficava pensando, refletindo: meu Deus, por que eu estou desse jeito, por que eu estou me sentindo assim?
OP – O que você queria mudar no seu corpo, quando você não se sentia à vontade no corpo de menino?
Lara - Eu não sabia o que era aquela inquietação. No sexto ano, eu ainda tava me camuflando naquela máscara. Eu ainda não tinha me tocado cem por cento. Ainda tava tentando ficar numa zona de conforto, que nem zona de conforto era, era mais uma ilusão. Eu via como tratavam as outras pessoas e eu pensava: eu tenho que ser desse jeito, não pode ter outra possibilidade.
OP – O que você queria mudar no seu corpo?
Lara - Eu queria que alguma coisa mudasse, não sabia o que eu queria que mudasse. Porque eu fechei minha cabeça pra mim mesma. Eu criei a minha própria prisão. O que mudou foi, assim, eu comecei a pensar quando eu me olhava no espelho: por que eu sentia aquela coisa? Todo mundo se achava bonito na sala de aula, menino, menina, ninguém tinha nenhuma reclamação. Todo mundo era confortável, era uma coisa natural. Mas, pra mim, era uma constante angústia. E eu sempre tentava disfarçar isso. (Uma de suas melhores amigas lhe achava, na época, uma pessoa triste e tímida. Uma tristeza que não tinha explicação).
OP – Quando você contou e se mostrou, isso reverteu...
Lara - Reverteu. Eu comecei a me sentir encaixada não como daquele jeito que eu tava tentando me encaixar à força, mas, sim, naturalmente.
OP – A primeira coisa que você quis mudar foi o cabelo?
Lara - Foi (risos). O cabelo me incomodava bastante. Porque é uma das coisas que podem deixar uma pessoa mais masculina. (o corte curtinho) Eu sinto que aquilo me aproximava mais do look masculino, e eu não gostava daquilo.
OP – E você achou que era a hora de mudar de uma forma radical pra ir ao colégio, circular na rua...
Lara – Achei.
OP – O pensamento mudou também, ou você já tinha um pensamento mais feminino?
Lara - Já tinha um pensamento mais feminino. Eu sempre preferi essas coisas mais femininas. Eu sempre fui uma pessoa muito diversa, mas eu não gostava daquelas coisas muito menino.
OP – Como foi, para você, voltar à escola de minissaia, cabelo grande, unha pintada? Como foi seu primeiro dia como Lara, na escola?
Lara – Foi ótimo!
OP – Você não teve medo?
Lara - Não tenho medo de nada, na escola. Pra escola, vou do jeito que eu quiser. Teve um dia que meu batom até borrado tava. Borrado, não, quase acabando, sabe? Não importa. Importa é que eu estou gostando (risos).
OP – Como foi o primeiro dia de Lara?
Lara - Esse primeiro dia de Lara, eu vi que eu não estava me sentindo mais daquele jeito. Quando eu comecei a transformação, eu já tinha sentido essa coisa. Mas, na escola, foi outra coisa, foi um outro ambiente, que eu já estava entrando lá daquele jeito. E foi um alívio muito, muito, muito maior do que quando eu disse que gostava de menino. Eu me senti numa roupa que, realmente, me define.
OP – A roupa é importante, pra você?
Lara – É. Muito.
OP – E como seus colegas e professores lhe receberam?
Lara - As pessoas não perguntaram muito. Deve ser até uma questão de respeito a mim. Todo mundo já tinha esse respeito por mim, porque eu nunca me deixei ser rebaixada. Mesmo sendo uma pessoa tímida, sempre que tentavam fazer alguma coisa comigo eu dizia: “não, pare. Pare agora, eu não quero isso”. Não era tão empoderada, tinha esse incômodo, mas não deixava ser ofendida. E o povo acolheu bem. Se falaram, acho que foi nas minhas costas (risos).
OP – E te incomoda saber se falaram ou não?
Lara - Não, pra mim, tanto faz. O que importa é a maneira que eu estou me sentindo. Atualmente, eu penso desse jeito. Bem diferente de anos atrás.
OP – Qual uma mulher que você admira?
Lara – Minha mãe. Porque eu acho ela uma pessoa muito forte, muito firme, muito guerreira.
OP – E a mulher que você quer ser?
Lara - Quero ser uma mulher forte, empoderada. Eu quero ser uma mulher que não precisa depender das pessoas, nem emocionalmente, nem financeiramente. Eu quero ser uma pessoa corajosa, uma pessoa forte, que consegue enfrentar o que os outros fazem, falam. Uma pessoa que vê que a sociedade não quer dizer a ela. Uma pessoa original.
OP – Isso aí você já está sendo, já é você. Você não se sente assim?
Lara – (pausa) (risos).
(a mãe dialoga) É pra se sentir muito corajosa. Ela foi na coordenação (do colégio) pedir para usar o banheiro feminino. Foi sozinha, não falou pra nós nem nada.
Lara – Ah, esse banheiro feminino foi um problema! Começou assim, ela (supervisora) disse: “Vamos ver, vou anotar aqui, depois, eu falo (para as coordenadoras) pra gente discutir mais ou menos como é que vai ser”. E eu pensei: banheiro masculino, não (risos). Eu nunca gostei do banheiro masculino. Tanto na questão de comodidade como na questão de que o banheiro masculino é sujo (risos). Feminino é outra história, já é a comodidade, tem até o cheiro perfumado (risos).
OP – Aí, você queria usar o banheiro feminino...
Lara – Queria. Era uma necessidade minha...
OP – E está usando?
Lara - Eu comecei a usar, só que eu não estou usando mais. Mas é que estou usando o da coordenação.
OP – Foi essa a solução que deram...
Lara - Foi essa a solução que deram temporariamente. O banheiro feminino, eu parei de usar por causa de um problema que houve com uma colega minha. Ela é muito dramática, briguenta, barraqueira. Ela problematiza qualquer coisinha... Na educação física, eu me segurando pra não fazer xixi nas calças, não dá mais pra aguentar, aí, eu corri pro banheiro feminino. As meninas já estavam terminando de se trocar, e eu nem olhei pra elas. Eu fui correndo, fui logo no primeiro cubículo. E eu ouvindo ela falando não sei o quê lá na porta. Aí, quando eu chego lá em cima, ela está com aquela pose dela, falando com a estagiária. Eu disse, tu tá bem, o que é que houve? Aí, ela: “Olha tu não pode usar o banheiro feminino, porque tu ainda não é uma mulher”. Ela começou a falar coisas e eu fiquei bem magoada, até chorei. Mas foi só por hora. Não foi algo que eu deixei me atingir por completo. Eu, claramente, não me interesso por meninas. Eu, claramente, não me interesso pelo corpo feminino das outras pessoas – em mim, pode até ser, mas os outros... E eu me senti comparada a um menino, verdadeiramente. Pra mim, é como se ela tivesse dizendo: você é um menino, você não pode entrar no banheiro feminino. Isso que mais me magoou. Como se eu tivesse usando isso pra vê-las. E é um argumento que eu refuto muito, muito, muito, muito.
OP – E qual a parte mais difícil, até aqui, de ser menina, mulher, para você?
Lara - Ninguém cobra nada dos meninos, mas, pras meninas, todo mundo cobra tudo. Todo mundo cobra beleza das meninas, todo mundo cobra que as meninas sejam arrumadas... Muitas diferenças, as cobranças. O menino é gordo, magro demais, ninguém fala nada. Mas, quando é com as meninas, todo mundo fala. E quando é magra demais, fazem é elogiar. Ficam dizendo: “Fulana de tal é gostosa”... Teve um dia que os meninos se juntaram pra ficar falando de uma menina, dos peitos da menina e da bunda. Eu achei uma atitude ridícula, ridícula. Eu até falei pra ela, “olha, tão falando ali de ti”...
OP – Manter o cabelo, a unha feita é tranquilo pra você?
Lara - Cabelo é uma luta! Mas eu consegui sozinha, hoje. Porque acorda embaraçado (risos). Anteontem, até deu um pouco certo, mas, hoje, acordou igual segunda-feira, tava uma vassoura! (risos)
OP – Você já se preocupa com beleza, estética, com o corpo?
Lara - Me preocupo. Só que eu não sou aquelas meninas que passam o extremo, só pensando naquilo toda hora. Eu gosto só de uma maquiagenzinha leve, sem aquela coisa exagerada. Bem menina, assim, que não ofusque a minha beleza, só não deixe passar um rosto de derrotada (risos)! Menos é mais!
OP – E qual a parte mais prazerosa de ser mulher, para você?
Lara - É quando você olha no espelho e vê você mesma. Quando eu me vejo com o cabelo, até sem me produzir muito, só com uma maquiagenzinha leve... Até ir pra escola com a farda tá sendo melhor (depois do cabelo alongado. Porque a farda é unissex).
OP – E o nome, você quem escolheu? O que significa o nome Lara?
Lara - (pausa) É o nome que ela (mãe) me daria, se eu fosse menina.
(A mãe completa) Quando engravidei, eu pensava: Levi ou Talita. Mas, quando botei Levi, eu disse: se eu tiver um segundo filho e for uma menina, vai ser Lara.
Lara - E eu acho bonito o nome Lara, o som.
OP – Você gosta de ser chamada de Lara...
Lara - Gosto, me sinto muito mais confortável. Me sinto como se, realmente, tivessem me chamando.
Disponível em: https://www.opovo.com.br/jornal/dom/2017/10/identidade-de-genero-a-possivel-leveza-de-ser.html
Lara - Eu tenho um trauma de infância. Porque criança é cruel, é igual a adolescente, às vezes; pode ser maravilhosa, mas pode ser cruel demais. E teve um dia (na escola) que uma menina tinha trazido uma boneca, e eu fiquei insistindo pra brincar com a boneca. Ela disse: eu só vou deixar você brincar com a boneca se você passar o batom. Eu passei o batom, aí, todo mundo da sala correu pra cima de mim, começaram a rir. Eu me tranquei no banheiro. E eu acho que, nessa época, comecei a reprimir mais as minhas coisas.
OP – Quantos anos você tinha?
Lara - Eu tinha cinco anos de idade.
OP – É a sua primeira lembrança?
Lara – É a minha primeira lembrança nesse quesito, assim, eu nunca tive essa restrição. Eu gostava de brincar de coisas de ambos os lados. Mas programas (de TV), nunca preferi os de menino.
OP – Mas isso já dizia o quê, para você?
Lara - Já dizia que eu não conseguia me situar direito. Eu era uma pessoa muito confusa. Eu não sabia o que eu queria pra mim, o que era aquela diferença, por que eu estava me sentindo daquele jeito. Porque todos os meninos eram tão confortáveis, falavam tanto de carro, de bola... Eu tentava me enturmar com as meninas, e algumas meninas não queriam, falavam coisas, eu me distanciava. Eu não sabia onde ficar.
OP – E como você foi resolvendo isso? Você se calou muito, né?
Lara - Eu admito: eu me reprimi. Toda vez que eu sentia alguma coisa, eu tentava reprimir. Por isso que eu comecei a andar com amigos meninos, durante certo tempo. Mesmo assim, eu me sentia desconfortável. Eu não andava porque eu gostava, eu me sentia obrigado a andar. Porque os meninos sempre foram de coisa...
OP – De preconceitos?
Lara – De preconceito, de “viado”, “bicha”, esse tipo de coisa. E eu me reprimi muito, muito, muito.
OP – Até que momento? O que mudou essa situação?
Lara - No sexto ano (em 2016), foi quando eu vi que eu não sentia... Foi mais ou menos assim: os meninos sempre falavam: “Que menina bonita, que menina não sei o quê...”, esse tipo de coisa. E eu nunca conseguia entender o que eles estavam querendo dizer com aquilo (risos).
OP – Porque você não sentia...
Lara – Eu não sentia aquela atração. E eu pensei: pera, por que estou dizendo uma coisa se, pra mim, não é desse jeito? Eu vou continuar dizendo que sou uma coisa se, pra mim, não é assim, de verdade? Será que eu, realmente, estou dizendo que eu sou se eu estou me camuflando numa máscara, que as pessoas querem que eu fique e que eu mesma quis que eu ficasse com medo do que os outros pensam, com medo de mim mesma... Por causa do que as pessoas falam, do modo que as pessoas pensam e agem, de certa maneira. E eu vi que eu não sentia atração por meninas, mas, sim, por meninos. Isso, eu já sabia faz um tempo, só que eu não sabia desse jeito. Eu tentava, o máximo, reprimir qualquer desejo. Eu ficava: não posso, não é nada. Fingia que não era nada. Sempre tentava me esconder, me distanciar desse tipo de coisa.
OP – Mas isso te fazia sofrer...
Lara – Fazia. Era uma luta diária porque eu tinha que manter aquela aparência, toda hora. E eu não podia chegar na escola sem manter aquela aparência e me dirigindo pros meninos.
OP – Você fala da escola, mas, em casa, você se sentia mais à vontade?
Lara - Em casa, não tem esse negócio das pessoas. Em casa, era só eu chegar, contava do dia e ia pro meu quarto. Eu ficava lá tempo, tempo, tempo, sozinha, pensando. Eu nunca fui uma pessoa muito extrovertida, na verdade. Sempre fui uma pessoa muito introvertida. Eu não sei se isso se deve ao fato de eu ter me reprimido tanto a esse ponto, ou da exclusão das meninas e os meninos sempre fazendo aquela coisa que você já tem medo por causa do que eles falam.
OP – As meninas te excluíam por quê? Por que, visualmente, você era menino?
Lara – É, porque eu era menino visualmente. “Por que você não vai brincar com os outros meninos?”. Esse tipo de coisa. E, quando eu tentava me enturmar com os meninos, e era coisa de futebol, nunca dava certo. Depois que eu me toquei: que coisa besta que eu tava fazendo da minha vida; não tava nem chutando uma bola porque nem a bola conseguia parar nos meus pés, na verdade (risos).
OP – E quando você decidiu contar, primeiro, decidiu contar para a família, para um melhor amigo?
Lara - Eu contei primeiro pra uma melhor amiga, da mesma idade. Geralmente, as pessoas acham que a religião é um fator tão importante pra pessoa ser aberta ou não; e nem sempre é desse jeito. Às vezes, as pessoas podem surpreender. E a religião pode ser uma coisa muito bonita, até. (Lara tem duas melhores amigas que são evangélicas). E eu falei pra ela sem nenhum medo: “Eu acho que eu não gosto de menina, eu acho que eu gosto de menino”. E ela foi bem receptiva, foi muito legal a atitude dela.
OP – Ela escutou tudo o que você tinha pra dizer?
Lara - Ela escutou tudo o que eu tinha pra dizer. Ela disse que estava tudo bem, que não tinha nada de errado nisso. Que era pra eu, realmente, ser quem eu sou de verdade. Que eu parasse de agir daquela forma se me incomodava tanto.
OP – E o que você sentiu nesse momento?
Lara - Eu senti um grande alívio dentro de mim, uma grande libertação. Porque eu sentia como se todos aqueles anos que eu tentava, eu vi que, realmente, tudo aquilo que eu sentia não era verdade. Porque, na verdade, eu nem sentia aquilo, eu tentava fazer aquilo mais por causa das aparências. E eu comecei a sentir um pouco mais eu.
OP – Depois, você decidiu falar com sua mãe e seu pai. Você tinha algum medo de falar?
Lara - Tinha. Mesmo quando eu sei que as pessoas aceitam, eu fico com nervosismo, não sei por que. É uma coisa dentro de mim, que sempre há essas possibilidades de algo dar errado. A maneira que eu falar, entendeu? Nem sempre as coisas podem dar certo como a gente espera.
OP – O que você pensava antes de contar?
Lara - Eu pensava que eu ia ser debochada, justamente, por causa desses traumas e das coisas que eu via acontecendo – não comigo, mas com outras pessoas.
OP – E como foi esse dia de contar pra sua mãe? Você confiava nela, se sentiu à vontade?
Lara - Confiava, me senti (à vontade). Existiu mais uma questão de libertação.
OP – E por que usar o batom?
Lara - O batom foi uma forma d´eu me expressar melhor, d´eu mostrar mais ainda.
OP – Foi fácil ou difícil, para você, essa conversa?
Lara – Foi difícil.
OP – Mas foi libertadora...
Lara - Foi muito libertadora.
OP – O que mudou a partir desse dia que conversaram?
Lara - O que mudou que eu me senti, cada vez mais, confortável no ambiente que eu, realmente, queria estar.
OP – E você buscou informações sobre o que estava acontecendo com você? Na Internet, por exemplo...
Lara - Eu já conhecia essa questão transexual faz tempo... A gente já debatia sobre tudo (em casa). Porém, teve uma época que eu comecei a pensar, quando começou a cair a ficha... Porque, quando você entra na puberdade, tudo vem num choque. Você começa a enxergar como as coisas são mesmo, o tempo começa a passar mais rápido. Eu comecei a ver que aquilo não me descrevia. Eu me sentia presa num corpo que não diz ao meu respeito. Eu não me encaixava naquele universo masculino que as pessoas queriam tanto que eu participasse.
OP – O que você gosta em você, hoje?
Lara - Gosto de mim porque eu me acho uma pessoa... eu não sinto aquela coisa de eu ser horrível. Uma coisa que era um sentimento constante na época que eu me parecia com menino. Quando eu me parecia com menino, eu sentia aquela inquietação. Eu era uma pessoa mais ansiosa ainda do que eu já sou hoje em dia. Eu não conseguia me aquietar. Eu não conseguia dormir, eu ficava pensando, refletindo: meu Deus, por que eu estou desse jeito, por que eu estou me sentindo assim?
OP – O que você queria mudar no seu corpo, quando você não se sentia à vontade no corpo de menino?
Lara - Eu não sabia o que era aquela inquietação. No sexto ano, eu ainda tava me camuflando naquela máscara. Eu ainda não tinha me tocado cem por cento. Ainda tava tentando ficar numa zona de conforto, que nem zona de conforto era, era mais uma ilusão. Eu via como tratavam as outras pessoas e eu pensava: eu tenho que ser desse jeito, não pode ter outra possibilidade.
OP – O que você queria mudar no seu corpo?
Lara - Eu queria que alguma coisa mudasse, não sabia o que eu queria que mudasse. Porque eu fechei minha cabeça pra mim mesma. Eu criei a minha própria prisão. O que mudou foi, assim, eu comecei a pensar quando eu me olhava no espelho: por que eu sentia aquela coisa? Todo mundo se achava bonito na sala de aula, menino, menina, ninguém tinha nenhuma reclamação. Todo mundo era confortável, era uma coisa natural. Mas, pra mim, era uma constante angústia. E eu sempre tentava disfarçar isso. (Uma de suas melhores amigas lhe achava, na época, uma pessoa triste e tímida. Uma tristeza que não tinha explicação).
OP – Quando você contou e se mostrou, isso reverteu...
Lara - Reverteu. Eu comecei a me sentir encaixada não como daquele jeito que eu tava tentando me encaixar à força, mas, sim, naturalmente.
OP – A primeira coisa que você quis mudar foi o cabelo?
Lara - Foi (risos). O cabelo me incomodava bastante. Porque é uma das coisas que podem deixar uma pessoa mais masculina. (o corte curtinho) Eu sinto que aquilo me aproximava mais do look masculino, e eu não gostava daquilo.
OP – E você achou que era a hora de mudar de uma forma radical pra ir ao colégio, circular na rua...
Lara – Achei.
OP – O pensamento mudou também, ou você já tinha um pensamento mais feminino?
Lara - Já tinha um pensamento mais feminino. Eu sempre preferi essas coisas mais femininas. Eu sempre fui uma pessoa muito diversa, mas eu não gostava daquelas coisas muito menino.
OP – Como foi, para você, voltar à escola de minissaia, cabelo grande, unha pintada? Como foi seu primeiro dia como Lara, na escola?
Lara – Foi ótimo!
OP – Você não teve medo?
Lara - Não tenho medo de nada, na escola. Pra escola, vou do jeito que eu quiser. Teve um dia que meu batom até borrado tava. Borrado, não, quase acabando, sabe? Não importa. Importa é que eu estou gostando (risos).
OP – Como foi o primeiro dia de Lara?
Lara - Esse primeiro dia de Lara, eu vi que eu não estava me sentindo mais daquele jeito. Quando eu comecei a transformação, eu já tinha sentido essa coisa. Mas, na escola, foi outra coisa, foi um outro ambiente, que eu já estava entrando lá daquele jeito. E foi um alívio muito, muito, muito maior do que quando eu disse que gostava de menino. Eu me senti numa roupa que, realmente, me define.
OP – A roupa é importante, pra você?
Lara – É. Muito.
OP – E como seus colegas e professores lhe receberam?
Lara - As pessoas não perguntaram muito. Deve ser até uma questão de respeito a mim. Todo mundo já tinha esse respeito por mim, porque eu nunca me deixei ser rebaixada. Mesmo sendo uma pessoa tímida, sempre que tentavam fazer alguma coisa comigo eu dizia: “não, pare. Pare agora, eu não quero isso”. Não era tão empoderada, tinha esse incômodo, mas não deixava ser ofendida. E o povo acolheu bem. Se falaram, acho que foi nas minhas costas (risos).
OP – E te incomoda saber se falaram ou não?
Lara - Não, pra mim, tanto faz. O que importa é a maneira que eu estou me sentindo. Atualmente, eu penso desse jeito. Bem diferente de anos atrás.
OP – Qual uma mulher que você admira?
Lara – Minha mãe. Porque eu acho ela uma pessoa muito forte, muito firme, muito guerreira.
OP – E a mulher que você quer ser?
Lara - Quero ser uma mulher forte, empoderada. Eu quero ser uma mulher que não precisa depender das pessoas, nem emocionalmente, nem financeiramente. Eu quero ser uma pessoa corajosa, uma pessoa forte, que consegue enfrentar o que os outros fazem, falam. Uma pessoa que vê que a sociedade não quer dizer a ela. Uma pessoa original.
OP – Isso aí você já está sendo, já é você. Você não se sente assim?
Lara – (pausa) (risos).
(a mãe dialoga) É pra se sentir muito corajosa. Ela foi na coordenação (do colégio) pedir para usar o banheiro feminino. Foi sozinha, não falou pra nós nem nada.
Lara – Ah, esse banheiro feminino foi um problema! Começou assim, ela (supervisora) disse: “Vamos ver, vou anotar aqui, depois, eu falo (para as coordenadoras) pra gente discutir mais ou menos como é que vai ser”. E eu pensei: banheiro masculino, não (risos). Eu nunca gostei do banheiro masculino. Tanto na questão de comodidade como na questão de que o banheiro masculino é sujo (risos). Feminino é outra história, já é a comodidade, tem até o cheiro perfumado (risos).
OP – Aí, você queria usar o banheiro feminino...
Lara – Queria. Era uma necessidade minha...
OP – E está usando?
Lara - Eu comecei a usar, só que eu não estou usando mais. Mas é que estou usando o da coordenação.
OP – Foi essa a solução que deram...
Lara - Foi essa a solução que deram temporariamente. O banheiro feminino, eu parei de usar por causa de um problema que houve com uma colega minha. Ela é muito dramática, briguenta, barraqueira. Ela problematiza qualquer coisinha... Na educação física, eu me segurando pra não fazer xixi nas calças, não dá mais pra aguentar, aí, eu corri pro banheiro feminino. As meninas já estavam terminando de se trocar, e eu nem olhei pra elas. Eu fui correndo, fui logo no primeiro cubículo. E eu ouvindo ela falando não sei o quê lá na porta. Aí, quando eu chego lá em cima, ela está com aquela pose dela, falando com a estagiária. Eu disse, tu tá bem, o que é que houve? Aí, ela: “Olha tu não pode usar o banheiro feminino, porque tu ainda não é uma mulher”. Ela começou a falar coisas e eu fiquei bem magoada, até chorei. Mas foi só por hora. Não foi algo que eu deixei me atingir por completo. Eu, claramente, não me interesso por meninas. Eu, claramente, não me interesso pelo corpo feminino das outras pessoas – em mim, pode até ser, mas os outros... E eu me senti comparada a um menino, verdadeiramente. Pra mim, é como se ela tivesse dizendo: você é um menino, você não pode entrar no banheiro feminino. Isso que mais me magoou. Como se eu tivesse usando isso pra vê-las. E é um argumento que eu refuto muito, muito, muito, muito.
OP – E qual a parte mais difícil, até aqui, de ser menina, mulher, para você?
Lara - Ninguém cobra nada dos meninos, mas, pras meninas, todo mundo cobra tudo. Todo mundo cobra beleza das meninas, todo mundo cobra que as meninas sejam arrumadas... Muitas diferenças, as cobranças. O menino é gordo, magro demais, ninguém fala nada. Mas, quando é com as meninas, todo mundo fala. E quando é magra demais, fazem é elogiar. Ficam dizendo: “Fulana de tal é gostosa”... Teve um dia que os meninos se juntaram pra ficar falando de uma menina, dos peitos da menina e da bunda. Eu achei uma atitude ridícula, ridícula. Eu até falei pra ela, “olha, tão falando ali de ti”...
OP – Manter o cabelo, a unha feita é tranquilo pra você?
Lara - Cabelo é uma luta! Mas eu consegui sozinha, hoje. Porque acorda embaraçado (risos). Anteontem, até deu um pouco certo, mas, hoje, acordou igual segunda-feira, tava uma vassoura! (risos)
OP – Você já se preocupa com beleza, estética, com o corpo?
Lara - Me preocupo. Só que eu não sou aquelas meninas que passam o extremo, só pensando naquilo toda hora. Eu gosto só de uma maquiagenzinha leve, sem aquela coisa exagerada. Bem menina, assim, que não ofusque a minha beleza, só não deixe passar um rosto de derrotada (risos)! Menos é mais!
OP – E qual a parte mais prazerosa de ser mulher, para você?
Lara - É quando você olha no espelho e vê você mesma. Quando eu me vejo com o cabelo, até sem me produzir muito, só com uma maquiagenzinha leve... Até ir pra escola com a farda tá sendo melhor (depois do cabelo alongado. Porque a farda é unissex).
OP – E o nome, você quem escolheu? O que significa o nome Lara?
Lara - (pausa) É o nome que ela (mãe) me daria, se eu fosse menina.
(A mãe completa) Quando engravidei, eu pensava: Levi ou Talita. Mas, quando botei Levi, eu disse: se eu tiver um segundo filho e for uma menina, vai ser Lara.
Lara - E eu acho bonito o nome Lara, o som.
OP – Você gosta de ser chamada de Lara...
Lara - Gosto, me sinto muito mais confortável. Me sinto como se, realmente, tivessem me chamando.
Disponível em: https://www.opovo.com.br/jornal/dom/2017/10/identidade-de-genero-a-possivel-leveza-de-ser.html
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